É uma das figuras emblemáticas da noite lisboeta e os mais antigos lembram-se do Targus, no Bairro Alto, e do Impossibly Funky, no Lx Factory, que marcaram gerações. Hoje está no Tabernáculo, restaurante-bar, e no Blues, restaurante que fica paredes meias no sopé da Bica. Nascido na Guiné-Bissau há 62 anos, Hernâni veio para Portugal com sete anos e gosta de dizer que é “um alfacinha de gema”. Um lutador que nem a covid derruba.
Como tem sido este ano de pandemia?
Um ano horrendo. De acumulação de dívidas para todos os empresários. Um ano em que muitos foram obrigados a despedir muita gente, outros obrigados a pôr em layoff. Existem as despesas fixas, as rendas… O take away não funciona e quando está aberto dá mais prejuízo do que lucro – água, luz, empregados, segurança social, isto tudo são despesas fixas.
E impostos?
Temos de pagar os impostos todos inerentes a um restaurante-bar. Vá lá que a Junta de Freguesia nesta fase, até junho penso eu, até ao final do ano, não cobra as taxas. Os homens da Passmusica também foram simpatiquíssimos e descontaram a parte que lhes cabia.
Como acha que a famosa bazuca da União Europeia vos pode ajudar?
Se vem uma bazuca, olhava-se para as PMES, as mini empresas, tu deves ao fisco três mil, mas tinhas de receber cinco mil euros, portanto estes três mil ficam já no Estado, pagas ao fisco e tens dois mil euros para alavancar. Isso poderia ser uma ajuda à economia.
Seria um perdão fiscal?
No fundo, não é perdão fiscal. Em vez de darem os cinco mil, viam quanto é que as pessoas deviam e descontavam. Imagine se eu tinha de receber 10 e se devia 5, descontavam. O dinheiro ficava no Estado.
Acha que os bares vão receber alguma coisa dessa bazuca?
Não creio que os bares recebam, não creio que as discotecas recebam, os restaurantes vão ter muita dificuldade. Há muitos espaços de restauração que fecharam porque tinham dívidas ao fisco e à segurança social e eram ilegíveis, não tinham hipótese, a partir daí foi uma bola de neve.
Como tem vivido, diz que o take away dá prejuízo. Então porque está aberto?
Faço ao fim de semana, gostava de fazer todos os dias. Mas faço ao fim de semana porque tenho dez, 15 amigos que gosta de comida africana e é uma forma das pessoas perceberem que ainda tenho a cabeça fora de água. Mas vejo pelos meus vizinhos que faziam take away, que tinham comida tradicional portuguesa, acabaram por fechar. E estamos a falar de estruturas familiares e de rendas que têm 40 ou 50 anos, se desse ainda estavam a funcionar.
Mas como tem sobrevivido?
A sobrevivência este ano é rapar o fundo ao tacho, do pouco que existia que já deixou de existir.
Chegou a ter um movimento de crowdfunding criado por um estrangeiro?
Foi uma jovem estrangeira que veio aqui há dois anos e depois voltou cá e percebeu que este bar-restaurante não podia fechar. Dizia que nunca tinha encontrado um espaço com esta vibe em Nova Iorque ou em Londres. Ela é jornalista e achou que o espaço não podia fechar e tentou ajudar.
Quanto rendeu essa ajuda?
Pouco, perto de mil euros, mas só pelo motivo e pela atitude dela já valeu a pena. É alguém que nem sequer é de cá. Teve cá dois anos e gostou e conheceu Portugal de lés-a-lés e achou piada de ajudar e gostou de ajudar um espaço que lhe agradou.
Sendo um homem da noite, como tem passado os dias?
Para mim não são difíceis, saio de casa por volta do meio-dia, venho até aqui, falo com alguns vizinhos. Fico mais um pouco, voltei a ler mais jornais, saio daqui, vou para casa, tomo banho e fico a ver documentários que me interessam, que não tinha tempo para os ver e agora tenh. Sou uma pessoa extremamente positiva. Sou um urbano alegre. E não me dá para a depressão. Interessa-me é que isto passe depressa, da forma mais leve possível.
Como olha para esta rua [São Paulo, ao lado do elevador da Bica] completamente deserta, sem movimento à noite?
