Créditos Compensatórios Conjugais: Ó Abreu, dá cá o meu!


A propósito do recente caso tornado público em que um homem foi condenado a pagar quase 61 mil euros à antiga companheira por trabalho doméstico, há perguntas que se levantam.


No que toca ao casamento ou a uma união de facto, o dever – de ambos os cônjuges – contribuírem para os encargos da vida familiar está contemplado no Código Civil Português desde o ano de 2008.

A lei é, no entanto, clara, quanto ao facto de este dever ser cumprido numa base de harmonia com aquilo que são as possibilidades de cada um dos cônjuges, não obrigando, assim, a uma contribuição exactamente igual de parte a parte e concedendo ao casal, no seio daquilo que é a sua privacidade, a distribuição de tarefas e encargos.

Não quer isto dizer que a obrigação de contribuição não recaia sobre uma das partes, mas que o fará de forma proporcional às suas possibilidades e sempre de acordo com aquilo que for estabelecido ser o melhor, por ambos.

Posto isto, aquilo que o nº 2 do artigo 1676 do Código Civil Português estabelece é que quando há lugar a que a contribuição de um dos cônjuges para com os encargos da vida em comum seja francamente superior ao previsto anteriormente, o cônjuge que tenha visto ser-lhe alienado o igual direito à satisfação dos seus interesses, designadamente da sua vida profissional, com prejuízos patrimoniais significativos, em detrimento da vida familiar, está no direito de exigir ao outro a devida compensação.

A propósito do recente caso tornado público em que um homem foi condenado a pagar quase 61 mil euros à antiga companheira por trabalho doméstico, há perguntas que se levantam.

Ana Morais Cardoso, advogada da Sociedade de advogados Morais Cardoso e Associados, responde.

É o primeiro caso deste género com um parecer favorável à requerente?

– Não, não é o primeiro, mas normalmente os valores atribuídos são bastante inferiores pelo que não chegam a ser notícia. Para além disso, existe a convicção de que o beneficiário tem que ser necessitado, aspecto com que não concordo. Do meu ponto de vista, não deveria ser determinante se o beneficiário tem ou não património próprio ou forma alternativa de subsistência; nem mesmo se tem necessidade da compensação. A compensação é devida ou não é devida.

Como provar que a contribuição para a vida familiar não foi/ é feita na igual medida por ambos os cônjuges?

– A prova é difícil porque dentro de cada casa só vive normalmente marido, mulher e filhos. Os casais, e bem, não gostam de chamar os filhos a testemunhar, pelo que ficamos dependentes de prova por declarações das partes (que obedece a um regime muito especial). Outra das dificuldades é apurar o prejuízo. Onde teria aquela pessoa chegado se não tivesse abdicado de tudo que não fosse a sociedade conjugal?  

Para dar início a um pedido de indemnização por créditos de compensação conjugal, é preciso ainda coabitar com o cônjuge? Existem retroactivos?

– Este pedido é feito em processo de inventário, salvo se os cônjuges forem casados em separação de bens, que corre em processo comum, pelo que é necessário haver separação prévia. Não existem retroativos, é apurado valor pelo tempo inteiro da dedicação em excesso. Durante a coabitação, existem outras formas de assegurar a subsistência do cônjuge mais desfavorecido, nomeadamente o instituto de alimentos a cônjuges.

Sendo que o valor da indemnização poderá ser determinado pelo Tribunal tendo por base o salário mínimo nacional multiplicado pelos 12 meses e depois, pelo número de anos que o requerente viveu nesta situação, com que fundamento é que essa soma é posteriormente atenuada, resultando em indemnizações mais leves e menos justas? Porque, honestamente, parece-me tratar-se de uma pena patriarcal quase.

– Esse critério pode valer para um caso concreto e não valer para outro e tanto pode pecar por excesso como por insuficiência. Já formulei pedidos com base noutros critérios, por exemplo, parte do valor do património adquirido só por um dos cônjuges (uma vez que casados em separação de bens), ou parte dos vencimentos auferidos durante os anos em que a/o requerente não trabalhou.

Pesa tratar-se de um casamento ou união de facto?

– A lei está feita para o casamento, este último acórdão aplicou a lei, e bem, a uma união de facto.

Tendo em conta que, em primeira instância, o Tribunal de Barcelos considerou não haver lugar ao pagamento de qualquer quantia por considerar tratar-se do “cumprimento espontâneo de obrigação natural” e que em recurso, a Relação deu razão à requerente, pergunto de que estão dependentes as decisões dos juízes? A aplicabilidade da lei não é transversal a todo e qualquer órgão de justiça nela baseado? Estamos dependentes da subjectividade dos pareceres pessoais dos juízes de cada município?

