Carta aos nossos amigos poetas

Carta aos nossos amigos poetas


Uma outra interpelação crítica suscitada pela antologia “Já não dá para ser moderno: Seis Poetas de Agora”, organizada por Ricardo Marques e publicada pela editora Flan de Tal.


“«Amigos, não há de todo amigos!» exclamava o sábio moribundo”

É um balanço, uma conta, um cálculo – o cômputo do que foi feito, do que poderá ficar, do que ainda nos espera. É coisa de mortos, mesmo quando fala de vivos e para os vivos – apesar de quereres outra coisa ou de fingires querer outra coisa, justiça seja feita. Finda a década, surge então a primeira antologia dos últimos dez anos, (talvez a única, nunca se sabe); feita por ti, por vós, cheia de sensatez e de audácia, tanto uma como outra. A crítica já foi feita num outro lugar e decerto já a conheces, já a leste, por isso queria tentar algo diferente, mesmo correndo o risco do disparate (chamando-o talvez, rindo convosco), queria também eu avaliar uma ou outra ideia, mas avaliar sem cálculo, sem qualquer economia, sem futuro e sem pensar no futuro – como deves calcular, isso não nos importa nem nos diz respeito. Interrogar, por exemplo, essa vossa pulsão histórica, essa tendência para os balanços, para os acertos – será que sempre foi assim? E, se não foi, para que serve ou o que é que nos diz este movimento irrefreável? Que ele seja irrefreável é aquilo que nos faz gostar de vocês, os nossos amigos poetas, aquilo que nos aproxima apesar de tudo. As pulsões, os ímpetos, menos a finalidade que o próprio movimento – isso conseguimos compreender, mesmo que haja aí tanta sensatez, demasiada seriedade, demasiado brio.  

Em Qu’est-ce que la Philosophie? o velho Gilles Deleuze mostrava toda a sua vitalidade sem idade, como uma nuvem não-histórica que paira sobre nós. A questão não era sobre poesia nem sobre antologias, como deves calcular, mas pode fazer-nos sonhar, delirar um pouco sobre como seria uma antologia, o que poderia ser uma antologia, que fosse apanhada por este movimento que chega para desarrumar tudo.  

“É uma questão que se põe no meio de uma discreta agitação, à meia-noite, quando não há mais nada a perguntar. Antes púnhamo-la, púnhamo-la incessantemente, mas era tudo demasiado indirecto ou oblíquo, demasiado artificial, demasiado abstracto e expúnhamo-la, dominávamo-la mais do que éramos dominados por ela. Não éramos suficientemente sóbrios.”

Colocada desta forma, esta questão é índice de uma agitação, de uma irrequietude, de uma certa impaciência que nos toma – a vida, qualquer coisa. Não é uma questão de história (o que é que houve de novo na poesia na última década?), de começar já a inscrever tudo em datas, de ir a correr aos anais da poesia deixar o nome; mas também não é uma questão propositiva (que caminhos poderá ter a poesia?), de preparar com cuidado o futuro, de pensar já na década que vem aí, se vier. 

É mais fugidia, é algo da ordem do rascunho, da pequena nota tomada à pressa: afinal, o que é que andámos a fazer durante este tempo todo? Mas não há aqui qualquer tipo de economia doméstica, qualquer tipo de conta que se faça ou de lição que se queira tirar (daquelas, sujas e intoleráveis, que estão constantemente a dar-nos relativamente ao futuro). Nada de moralismo ou de economias, nada de previsões ou de acertos. Digamos que é da ordem daquela desatenção que se tem quando se pára para retomar o fôlego e se olha para trás e em volta: nada há aqui de contabilidade, não ficas a ver a extensão do que percorreste (mas podes fazê-lo se isso te der um secreto prazer), ficas apenas a saborear o cansaço – e todo o espaço é criado ao ritmo da golfada.

