As mulheres, a ciência e tecnologia e os outros


Desculpem a ironia, mas tenho vontade de perguntar: será que só as mulheres se preocupam com os problemas éticos do software? Se assim for, torna-se urgente trazer mais mulheres para a investigação em IA e para as áreas de STEM. O mundo tem que se tornar mais justo e igualitário!


Sou de uma Escola de Engenharia, o Instituto Superior Técnico (IST), e a falar sobre problemas de igualdade de género em Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática (STEM, da sigla em inglês) com colegas, homens e mulheres, tenho muitas vezes a reação “Como assim? A igualdade de género não é já um problema resolvido? Não será problema que apenas persiste em países menos desenvolvidos?”

 Segundo a União Europeia (https:// eige.europa.eu/gender-mainstreaming/concepts-and-definitions), existe igualdade de género quando há uma participação proporcional à percentagem da população de mulheres e homens em todas as esferas do trabalho, ensino e investigação. Em muitas áreas STEM, existe uma participação inferior ao esperado com base na quota de população feminina mundial, que é aproximadamente 50%, variando de país para país. Em Portugal, em 2019, a percentagem de mulheres era 52.7% (https://data.worldbank.org/indicator/) mas nos meus últimos semestres letivos, quando entrei no anfiteatro para dar a primeira aula teórica a estudantes que entraram para Informática do Técnico Taguspark consegui contar nove (2017), 16 (2018) e 10 (2019) raparigas em turmas que totalizavam 110 estudantes. Estamos longe da igualdade de género nestas turmas de Informática, e mesmo no Técnico em geral, entre os 19 cursos disponíveis somente Ambiente e Arquitetura têm paridade de género.

Vou partilhar alguns números que me assustaram e que acho importante divulgar:

 – De acordo com um relatório de 2020 do World Economic Forum, a igualdade de género em geral, não apenas nas áreas STEM, levará ainda 99,5 anos para ser alcançada (isto se continuarmos a trabalhar nesse sentido);

– No relatório do Projeto Pisa 2018, encontramos a indicação que apenas 1% das raparigas de 15 anos admitiu ter interesse em tecnologias de informação;

Segundo o Pisa 2018, consta que embora as diferenças cognitivas entre os géneros, em particular para a aprendizagem da Matemática e Ciências, não sejam atualmente justificadas pelas últimas descobertas das neurociências, a educação continua a ignorar os seus aspetos sociais e emocionais. Dito numa linguagem mais terra a terra: a educação continua a veicular a imagem estereotipada das profissões ditas para “meninos” e para “meninas”. Os meninos vão para o Espaço e as meninas vão cuidar dos outros… É muito comum, em muitos países europeus, não sendo Portugal uma exceção, aconselhar-se vivamente uma menina que mostra bons resultados em Matemática e Ciências a ir para Medicina, Farmácia ou Biologia e não para outros cursos.

Podemos ver as consequências destes estereótipos mesmo em países nórdicos tidos como um modelo de educação inclusiva – aí, as percentagens de graduadas em STEM continuam a estar abaixo de 20% (2019). Em Itália e no Reino Unido, a percentagem de graduação feminina chega a alcançar os 30%, mas há muito poucas mulheres a exercer profissões cientifico-tecnológicas. Em Portugal, a percentagem de mulheres em carreiras STEM é 31% (2020). Nos Estados Unidos, a percentagem de mulheres graduadas (Bachelor) em Informática (Computer Science) em 1984 foi 37%. A partir daí foi sempre a diminuir até uma percentagem atual próxima de 20%, semelhante à que existia nos anos 70 do século passado. No país da Google, Facebook e Amazon, as áreas da Inteligência Artificial (IA) e da Aprendizagem Automática (Machine Learning) estão maioritariamente nas mãos de homens brancos. Na Google USA, em 2020, a percentagem de mulheres de origem afro-americana nos quadros técnicos era 0.7%.

