Saudades do Pico Ramelau


O mundo fechou-se à chave, com correntes e cadeados, não há lugar para onde possa fugir da monotonia das gaivotas neste tempo de março em que, ano após ano após ano, voava para a Índia e para o Oriente do Oriente como se fosse uma ave de arribação.


Acordei com a estranha sensação de que não devia estar aqui e lembrei-me de Pessoa cuja pátria era estar onde não estava. O mundo fechou-se à chave, com correntes e cadeados, não há lugar para onde possa fugir da monotonia das gaivotas neste tempo de março em que, ano após ano após ano, voava para a Índia e para o Oriente do Oriente como se fosse uma ave de arribação.

Não tenho notícias do Pico Ramelau e o Pico Ramelau foi muito importante na minha infância quando era ainda o ponto mais alto de Portugal com dois mil, novecentos e cinquenta metros de altitude, tal como eram fundamentais os afluentes da margem direita do Douro – Sabor, Tua e Pinhão, Corgo, Tâmega e Sousa – e os da margem direita do Tejo – Sever, Sorraia e Coina. Quando estive em Timor devia ter subido os dois mil, novecentos e cinquenta metros de altitude só por embirração para com os professores de geografia, mas tinha mais que fazer.

Não subi. Talvez por isso esteja agora de castigo, tal como ficava com as mãos a arder das canadas se não recitasse, à maneira de um poema, as linhas reduzidas do Tua, do Vouga e do Sabor, o ramal de Trofa-a-Fafe e as estações de caminho de ferro que ligava Luanda a Nova Lisboa. O Pico Ramelau faz-me falta, embora em Timor já ninguém lhe chame Pico Ramelau e sim Foho Tatamailau, que em tétum quer dizer Avô dos Montes.

Olho para lá do Sado e a planície estende-se até ao horizonte, sem montes. Não tenho um Abílio na carteira em frente à minha, o único colega que conheci que ficava abecedariamente antes de mim, nem as fotografias do Presidente do Conselho, Professor António Oliveira Salazar, e de Sua Excelência o Presidente da República, Américo de Deus Rodrigues Thomaz, penduradas nas paredes ao lado de um crucifixo, e só isso já devia deixar-me feliz enquanto espremo as meninges para me recordar que o Sado nasce na serra da Vigia, em Ourique e percorre 180 quilómetros para desaguar em estuário (não em delta) perto de Setúbal, já aqui ao lado.

Nuvens cobrem os arrozais e também há arrozais no sopé do Monte Ramelau. Talvez toda a gente tenha esquecido o Pico Ramelau, ponto mais alto de Portugal com dois mil, novecentos e cinquenta e seis metros de altitude. Eu não! Fico em pé respirando o ar húmido do rio. Não devia estar aqui. Ainda por cima preso. Estar aqui, às vezes dói-me.


Saudades do Pico Ramelau


O mundo fechou-se à chave, com correntes e cadeados, não há lugar para onde possa fugir da monotonia das gaivotas neste tempo de março em que, ano após ano após ano, voava para a Índia e para o Oriente do Oriente como se fosse uma ave de arribação.


Acordei com a estranha sensação de que não devia estar aqui e lembrei-me de Pessoa cuja pátria era estar onde não estava. O mundo fechou-se à chave, com correntes e cadeados, não há lugar para onde possa fugir da monotonia das gaivotas neste tempo de março em que, ano após ano após ano, voava para a Índia e para o Oriente do Oriente como se fosse uma ave de arribação.

Não tenho notícias do Pico Ramelau e o Pico Ramelau foi muito importante na minha infância quando era ainda o ponto mais alto de Portugal com dois mil, novecentos e cinquenta metros de altitude, tal como eram fundamentais os afluentes da margem direita do Douro – Sabor, Tua e Pinhão, Corgo, Tâmega e Sousa – e os da margem direita do Tejo – Sever, Sorraia e Coina. Quando estive em Timor devia ter subido os dois mil, novecentos e cinquenta metros de altitude só por embirração para com os professores de geografia, mas tinha mais que fazer.

Não subi. Talvez por isso esteja agora de castigo, tal como ficava com as mãos a arder das canadas se não recitasse, à maneira de um poema, as linhas reduzidas do Tua, do Vouga e do Sabor, o ramal de Trofa-a-Fafe e as estações de caminho de ferro que ligava Luanda a Nova Lisboa. O Pico Ramelau faz-me falta, embora em Timor já ninguém lhe chame Pico Ramelau e sim Foho Tatamailau, que em tétum quer dizer Avô dos Montes.

Olho para lá do Sado e a planície estende-se até ao horizonte, sem montes. Não tenho um Abílio na carteira em frente à minha, o único colega que conheci que ficava abecedariamente antes de mim, nem as fotografias do Presidente do Conselho, Professor António Oliveira Salazar, e de Sua Excelência o Presidente da República, Américo de Deus Rodrigues Thomaz, penduradas nas paredes ao lado de um crucifixo, e só isso já devia deixar-me feliz enquanto espremo as meninges para me recordar que o Sado nasce na serra da Vigia, em Ourique e percorre 180 quilómetros para desaguar em estuário (não em delta) perto de Setúbal, já aqui ao lado.

Nuvens cobrem os arrozais e também há arrozais no sopé do Monte Ramelau. Talvez toda a gente tenha esquecido o Pico Ramelau, ponto mais alto de Portugal com dois mil, novecentos e cinquenta e seis metros de altitude. Eu não! Fico em pé respirando o ar húmido do rio. Não devia estar aqui. Ainda por cima preso. Estar aqui, às vezes dói-me.