Com a mesma tristeza que olhava nos anos 80. Quando passava aqui, via tudo fechado. Uma rua de zombies. Saio daqui por volta das onze horas, meia-noite e como moro na Baixa vou até casa e não me cruzo com ninguém. Vou a pé. Parece uma cidade só com um ou dois habitantes e não me cruzo com ninguém. Só não me mete medo porque sabemos que a cidade é segura. Qualquer outra pessoa que caísse aqui de certeza que não queria ficar aqui.
E em relação ao fim de semana, como se lembrou de fazer comida africana? Coisa que nunca tinha feito, penso eu?
Tinha feito comida africana com o chefe Aldemiro – é o grande chefe de comida africana. Era o chefe da cozinha da Casa da Morna. Era dele e do Tito Paris e de uma outra pessoa. Falei com ele e fizemos alguns ensaios, para alguns amigos. E surtiu sempre bem. Depois há um amigo meu, que é o Francisco Lion, que estava sempre a dizer “tu devias insistir nisso”. Está bem vamos experimentar. A Margarida [Rebelo Pinto] gostou. A Catarina [Portas] também veio cá e decidi apostar.
Mas quem cozinha?
O chefe, os pratos são todos africanos. Só estou aqui para vendê-los, entregar às pessoas. As pessoas que vêm cá, ficam quinze ou vinte minutos a falar. É para recordar aquelas tertúlias que tinha aqui.
A polícia não vem chatear?
Estou na rua. Há recolhimento obrigatório, mas as pessoas tem de esperar.
Que iguarias servem?
Tudo o que seja dos países de língua portuguesa, nós temos tudo, desde que seja pedido com antecedência, Podemos falar do caldo de mancarra, moamba, cachupa, os pratos mais fortes de cada um desses países, pasteis de milho, há uma diversidade grande de pratos. Se for por encomenda, se não for no registo, pedimos que nos peçam com 48 horas de antecedência. Se nos telefonarem e perguntar o que é que há? O que temos é o que as pessoas se sujeitam a levar.
E os personagens que paravam aqui, por exemplo o Tito Paris e essa gente toda? Que é feito deles?
Qualquer bom africano come em casa. É como os portugueses, quando querem comida portuguesa, é a comida da mãe é sempre melhor. Não vêm aqui de propósito para comer, não faz sentido, comem em casa.
Vai conseguir resistir muito mais tempo, se o desconfinamento não for uma realidade?
Não, não só eu – 60 a 70 por cento das pessoas não vai resistir se isto durar até maio. Eu tenho tido essa boa vontade, porque o meu senhorio, tem provado, está a ser um parceiro neste momento, neste ano e tal. Só tenho de que lhe agradecer que ele tem sido um gentleman, em todos os aspetos. Mas se os senhorios começarem a apertar, é evidente que quase ninguém vai aguentar. Com as despesas todas que temos e que vêm a seguir…
A propósito de despesas de locais que estão fechados ao público. Deu o exemplo da luz.
Todos nós vamos ter esse problema. Veja que uma casa que não está a faturar, que está fechada, como pode ter dinheiro para pagar?
Mas, supostamente, havia a possibilidade de não pagar eletricidade até determinada data.
O que constou foi que existia até julho uma moratória em relação à EDP, e a partir daí é que se começava a pagar. E faziam-se planos de pagamento. Também, segundo me constou, eles deram o dito por não dito. Isso é só para as casas onde as pessoas habitam e não para estabelecimentos. Os estabelecimentos muitos deles fecharam mas têm as câmaras frigoríficas montadas. Aliás, têm de ter. Há sempre um gasto. Acumularam um gasto durante muitos meses.
Como pensa que vai ser a reabertura da restauração?
Espero que não seja como a outra, até à uma hora da tarde. Até a essa hora ninguém consegue sair de casa – alguém vai almoçar às onze da manhã para estar despachado à uma? Não parece que se possa repetir isso. É muito mau. Da mesma forma será terrível se obrigarem os restaurantes-bares as fecharem às dez da noite [Nota. Já depois da entrevista os especialistas com assento nas reuniões do Infarmed defenderam o fecho às 21 horas durante a semana e o encerramento às 13 horas de sábado] . 99% dos donos dos restaurantes tem muito cuidado com a saúde dos clientes e dos funcionários porque não querem fechar. Têm muito cuidado com o distanciamento, com a higiene. Nós, quer queiramos quer não, acabamos por ser fiscalizadores dos nossos passos. Queremos que o cliente siga bem e o nosso negócio também siga bem.
A noite vai voltar a ser a mesma?