Há o caso exemplar de Timnit Gebru, mulher de origem etíope graduada em Stanford em Informática, que faz investigação na área de algoritmos preconceituosos e ciência de dados. Começou por ser uma das investigadoras que chamou a atenção para a inconsistência dos algoritmos de reconhecimento de face, em particular o da Amazon, mostrando que estes só não erram muito quando tentam reconhecer um rosto branco masculino. Juntou a sua voz em 2019 a outras para impedir a venda deste software da Amazon à polícia americana. Em dezembro de 2020, sendo responsável do Departamento de Ética de IA na Google, foi sumariamente despedida depois da empresa se ter apercebido que ela tinha submetido um artigo científico que levantava várias questões éticas sobre modelos IA de linguagem de larga escala. Timnit Gebru incorreu no erro de achar que as suas publicações científicas na área da Ética da IA lhe davam imunidade para criticar os desenvolvimentos de software que tantos lucros poderão trazer para a Google. No mês de fevereiro de 2021, uma outra mulher do Departamento de Ética de IA da Google, Margaret Mitchell, desta vez uma mulher branca, foi despedida por ter opiniões sobre a política de contratação de quadros da empresa e por ter apoiado Timnit Gebru.

Tudo isto é muito recente, preocupante e tem a intenção de silenciar, tornar invisível, e desmoralizar as poucas mulheres que se atrevem a trabalhar em áreas relevantes como IA e ciência de dados. Desculpem a ironia, mas tenho vontade de perguntar: será que só as mulheres se preocupam com os problemas éticos do software? Se assim for, torna-se urgente trazer mais mulheres para a investigação em IA e para as áreas de STEM. O mundo tem que se tornar mais justo e igualitário!

Como trazer mais mulheres para carreiras tecnológicas e científicas? Agindo em todas as etapas, desde a família à escola. Todas as medidas de inclusão são relevantes e o mais importante é não separar as funções e competências por género. Se quiserem saber como evitar mais estereótipos na educação, podem ler as publicações do projeto europeu FOSTWOM (https://fostwom.eu), de que o Técnico faz parte. Para além do relatório sobre a disparidade dos números em STEM, encontram facilmente uma ferramenta, a que chamámos FOSTWOM Toolkit, que é uma listagem de assuntos a ter em atenção quando se deseja produzir conteúdos educacionais multimédia numa linguagem mais inclusiva, com exemplos e bibliografia mais abrangente.

 

 Professora do Instituto Superior Técnico


As mulheres, a ciência e tecnologia e os outros


Desculpem a ironia, mas tenho vontade de perguntar: será que só as mulheres se preocupam com os problemas éticos do software? Se assim for, torna-se urgente trazer mais mulheres para a investigação em IA e para as áreas de STEM. O mundo tem que se tornar mais justo e igualitário!


Sou de uma Escola de Engenharia, o Instituto Superior Técnico (IST), e a falar sobre problemas de igualdade de género em Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática (STEM, da sigla em inglês) com colegas, homens e mulheres, tenho muitas vezes a reação “Como assim? A igualdade de género não é já um problema resolvido? Não será problema que apenas persiste em países menos desenvolvidos?”

 Segundo a União Europeia (https:// eige.europa.eu/gender-mainstreaming/concepts-and-definitions), existe igualdade de género quando há uma participação proporcional à percentagem da população de mulheres e homens em todas as esferas do trabalho, ensino e investigação. Em muitas áreas STEM, existe uma participação inferior ao esperado com base na quota de população feminina mundial, que é aproximadamente 50%, variando de país para país. Em Portugal, em 2019, a percentagem de mulheres era 52.7% (https://data.worldbank.org/indicator/) mas nos meus últimos semestres letivos, quando entrei no anfiteatro para dar a primeira aula teórica a estudantes que entraram para Informática do Técnico Taguspark consegui contar nove (2017), 16 (2018) e 10 (2019) raparigas em turmas que totalizavam 110 estudantes. Estamos longe da igualdade de género nestas turmas de Informática, e mesmo no Técnico em geral, entre os 19 cursos disponíveis somente Ambiente e Arquitetura têm paridade de género.

