O melhor que se pode dizer do artigo no Público que António Carlos Cortez escreveu sobre o racismo n’Os Maias (ou contra essa leitura) é que qualquer aluno do ensino secundário encontrará ali, para efeitos de revisões gerais da matéria, um depósito seguro para as ruminações bovinas que serão postas à prova no exame nacional. E este atestado de credulidade, qual enxuto satélite dos muitos que entopem as livrarias e inflacionam os gastos na educação dos filhos para brio dos rankings escolares, constitui igualmente o seu pior defeito: precisamente porque não acrescenta nada ao que já se sabe. Nem ao clássico do Eça, que permanece como intocável mausoléu na pior acepção do que se espera do cânone literário, com a mesma fila indiana de temas e motivos, tropos e quejandos, com que se torna encaixável a obra nos devidos eixos protocolares de leitura. Nem ao que quer que signifique dar uma aula de português, ou de literatura, ou do que quer que seja isso que, hoje, procure fazer dos livros uma qualquer linha de fuga que nos ponha a nós, que os lemos, em tensão permanente, acossados pela partilha de dúvidas, de perplexidades, pelas dobras da língua – o que quer que haja neste idioma que, por muito estafado e reconhecível que nos pareça, consiga pregar-nos algum tipo de rasteira, algum choque, algum gozo.
O pior que se pode esperar de um clássico, ou do ensino da literatura em geral, é que, de ano para ano, de geração em geração, a leitura e a reflexão que ela suscita ajudem tão-só a empastelar ainda mais o consenso que, segundo Jacques Rancière, constitui essa visão tóxica da distribuição dos poderes e dos papéis de cada um no acto de leitura, isto é, a manutenção das linhas vermelhas entre quem tem a autoridade para postular como uma obra tem de ser lida e quem está passivamente à escuta, mesmo que esta passividade, hoje, constitua a versão cínica do tão famigerado apelo ao “espírito crítico”. E aí está o busílis pensativo da coisa: neste caso, uma doutoranda, Vanusa Vera-Cruz Lima, leu Os Maias e, lendo-o, formulou uma questão. Leu um livro do século XIX como a aluna do século XXI que ela efectivamente é – e fazer deste posicionamento motivo de chacota, acusando a aluna de ter uma visão redutora e distorcida dos factos, ou de ser mais uma cabeça bem-pensante na “escola do ressentimento” (Bloom) e desta nova moda do racismo, é, primeiro, mandar às urtigas o tal “espírito crítico” sem o qual as instituições de ensino são meros prostíbulos de cimento. Segundo, é insistir na falácia da História, veementemente maiusculizada, como esse monumento de pedra e cal que se confunde com uma eternidade rudimentar, escrita e fechada de uma vez por todas, competindo-nos a nós a frouxa humildade de anuir com o inventário dos factos, dos nomes ou das datas, sem nunca pôr em causa as subjectividades de fundo que determinaram a suposta objectividade história desse mesmo inventário (por esta ordem de ideias, nunca Saramago teria escrito uma única linha dos seus melhores romances). Terceiro, é compactuar com o unanimismo burro das redes sociais, que aplacam qualquer hipótese de profundidade, ou de questionamento demorado, com a acefalia precoce das certezas, com a bruteza reactiva do clickbait, esmagando-se logo à partida as condições mínimas de qualquer leitura em pleno: o tempo e o silêncio, esses luxos que nos soam tão anacrónicos. Ao fim e ao cabo, ninguém leu a tese da doutoranda porque a tese ainda não existe; e uma montagem de tudo quanto foi divulgado sobre o assunto – o ponto de partida da autora, o contexto da sua investigação, os seus objectivos – demonstra apenas que todo o contra-ataque erguido denuncia a infantilização do espaço público, a sua ruidosa carcaça, que se presta a andar a reboque dos humores do Facebook. Para não falar do esboroamento dos princípios básicos do diálogo, da atenção, da partilha democrática ou do direito ao dissenso – em vez deste mesquinho apoucamento das coisas, desta condescendência de sumos pontífices tão ávidos por pregar sermões e dar raspanetes, desta genérica falta de curiosidade e de predisposição para tomar o que é diferente, não como um insulto, mas como a margem da vida que nos excede.
Uma leitura é sempre um risco. E, como tal, é um modo singular de fazer política: o de nos pormos em relação com aquilo que lemos, em função da memória que somos, do tempo e do lugar em que estamos, das visões que nos legaram do que foi o passado escrito e imaginado, ou do que outros leram naquilo que lemos hoje. Sem esta consciência, limitamo-nos a policiar o que já foi feito e a preservar as fronteiras entre ignorância e saber, esse esquema implícito que precede e organiza o desejado sentido das coisas e nomeia quem está devidamente apetrechado para ousar dizer que conhece a cifra. Apetece fazer como a Madonna num dos seus videoclipes, ao volante de um carro e metendo prego a fundo: pegar nesta tralha toda, na literatura tão inchada de si mesma e em todos quantos, através dela, se põem em bicos de pés condizendo com a respectiva grandeza imaginária, – e espetar isto tudo violentamente contra um poste. É diante dessa colisão que há muito estamos, mesmo que ingenuamente nos coloquemos de fora e, nesse recuo, julguemos pôr a salvo da barbárie as nossas verdades de bolso, os nossos mitos nacionais, ou os clássicos da literatura. E a ingenuidade extrema, como Eça brilhantemente entendeu, é acabarmos metidos na cama com a própria irmã, para que, assim, possamos preservar a todo o custo uma ideia estreita de pátria, de tradição – ou de leitura.