Não, a noite mudou. E mudou de uma forma radical. As pessoas vão ter medo durante algum tempo, por várias questões. Para já, a noite vai começar mais cedo. Com as esplanadas a funcionar, penso eu. E depois as pessoas habituaram-se a sair mais cedo. Vai haver menos gente a querer estar em espaços fechados e com muita gente lá dentro, numa primeira fase. Sendo que há uma sede grande das pessoas se abraçarem, dançarem. Acredito que os jovens, como é evidente, quando puderem sair vão invadir tudo. Juventude é rebeldia, eles vão, sem dúvida nenhuma, quando puderem sair, vão invadir isso tudo. Mas os donos das casas vão ter algum receios e vão apostar sempre que tenham possibilidades nas esplanadas.
Acha que os mais velhos, onde nós nos incluímos, vão sair menos?
Sim, esses vão sair menos. E quando saírem vão procurar mais esplanadas. Isso não tenho dúvidas absolutamente nenhumas. Restaurantes e esplanadas, não tenho dúvida nenhuma.
Digamos que há uma geração que morreu para a noite?
Acho que vão olhar para a noite de uma forma diferente. Se calhar, numa perspetiva pós-laboral. E que quando chega a noite piram-se.
Acha que vão copiar o estilo inglês?
Os espanhóis, ingleses, sim. Aliás, tenho muitos amigos meus que quando a noite abrir vão começar a ir a sítios por volta das 18h até às 21h, 22h, comem aí alguma coisa e depois vão embora.Também há uma coisa que vai haver interessante aqui na nossa zona [do Cais do Sodré], que é a mudança daqueles três bares históricos para a zona ribeirinha – vai ter um deslocamento grande de pessoas.
Estamos a falar do Tokyo,
Europa e Jamaica.
Em boa hora lhes deram guarida, mais do que merecida. Peca por ser tardia. Mas com esta história da pandemia, vamos ter um noite um bocado diferenciada. Discotecas junto ao rio e bares e restaurantes dentro da cidade. Penso que não é uma má ideia para a cidade. Peca é por ser tardia.
Mas os bares do Cais do Sodré como o Viking continuam?
Sim, têm pequena dimensão.
O que acha que vai acontecer à música ao vivo?
As pessoas gostam é de música ao vivo. Assim que houver hipótese, provavelmente vão. E como muitos dos espetáculos de música ao vivo são ao ar livre não vejo grande problema.
Acha que será viável, como acontece nalguns países, que antes de entrarem num bar ou restaurante os clientes tenham de ter os testes feitos até 48 horas antes?
Acho que isso cá não dá. Quem é o jovem que tem 100 ou 50 euros para fazer um teste todas as semanas?
O que acha do papel da Câmara no meio desta situação toda?
O papel da Câmara agora, na parte final, parece que está alinhar pelo bem. Começou muitíssimo mal. A Câmara deveria ter assumido logo um papel que não deveria ter deixado para as Juntas. Porque cada Junta faz aquilo que lhe convém, resolvendo, muitas vezes, os problemas dos amigos. Devia ser uma questão mais uniforme. Quando quase não havia carros, não havia nada, e teria sido importante que as Juntas tivessem incentivado a utilização de esplanadas. Umas fizeram, outras não. Há Juntas de que os comerciantes nunca viram os candidatos neste tempo de pandemia.
O papel da Câmara tem melhorado, portanto?
Acho que a Câmara agora melhorou o comportamento. Tenho sentido isso. Também têm levado muito na cabeça, como é normal. Uma coisa é estar sentado na secretária, outra coisa é estar na rua, ouvir, ver e sentir. E a partir daí tomar algumas decisões. A cidade é grande e não se move toda ao mesmo ritmo. Temos ritmos totalmente diferentes.
Tinha oito ou nove empregados. O que lhes aconteceu?
Fiquei só com uma pessoa.
Mas está em layoff, obviamente?
Não, foi de férias. E foi de férias com licença sem vencimento. Os outros, oito ou nove, foi tudo despedido. Infelizmente, é assim. O layoff, é muito interessante, mas as pessoas têm de fazer contas. As contas são fáceis de fazer, com o layoff, continuamos a ter os encargos todos. Alguns estavam cá a recibos verdes. Gostava imenso deles, mas não podia aguentar os encargos. Essa foi outra situação que o Estado demorou muito a olhar para as pessoas que trabalhavam com recibos verdes. Demorou muito, tempo a mais. Haverá muitas famílias que os cônjuges trabalham a recibo verde. Se no Estado trabalham, nos outros sítios também será a mesma coisa.
