Os poentes não trabalham de graça


Dizia o principezinho: “Um dia vi o pôr-do-sol quarenta e três vezes”. E depois acrescentava, melancolicamente: “Sabes?, quando se está muito triste, gosta-se do pôr-do-sol”. Não estou propriamente triste, mas gosto do pôr-do-sol para lá dos arrozais e dos pinheiros mansos. Para lá das cegonhas dependuradas nos postes, para lá das andorinhas aflitas e das…


Dizia o principezinho: “Um dia vi o pôr-do-sol quarenta e três vezes”. E depois acrescentava, melancolicamente: “Sabes?, quando se está muito triste, gosta-se do pôr-do-sol”. Não estou propriamente triste, mas gosto do pôr-do-sol para lá dos arrozais e dos pinheiros mansos. Para lá das cegonhas dependuradas nos postes, para lá das andorinhas aflitas e das nuvens negras dos mergulhões que mudam de forma até aterrarem nos campos de arroz que ainda não despontam em verdes-esmeralda como nas planícies do Camboja que atravessei num autocarro a desfazer-se aos pedaços no caminho que ligava Phnom Penh a Battabang.

Não, não sei se é preciso estar triste para precisar que o sol se ponha. “Então no dia em que viste quarenta e três pôr-do-sol estavas assim são triste?”, perguntaram ao Pequeno Príncipe. E ele, mudo, sem saber responder. Não, o Principezinho de Saint-Eupéry não era essencialmente prático. Acreditava que devíamos ser sempre responsáveis por aqueles que cativamos. Isto é, não conhecia a ingratidão. Nelson Rodrigues, o mestre dos cronistas brasileiros, esse sim, era essencialmente prático como o personagem de Os Maias que perguntava ao Carlos se em Inglaterra havia literatura. Por isso, duvidava: “Ouve lá, tu achas que os poentes trabalham de graça?”

O poente de hoje chega mais tarde porque os dias vão crescendo à medida da aproximação do solstício de Verão. Depois, a burocracia muda as horas e as vinte e quatro horas mudam de sítio ligeiramente, tombando o planeta na direção do sol. De cada vez que escrevo, deixo algo para trás, como um fardo. Vou-me libertando das lembranças, ou melhor, dos sentimentos que estão dependurados nas lembranças e me pesam nos ombros à medida que caminho em direção a lado nenhum. Não sei quanto me irão cobrar, no fim de tudo isto, por cada poente. Acredito que pouco. Os poentes não trabalham de graça, mas eu fá-lo-ia se pudesse. Cair para lá do horizonte não vale mais do que um dia muito triste. E a tristeza é de borla.

Os poentes não trabalham de graça


Dizia o principezinho: “Um dia vi o pôr-do-sol quarenta e três vezes”. E depois acrescentava, melancolicamente: “Sabes?, quando se está muito triste, gosta-se do pôr-do-sol”. Não estou propriamente triste, mas gosto do pôr-do-sol para lá dos arrozais e dos pinheiros mansos. Para lá das cegonhas dependuradas nos postes, para lá das andorinhas aflitas e das…


Dizia o principezinho: “Um dia vi o pôr-do-sol quarenta e três vezes”. E depois acrescentava, melancolicamente: “Sabes?, quando se está muito triste, gosta-se do pôr-do-sol”. Não estou propriamente triste, mas gosto do pôr-do-sol para lá dos arrozais e dos pinheiros mansos. Para lá das cegonhas dependuradas nos postes, para lá das andorinhas aflitas e das nuvens negras dos mergulhões que mudam de forma até aterrarem nos campos de arroz que ainda não despontam em verdes-esmeralda como nas planícies do Camboja que atravessei num autocarro a desfazer-se aos pedaços no caminho que ligava Phnom Penh a Battabang.

Não, não sei se é preciso estar triste para precisar que o sol se ponha. “Então no dia em que viste quarenta e três pôr-do-sol estavas assim são triste?”, perguntaram ao Pequeno Príncipe. E ele, mudo, sem saber responder. Não, o Principezinho de Saint-Eupéry não era essencialmente prático. Acreditava que devíamos ser sempre responsáveis por aqueles que cativamos. Isto é, não conhecia a ingratidão. Nelson Rodrigues, o mestre dos cronistas brasileiros, esse sim, era essencialmente prático como o personagem de Os Maias que perguntava ao Carlos se em Inglaterra havia literatura. Por isso, duvidava: “Ouve lá, tu achas que os poentes trabalham de graça?”

O poente de hoje chega mais tarde porque os dias vão crescendo à medida da aproximação do solstício de Verão. Depois, a burocracia muda as horas e as vinte e quatro horas mudam de sítio ligeiramente, tombando o planeta na direção do sol. De cada vez que escrevo, deixo algo para trás, como um fardo. Vou-me libertando das lembranças, ou melhor, dos sentimentos que estão dependurados nas lembranças e me pesam nos ombros à medida que caminho em direção a lado nenhum. Não sei quanto me irão cobrar, no fim de tudo isto, por cada poente. Acredito que pouco. Os poentes não trabalham de graça, mas eu fá-lo-ia se pudesse. Cair para lá do horizonte não vale mais do que um dia muito triste. E a tristeza é de borla.