Vou partilhar alguns números que me assustaram e que acho importante divulgar:

 – De acordo com um relatório de 2020 do World Economic Forum, a igualdade de género em geral, não apenas nas áreas STEM, levará ainda 99,5 anos para ser alcançada (isto se continuarmos a trabalhar nesse sentido);

– No relatório do Projeto Pisa 2018, encontramos a indicação que apenas 1% das raparigas de 15 anos admitiu ter interesse em tecnologias de informação;

Segundo o Pisa 2018, consta que embora as diferenças cognitivas entre os géneros, em particular para a aprendizagem da Matemática e Ciências, não sejam atualmente justificadas pelas últimas descobertas das neurociências, a educação continua a ignorar os seus aspetos sociais e emocionais. Dito numa linguagem mais terra a terra: a educação continua a veicular a imagem estereotipada das profissões ditas para “meninos” e para “meninas”. Os meninos vão para o Espaço e as meninas vão cuidar dos outros… É muito comum, em muitos países europeus, não sendo Portugal uma exceção, aconselhar-se vivamente uma menina que mostra bons resultados em Matemática e Ciências a ir para Medicina, Farmácia ou Biologia e não para outros cursos.

Podemos ver as consequências destes estereótipos mesmo em países nórdicos tidos como um modelo de educação inclusiva – aí, as percentagens de graduadas em STEM continuam a estar abaixo de 20% (2019). Em Itália e no Reino Unido, a percentagem de graduação feminina chega a alcançar os 30%, mas há muito poucas mulheres a exercer profissões cientifico-tecnológicas. Em Portugal, a percentagem de mulheres em carreiras STEM é 31% (2020). Nos Estados Unidos, a percentagem de mulheres graduadas (Bachelor) em Informática (Computer Science) em 1984 foi 37%. A partir daí foi sempre a diminuir até uma percentagem atual próxima de 20%, semelhante à que existia nos anos 70 do século passado. No país da Google, Facebook e Amazon, as áreas da Inteligência Artificial (IA) e da Aprendizagem Automática (Machine Learning) estão maioritariamente nas mãos de homens brancos. Na Google USA, em 2020, a percentagem de mulheres de origem afro-americana nos quadros técnicos era 0.7%.

Há o caso exemplar de Timnit Gebru, mulher de origem etíope graduada em Stanford em Informática, que faz investigação na área de algoritmos preconceituosos e ciência de dados. Começou por ser uma das investigadoras que chamou a atenção para a inconsistência dos algoritmos de reconhecimento de face, em particular o da Amazon, mostrando que estes só não erram muito quando tentam reconhecer um rosto branco masculino. Juntou a sua voz em 2019 a outras para impedir a venda deste software da Amazon à polícia americana. Em dezembro de 2020, sendo responsável do Departamento de Ética de IA na Google, foi sumariamente despedida depois da empresa se ter apercebido que ela tinha submetido um artigo científico que levantava várias questões éticas sobre modelos IA de linguagem de larga escala. Timnit Gebru incorreu no erro de achar que as suas publicações científicas na área da Ética da IA lhe davam imunidade para criticar os desenvolvimentos de software que tantos lucros poderão trazer para a Google. No mês de fevereiro de 2021, uma outra mulher do Departamento de Ética de IA da Google, Margaret Mitchell, desta vez uma mulher branca, foi despedida por ter opiniões sobre a política de contratação de quadros da empresa e por ter apoiado Timnit Gebru.

Tudo isto é muito recente, preocupante e tem a intenção de silenciar, tornar invisível, e desmoralizar as poucas mulheres que se atrevem a trabalhar em áreas relevantes como IA e ciência de dados. Desculpem a ironia, mas tenho vontade de perguntar: será que só as mulheres se preocupam com os problemas éticos do software? Se assim for, torna-se urgente trazer mais mulheres para a investigação em IA e para as áreas de STEM. O mundo tem que se tornar mais justo e igualitário!

Como trazer mais mulheres para carreiras tecnológicas e científicas? Agindo em todas as etapas, desde a família à escola. Todas as medidas de inclusão são relevantes e o mais importante é não separar as funções e competências por género. Se quiserem saber como evitar mais estereótipos na educação, podem ler as publicações do projeto europeu FOSTWOM (https://fostwom.eu), de que o Técnico faz parte. Para além do relatório sobre a disparidade dos números em STEM, encontram facilmente uma ferramenta, a que chamámos FOSTWOM Toolkit, que é uma listagem de assuntos a ter em atenção quando se deseja produzir conteúdos educacionais multimédia numa linguagem mais inclusiva, com exemplos e bibliografia mais abrangente.

 

 Professora do Instituto Superior Técnico