E tem tido relatos, como essas pessoas têm sobrevivido?
Vivo na Baixa e vejo as filas muito grandes que mete medo.
Que metem susto porquê?
Porque estão ali para receberem alimentação. E, se olharmos para as pessoas, faz-se aquela coisa, clássica, que os italianos faziam nos anos 70, 80 e 90, quando se tentava entrar num espaço nocturno, olhavam para os pés. Porque pelo calçado que as pessoas têm percebes que estão a precisar neste momento e se calhar não precisavam há tão pouco tempo. Ou seja, eu vejo isso em vários sítios da Baixa. Felizmente que há instituições que estão a fazer um trabalho meritório de entregar comida quente e boa. Que as pessoas merecem, mas mete medo. Mete mesmo medo olhar para as pessoas e vê-las assim.
Mete medo em que sentido?
No sentido que qualquer um de nós pode a qualquer momento ir para ali. Não é vergonha nenhuma. E esses são os que a gente conhece. E os que a gente não vê, que são mais.
Há muita fome encapotada, escondida?
Muita, muita. Eu deparo-me com muita coisa aqui. Antigamente as pessoas pediam, dá-me uma moeda. Agora não, dá-me comida. ‘Tem alguma coisa, que eu posso comer?’. Noutro dia, aconteceu um caso muito triste. Foi um jovem que apareceu aí, e disse: ‘É pá, se eu venho pedir, é porque estou mesmo aflito. Tem alguma coisa que se possa comer?’. Era um jovem mesmo, muito bem parecido, tranquilamente, bem vestido. Ninguém diria. Chegou à porta e disse: “Posso falar consigo? Tem alguma coisa que eu possa comer?”. Felizmente, há muita gente solidária. Fico contente. Mas é duro. Não deixa de ser duro.
Sempre esteve ligado à música, essas pessoas estão numa situação muito complicada?
Os artistas todos. Porque a gente, quando fala da música, é espetáculo global. O homem que monta os andaimes, o que faz o palco, as luzes, o som, tudo o que acontece até aos músicos chegarem ao palco. E são muitas pessoas envolvidas nisso. E não existem muitos artistas a ganhar muito dinheiro, é uma minoria. O grosso não ganha. Fazem cinco, seis espetáculos ao ano, que ganhem mil euros, ao ano são doze mil euros.
Mas o resto das pessoas envolvidas nessa engrenagem ganham muito menos.
Claro que ganham muito menos e têm família para alimentar. A situação deles é muito complicada. Há uma coisa que me custa a compreender. A GDA sei que ajudou alguns, os que eram filiados, os que eram sócios. Fez muitíssimo bem em ajudar. Não sei os valores, mas creio que davam um cheque, equivalente a duzentos e tal euros, penso eu. Não sei quantos meses é que foi. Mas não sei qual foi atitude da SPA. Sendo que há muitos artistas inscritos na SPA, muitos, muitos. Os artistas têm uma coisa que é terrível, há muitas pessoas que trabalham no mundo das artes que não têm vínculo quase nenhum. Se carregas ganhas, senão carregas não ganhas. Parece os estivadores. E isso é muito complicado.
Tem esperança no futuro?
Acredito na ciência. Como acredito que nós todos juntos, com um bocado de força e com a ajuda da ciência, penso que em setembro vamos estar de novo a ter os espaços abertos. E tentarmos ter uma vida diferente. Uma coisa que gostava imenso era que as pessoas olhassem para trás e percebessem o que aconteceu, como aconteceu e que depois disto não voltem à normalidade e não tornem a ser todas egoístas.
Em que sentido?
Antes de isto acontecer, havia vizinhos que nunca se cumprimentavam, nem diziam um bom dia. Por outro lado, nunca vi tanta gente a fazer desporto, nunca vi tantos cães, tanta gente a falar aos vizinhos, que não falavam. Por que é que eles falam? Porque não têm mais ninguém para falar. Ou seja, no mesmo prédio mora gente como eu. E se agora as pessoas são simpáticas, será bom que não deixem de o ser. E que não desistam de fazer desporto [risos]. Espero que as pessoas continuem a olhar para ontem. Porque o amanhã chega aí e depois é muito rápido.