Mas o teu olhar é de escriturário, de contabilista, individual quando poderia e deveria ter sido singular – e é isto de que nós te acusamos, com a tua “nova vaga de originalidade” e os teus autores incontornáveis “para uma futura história da poesia deste período”. E se partirmos do pressuposto de que não há futuro, mesmo sendo isso um erro, um disparate, sobretudo sendo um erro e um disparate, como seria então a tua antologia? Não haveria outras formas de colocar a questão? Não se poderiam inventar novas questões, novas formulações, mesmo correndo esse risco, ou melhor, chamando pelo erro e pelo disparate como algo que se deseja, como índice daquilo que o velho Nemésio sabia, que “a minha vida está velha. Mas eu sou novo até aos dentes.”? O disparate, o erro, como afirmação – é o nosso gosto secreto, tantas vezes inconfessável e de tantas formas inconfessáveis.

Mas o pior para nós, como podem calcular, é o vosso juízo cheio de razão – e vocês, sabemos bem, gostam de ter razão e querem-na (mas lá dizia um dos sábios: mais vale estar errado com Sartre do que certo com Aron). Eis então o que dizem, o vosso juízo sensato, o vosso olhar ponderado, toda a vossa sabedoria:

“De uma forma natural, uma nova geração foi-se perfilhando enquanto o espaço para a poesia e o discurso crítico se foi encurtando. Ao mesmo tempo que as editoras mais conhecidas se foram afastando da fervilhante cena poética, também se deu o fenómeno da contracção do espaço, em periódicos, para a crítica da poesia (menos e de menor profunidade). Suplementos e revistas literárias, onde se poderia articular algum tipo de discurso valorativo que levasse a consensos mínimos, foram ainda suprimidos ou severamente reduzidos. Este é um problema que continua na novíssima geração e que tem directamente a ver com uma mundividência neoliberal sobre a cultura”

Que não vejam nenhum problema com este discurso é sintomático. Aparentemente, a “mundividência neoliberal” reduziu a nada o espaço crítico na imprensa periódica, afastou as grandes editoras da edição de poesia e concentrou as “editoras mais célebres” em grupos editoriais “de forma a atender à pressão neoliberal do mercado”. Mas isto, afinal, não é mau e o cortejo triunfal continua na “fervilhante cena poética”, porque desta destruição sai-se de forma apoteótica para uma miríade de novas editoras e para um “panorama heterogéneo na nova poesia portuguesa”. Que isto seja, na realidade, uma cópia do funcionamento da economia de mercado e uma paráfrase da famosa “destruição criadora” parece não importunar os nossos amigos poetas.  

E que dizer desta explosão de editoras, das múltiplas edições de autor, do “autor anónimo” de que falas, do “caudal heterogéneo de nomes” – isso que, para vocês, é sintoma da “fervilhante cena poética”, é o fervilhar ele próprio da cena poética? E porque não dizer o contrário, que toda essa fragmentação não é outra coisa que não uma desagregação ou corresponderia a uma mutação tecnológica, digital, que teríamos que interrogar? Começas por falar de uma geração que não é bem geração:

“Como dizia atrás, não penso que haja um traço dominante que possa unir estes nomes e essa é a verdadeira característica dessa geração enquanto todo. A dificuldade de qualquer consenso é precisamente o facto de estarmos perante uma geração que não se assume contra outra, nem em torno de um manifesto/revista/grupo, mas que se assume individualmente, em nome próprio, talvez pela primeira vez em muitas décadas”

Eis a vossa glória: falar individualmente, falar em nome próprio. É uma geração negativa, que só se define pela falta de características – culpa vossa ou de Laio, que talvez se tenha ido embora. Que fujam de qualquer grupo é compreensível: este parece-vos o lugar onde se diluem, vocês que gostam tantos dos vossos nomes individuais, de falar em nome próprio (ou quando têm grupos é apenas para garantirem o vosso nome individual, numa lógica de Sociedade Anónima, distribuindo dividendos).

