Maya Angelou. Sei porque canta o pássaro violado na gaiola

Maya Angelou. Sei porque canta o pássaro violado na gaiola


Editado pela Antígona, Sei Porque Canta O Pássaro Na Gaiola de Maya Angelou (1928-2014) é uma autobiografia poderosa e comovente escrita em 1969.


A imagem deste pássaro engaiolado foi resgatada do poema The Sympathy da autoria de Paul Lawrence Dunbar, poeta afro-americano dos anos vinte extremamente apreciado por Angelou. Como Dunbar, Angelou sabia por que razão “o pássaro enjaulado bate as suas asas// Até que o sangue seja vermelho nas barras cruéis.”  Como Dunbar, ela provou o acetoso travo que “ainda pulsa nas velhas cicatrizes antigas.”

Esta é sem dúvida, uma imagem pungente que nos remete para um tempo cruel de aprisionamento, de medo, de escravidão. Para o tempo da população negra segregada numa América em profundo desequilíbrio. Mas esse desequilíbrio nas palavras de Angelou traduziu-se em esperança, resiliência, e daí toda a sua obra ser a espécie de Manifesto de que Diana V. Almeida nos fala no posfácio.

Mas este pássaro engaiolado não é apenas um pássaro negro, é antes um pássaro negro oprimido, humilhado, “alvo de cuspidelas e insultos”, mas ainda assim, é um pássaro que canta. Que canta para enxotar, para espolinhar, que canta para se erguer entre a brancura ominosa, enviesada e malévola. Um pássaro que canta para que a sua voz possa fazer chegar ao céu toda a sua agonia, todo o seu desespero.

“Os brancos eram tão estranhos”; “Os brancos são diferentes, como as pessoas dizem?”; “Não compreendia a ideia de que se pudesse falar com brancos sem se pôr minimamente a vida em perigo”; “Um negro nem sequer podia comprar gelado de baunilha. A não ser no 4 de Julho. Nos outros dias, tinha de se contentar com chocolate”; “Os brancos não podiam ser pessoas, porque tinham os pés demasiado pequenos, a pele demasiado branca e transparente, e quando andavam, não apoiavam o pé na parte da frente como fazem as pessoas: caminhavam pondo o peso nos calcanhares, como os cavalos”; “Eu não compreendia os brancos”; “Os brancos, regra geral, tinham a língua demasiado solta e as suas palavras eram uma aberração perante Cristo”; “Lembro-me de não acreditar que os brancos existissem de verdade.”

A dicotomia que perpassa esta narrativa acaba por ser somente esta, a dos brancos versus negros, a dos poderosos versus espoliados, violados, carcomidos.

Dois irmãos, Margorite e Bailey, nascidos na Califórnia são enviados aos sete anos para os cuidados da avó paterna em Stamps, após o divórcio dos pais. A vida de ambos vai ser pautada por uma infância e uma adolescência aos solavancos.

Em Stamps, a avó,(mãezinha como é tratada pelos netos) é a única mulher negra que é proprietária de uma loja de comércio. Eles são a única família negra a não depender da ajuda do Estado quando se dá a Grande Depressão, e são mais ricos do que qualquer branco pobre da vila. Interessante esta distinção dos brancos. Para Angelou, existiam os brancos e os brancos pobres. Estes viviam a maior parte nos terrenos da sua avó, nas traseiras da loja.

“Stamps, no Arkansas, bem podia ser uma povoação qualquer na Geórgia, no Alabama ou no Mississipi, como um nome tão sugestivo como ”Vilareca do Sul”, “Enforquem-nos” ou “Põe-te A Andar Antes Que O Sol Se Ponha, Preto”.

Ao longo da narrativa, Stamps, irá sempre estar de acordo com o estado de alma dos dois irmãos, mais em particular de Maya.