Da mesma forma que estamos sujeitos a critérios subjectivos de médicos, professores, superiores hierárquicos e afins, também estamos sujeitos aos critérios de cada Juiz dentro da liberdade que o legislador concedeu. Estes processos são especialmente afectados pela parte subjectiva, mas não existe outra forma e existe sempre (ou quase sempre) o tribunal de recurso. Claro que me deparo com um juiz com menos de 30 anos a julgar um processo destes e fico logo com receio que não consiga sequer entender bem do que se trata, a profundidade do problema. 

De que forma seria possível acautelar situações de desequilíbrio extremo no seio da vida conjugal?

– Educação e tempo. As pessoas casam sem fazer a mínima ideia das consequências. Compram casa, compram carro, abrem contas bancárias, aceitam regimes de casamento, têm filhos, misturam patrimónios. Deveria haver um curso civil de preparação para o matrimónio onde fosse explicado o regime de bens e as consequências patrimoniais do contrato que estão a assinar. O resto vem com o tempo, é um processo natural. As minhas filhas já não vão aceitar certas coisas que eu aceitei tal como eu já não aceito coisas que a minha mãe aceitou.

É educação geracional. Que a educação vem do berço já é sabido e aqui, berço não pretende ser uma metáfora para uma qualquer condição abastada porque também é sabido que há coisas que o dinheiro não compra e o carácter, ou se tem ou não se tem. É a mentalidade geracional que tem que mudar para que consigamos, enquanto país, praticar aquilo que tão bem pregamos: uma sociedade igualitária.

Embora o número de mulheres que vivem neste contexto seja muito superior ao de homens em igual ou semelhante contexto, por vivermos numa sociedade que ainda se debate para combater o patriarcado, não pode ser ignorado o facto de que também os há, certamente.

Mas não está aqui em causa uma guerra dos sexos e sim a crescente necessidade de que valores mais altos se levantem que não reduzam estes fenómenos ao ser-se homem ou mulher. O respeito, a solidariedade, a empatia, a compaixão, a humildade são tudo valores que não têm sexo, mas são e serão sempre mais de uns que de outros.

O caminho a fazer será sempre no sentido de tornar o Homem mais humano.

 

Créditos Compensatórios Conjugais: Ó Abreu, dá cá o meu!


A propósito do recente caso tornado público em que um homem foi condenado a pagar quase 61 mil euros à antiga companheira por trabalho doméstico, há perguntas que se levantam.


No que toca ao casamento ou a uma união de facto, o dever – de ambos os cônjuges – contribuírem para os encargos da vida familiar está contemplado no Código Civil Português desde o ano de 2008.

A lei é, no entanto, clara, quanto ao facto de este dever ser cumprido numa base de harmonia com aquilo que são as possibilidades de cada um dos cônjuges, não obrigando, assim, a uma contribuição exactamente igual de parte a parte e concedendo ao casal, no seio daquilo que é a sua privacidade, a distribuição de tarefas e encargos.

Não quer isto dizer que a obrigação de contribuição não recaia sobre uma das partes, mas que o fará de forma proporcional às suas possibilidades e sempre de acordo com aquilo que for estabelecido ser o melhor, por ambos.

Posto isto, aquilo que o nº 2 do artigo 1676 do Código Civil Português estabelece é que quando há lugar a que a contribuição de um dos cônjuges para com os encargos da vida em comum seja francamente superior ao previsto anteriormente, o cônjuge que tenha visto ser-lhe alienado o igual direito à satisfação dos seus interesses, designadamente da sua vida profissional, com prejuízos patrimoniais significativos, em detrimento da vida familiar, está no direito de exigir ao outro a devida compensação.

A propósito do recente caso tornado público em que um homem foi condenado a pagar quase 61 mil euros à antiga companheira por trabalho doméstico, há perguntas que se levantam.

Ana Morais Cardoso, advogada da Sociedade de advogados Morais Cardoso e Associados, responde.

É o primeiro caso deste género com um parecer favorável à requerente?

– Não, não é o primeiro, mas normalmente os valores atribuídos são bastante inferiores pelo que não chegam a ser notícia. Para além disso, existe a convicção de que o beneficiário tem que ser necessitado, aspecto com que não concordo. Do meu ponto de vista, não deveria ser determinante se o beneficiário tem ou não património próprio ou forma alternativa de subsistência; nem mesmo se tem necessidade da compensação. A compensação é devida ou não é devida.