O que não consegues compreender é esta ligação entre colectivo, individual e anónimo. Achas que depois dos grupos só poderão vir esses indivíduos que falam em nome próprio e que são apenas o lugar onde a fragmentação e o vazio se deixa ver – é isto essa tal de “mundividência neoliberal” de que tanto falas, quando tudo se resume a esses indivíduos que falam individualmente, apenas para si e apenas em nome próprio. E se isto for assim, se esta geração for apenas isto que dizes que ela é, então o teu juízo está virado do avesso e não há cena, nem campo poético nem nada disso. Há apenas desagregação e fragmentação, cada um falando sozinho e para si. 

Mas não gostas de grupos, nunca gostaste, e nós, deixa que te diga, também não gostamos. As coisas são sempre mais soltas, aliás, sempre foram mais soltas – todas aquelas zangas, todos os afastamentos, tudo isso soava já a um riso que chega de longe. Chamemos de “bando”, um nome que apreciamos mais. É a nossa forma de estar, de nos relacionarmos, de não querermos nada com os nossos amigos poetas nem com as suas lógicas, os seus optimismos, a sua sensatez e a sua bondade. Conhecemo-nos, encontramo-nos, há desejos, ideias, ódios que ressoam uns nos outros, uns com os outros, juntamo-nos, afastamo-nos segundo ritmos que são próprios e alheios – mas talvez tenha sido sempre assim, e desde sempre falemos a nível singular e colectivo, anónimo acima de tudo, trocando o singular pelo plural, confundido tudo, dizendo “eu” ou “nós” consoante o gosto do momento. Sem a consistência do grupo, portanto, nem o vazio do indivíduo que fala sozinho, tentando escapar a um e a outro, caindo tantas vezes num e noutro, tanto erro e tanto disparate e nenhuma lição tomada.

Mas tu continuas, com o teu optimismo obstinado, e eis que nos apresentas uma nova figura, o “leitor anónimo”. Podias ter perdido mais tempo e ter dito mais sobre o impacto dos meios internéticos na poesia – tanto na forma como é recepcionada como na forma como é feita – mas nós sabemos bem que tu não vês problema nenhum e, como tal, não é preciso perder muito tempo no assunto. Na vossa precipitação, no vosso entusiasmo, na pulsão que vos toma, no desejo no limite do qual escrevem,, detectam logo uma mutação fundamental: o leitor já não se encontra submetido a qualquer mediação, está nu agora diante dos poemas, sem saber o que pensar e o que dizer. É o vosso modernismo: sem mediação, a poesia está finalmente na rua, a palavra é de qualquer um, as editoras abrem as portas a toda uma massa de poetas diferentes entre si, os poetas fazem edições de autor, as palavras circulam sem mediação, fazem-se revistas digitais, tudo num ambiente “fervilhante”, como dizes. 

“dito por outras palavras, a poesia foi devolvida ao leitor anónimo, mesmo que para ele seja mais difícil hoje, sem uma mediação activa, profunda e imparcial da crítica, conseguir reconhecer de imediato aquilo de que gosta. Se isso resultou, comparativamente ao período imediatamente anterior, no aumento no número de leitores, não se sabe, mas pelo menos a poesia tornou-se visível de outras formas”

Este leitor anónimo é o consumidor que vê poemas individuais passarem-lhe à frente no ecrã e vai escolhendo aqueles de que gosta – e aqueles que gosta são aqueles de que mais facilmente gosta. Mas este leitor anónimo de que falas e de que gostas tanto tem um seu irmão no poema cujo intuito é produzir um efeito – porque só produzindo um efeito imediato é que conseguirá sobreviver no inferno pré-humano dos meios internéticos.

Sinto-me na obrigação de me justificar. Porquê este tom ambíguo, que tanto pode ser jocoso como sério, tanto o índice de uma proximidade efectiva, real, como de uma má vontade disfarçada, que finge o seu contrário? E, na realidade, quem poderá alguma vez decidir qual o tom correcto? Se quisesse de facto justificar-me diria, então, que esta antologia, na troca constante entre sensatez e audácia, me levou a esta missiva que não é, evidentemente, uma missiva, mas o discurso de si para si do crítico.