Esta loja da avó será o espaço primordial onde a maior parte da acção se desenrola. É o lugar onde a população se abastece, onde todos assistem à consagração do vitorioso pugilista Joe Louis, à chegada de gente nova à vila, ao abrigo de fugitivos negros (mesmo que nem sempre fossem inocentes). A loja é onde nas noites de inverno os clientes tardios “se sentavam à volta do aquecedor a assar amendoins e a competir uns com os outros para ver quem contava a história mais assustadora sobre fantasmas e assombrações, arautos da morte e amuletos, vudus e outras coisas inimigas da vida.” Acontece que a ocorrência mais hedionda desta autobiografia não acontece na loja, por entre o cheiro tentador das especiarias ou das latas de conservas ou dos pickles em calda. Acontece em St Louis na casa da mãe e do seu namorado, Mr. Freeman. É lá que Marguerite é brutalmente violada.

A violação é, sem dúvida, uma das passagens mais dolorosas desta narrativa. “- Não, Mr Freeman. – Comecei a recuar. Não queria tocar outra vez naquela coisa dura e mole ao mesmo tempo, e já não precisava que ele me abraçasse. Agarrou-me o braço e puxou-me para o meio das pernas. A cara dele continuava impassível e bondosa, mas não tinha um sorriso nem pestanejava. Nada. Ele limitou-se a estender a mão esquerda para pôr o som da rádio mais alto, sem sequer olhar. Sobrepondo a voz ao barulho da música e das interferências, disse: – Isto não vai doer muito. (…) As pernas dele esmagavam-me a cintura. – Puxa as calças para baixo. Hesitei por dois motivos: ele estava a apertar-me tanto que eu nem me conseguia mexer e tinha a certeza de que, a qualquer instante, a minha mãe ou o Bailey ou o Besouro Verde iam entrar pela sala dentro e salvar-me.” Infelizmente ninguém apareceu para a salvar.

Depois deste cruel episódio e do assassinato do violador pelas mãos dos tios de Marguerite, as crianças retornam aos cuidados da avó. Mas nessa altura, é uma Marguerite diferente que regressa. Mais fechada, mais para dentro, praticamente muda. Cada vez mais refugiada nos seus livros, só voltará a falar anos mais tarde motivada por Mrs. Flowers, a aristocrata da população negra de Stamps. “Ela cativava-me, porque me fazia lembrar pessoas que nunca tinha conhecido pessoalmente. Como as mulheres dos romances ingleses que passeavam nas charnecas (fosse lá isso o que fosse), com os seus cães fiéis correndo a uma distância respeitosa. Como as mulheres que se sentavam em frente das lareiras crepitantes, a beber chávena atrás de chávena de chá, em bandejas de prata cheias de scones e bolos. Mulheres que galgavam montes e liam livros encadernados a marroquim e tinham dois apelidos ligados por um hífen. Podia dizer-se sem hesitar que ela me fazia sentir orgulho em ser negra. Ela comportava-se com o mesmo requinte dos brancos dos filmes e dos livros, e ainda era ainda mais bonita, porque nenhum deles se poderia ter aproximado daquela sua cor quente sem parecer cinzento por comparação.”

A cor. Tudo se resume à cor nesta autobiografia. À cor, à fúria e à disparidade da cor. Acabámos de ler no parágrafo anterior que os brancos para a raça negra apenas eram melhores no cinema ou nos livros. Angelou, a respeito das suas leituras, confessa que Shakespeare foi o seu primeiro amor branco, mas evitava lê-lo com medo que a avó descobrisse e a castigasse, porque os negros só deveriam ler negros, os negros só deveriam ouvir Gospel ou conviver com outros negros.

“Embora gostasse e respeitasse Kipling, Poe, Samuel Butler, Thackeray e William Ernest Henley, guardei a minha paixão jovem e leal para Paul Lawrence Dunbar, Langton Hughes, James Weldon Johnson e Litany of Atlanta de W.E.B. Du Bois, mas foi Shakespeare quem disse: ‘De mal com os homens e com a fortuna’. Era um estado com o qual eu me identificava profundamente.”

Próxima de Martin Luther King, Malcom X, activista de primeira linha, Angelou foi uma incansável defensora da igualdade racial. “Nenhum de nós pode ser livre até que todos sejamos livres” era uma das suas máximas. Uma entre várias.