Como provar que a contribuição para a vida familiar não foi/ é feita na igual medida por ambos os cônjuges?

– A prova é difícil porque dentro de cada casa só vive normalmente marido, mulher e filhos. Os casais, e bem, não gostam de chamar os filhos a testemunhar, pelo que ficamos dependentes de prova por declarações das partes (que obedece a um regime muito especial). Outra das dificuldades é apurar o prejuízo. Onde teria aquela pessoa chegado se não tivesse abdicado de tudo que não fosse a sociedade conjugal?  

Para dar início a um pedido de indemnização por créditos de compensação conjugal, é preciso ainda coabitar com o cônjuge? Existem retroactivos?

– Este pedido é feito em processo de inventário, salvo se os cônjuges forem casados em separação de bens, que corre em processo comum, pelo que é necessário haver separação prévia. Não existem retroativos, é apurado valor pelo tempo inteiro da dedicação em excesso. Durante a coabitação, existem outras formas de assegurar a subsistência do cônjuge mais desfavorecido, nomeadamente o instituto de alimentos a cônjuges.

Sendo que o valor da indemnização poderá ser determinado pelo Tribunal tendo por base o salário mínimo nacional multiplicado pelos 12 meses e depois, pelo número de anos que o requerente viveu nesta situação, com que fundamento é que essa soma é posteriormente atenuada, resultando em indemnizações mais leves e menos justas? Porque, honestamente, parece-me tratar-se de uma pena patriarcal quase.

– Esse critério pode valer para um caso concreto e não valer para outro e tanto pode pecar por excesso como por insuficiência. Já formulei pedidos com base noutros critérios, por exemplo, parte do valor do património adquirido só por um dos cônjuges (uma vez que casados em separação de bens), ou parte dos vencimentos auferidos durante os anos em que a/o requerente não trabalhou.

Pesa tratar-se de um casamento ou união de facto?

– A lei está feita para o casamento, este último acórdão aplicou a lei, e bem, a uma união de facto.

Tendo em conta que, em primeira instância, o Tribunal de Barcelos considerou não haver lugar ao pagamento de qualquer quantia por considerar tratar-se do “cumprimento espontâneo de obrigação natural” e que em recurso, a Relação deu razão à requerente, pergunto de que estão dependentes as decisões dos juízes? A aplicabilidade da lei não é transversal a todo e qualquer órgão de justiça nela baseado? Estamos dependentes da subjectividade dos pareceres pessoais dos juízes de cada município?

Da mesma forma que estamos sujeitos a critérios subjectivos de médicos, professores, superiores hierárquicos e afins, também estamos sujeitos aos critérios de cada Juiz dentro da liberdade que o legislador concedeu. Estes processos são especialmente afectados pela parte subjectiva, mas não existe outra forma e existe sempre (ou quase sempre) o tribunal de recurso. Claro que me deparo com um juiz com menos de 30 anos a julgar um processo destes e fico logo com receio que não consiga sequer entender bem do que se trata, a profundidade do problema. 

De que forma seria possível acautelar situações de desequilíbrio extremo no seio da vida conjugal?

– Educação e tempo. As pessoas casam sem fazer a mínima ideia das consequências. Compram casa, compram carro, abrem contas bancárias, aceitam regimes de casamento, têm filhos, misturam patrimónios. Deveria haver um curso civil de preparação para o matrimónio onde fosse explicado o regime de bens e as consequências patrimoniais do contrato que estão a assinar. O resto vem com o tempo, é um processo natural. As minhas filhas já não vão aceitar certas coisas que eu aceitei tal como eu já não aceito coisas que a minha mãe aceitou.

É educação geracional. Que a educação vem do berço já é sabido e aqui, berço não pretende ser uma metáfora para uma qualquer condição abastada porque também é sabido que há coisas que o dinheiro não compra e o carácter, ou se tem ou não se tem. É a mentalidade geracional que tem que mudar para que consigamos, enquanto país, praticar aquilo que tão bem pregamos: uma sociedade igualitária.

Embora o número de mulheres que vivem neste contexto seja muito superior ao de homens em igual ou semelhante contexto, por vivermos numa sociedade que ainda se debate para combater o patriarcado, não pode ser ignorado o facto de que também os há, certamente.

Mas não está aqui em causa uma guerra dos sexos e sim a crescente necessidade de que valores mais altos se levantem que não reduzam estes fenómenos ao ser-se homem ou mulher. O respeito, a solidariedade, a empatia, a compaixão, a humildade são tudo valores que não têm sexo, mas são e serão sempre mais de uns que de outros.

O caminho a fazer será sempre no sentido de tornar o Homem mais humano.