Professora universitária em Wake Fortest, amiga de James Baldwin, romancista, guionista, compositora, poeta, feminista, esta “Phenomenal Woman” foi um estandarte, em especial para o sexo feminino negro.  Escudava a ideia de que todas mulheres deviam ser fenomenais, que “uma mulher em harmonia com o seu espírito é como um rio a fluir. Vai onde vai sem pretensão e chega ao seu destino para ser ela mesma e somente ela mesma.”

Amanda Gorman também acaba de ser exemplo e herdeira desse rio a fluir. Depois de recentemente a termos ouvido declamar The Hill We Climb no dia em que Joe Biden chega à Casa Branca, não tivemos como não recuar a Angelou que também recitou um dos seus poemas na tomada de posse de Jimmy Carter em 1977 e posteriormente na de Bill Clinton em 1993.

Aliás, se nos lembrarmos do segundo, On Pulse of Morning “A Pedra, o Rio, a Árvore” notamos uma forte proximidade entre o eu poético de ambas. A força matriz dos dois é a mesma. O poder do sonho, da justiça, da esperança, da retidão é o mesmo.

Se em Gorman, a imagem metafórica está impressa na ‘colina que subimos’, em Angelou está na pedra, no rio, na árvore. Vejamos como este apelo à natureza e à liberdade está em sintonia plena com o apelo à harmonia, à comunhão e à paz da própria natureza humana. Notemos como nos dois textos poéticos predominam os braços abertos a todos os povos e a todas as culturas, cores e condições. Vejamos também como a ideia de luz e do amanhecer perpassa os dois textos. Se em On Pulse Of Morning lemos num verso “Levantem os seus rostos/ Há uma manhã brilhante amanhecendo”, em Gorman lemos “Quando amanhecer, nós deixaremos a sombra, ardentes e sem medo. // Uma nova madrugada floresce enquanto a libertamos // Porque há sempre luz se formos suficientemente bravos para a ver/ se formos suficientemente bravos para o ser.”

A noção de bravura também é outra característica presente nos dois poemas. De bravura, de luta e de perseverança, mas talvez a maior diferença entre os dois para além do cunho individual que Gorman lhe atribui, quando alega ser “uma pequena rapariga Negra descendente de escravos, /e criada por uma mãe solteira”, seja a religiosidade. Pois bem, o caráter religioso, que é uma constante em toda a obra de Angelou, neste caso acaba por não ser tão escancarada como em Gorman. Relembremos os versos em que Amanda faz alusões às escrituras. “As escrituras dizem-nos para imaginarmos que ‘todos se sentem debaixo da sua própria vinha e figueira e que ninguém os faça recear.’” Se neste seu poema Amanda Gorman recorre à religião para enfatizar certas ideias vinculando-as a um universo religioso, no de Angelou, ela desvia-se dessa temática aproximando-se também da espiritualidade, porém, através de outros símbolos e alegorias.

Mas o mesmo não acontece neste seu livro, porque em Sei Porque Canta O Pássaro Na Gaiola, Deus, principalmente na figura da avó, tem uma presença preponderante no bom e no mau sentido. No mau sentido, porque em determinadas situações a religião chega a roçar o fanatismo. Há várias situações que nos provam isso, por exemplo na passagem em que do nada esta avó dá uma sova aos dois irmãos apenas e exclusivamente por terem usado em vão a expressão “é verdade”, quando a verdade só a Deus pertencia. Fanatismo também, quando Angelou observava os seus conterrâneos exaustos e com fome, irem à missa e darem a dízima, em vez de repousarem e de se pouparem nas suas casas. “Ir à Igreja naquela nuvem de cansaço? Em vez de irem para casa e descansarem aqueles ossos massacrados numa cama de penas? Veio-me à cabeça a ideia de que talvez o meu povo fosse uma raça de masoquistas e que não só tínhamos a sina de levar a vida mais pobre e dura de todas, mas que ainda por cima gostávamos dela assim.”

Mais do que uma autobiografia, este livro é um registo corajoso do que foram as trincheiras racistas e preconceituosas que separaram negros e brancos em território americano durante décadas. “Uma pessoa só é livre quando percebe que não pertence a lugar nenhum – pertence a todos os lugares.”