O termo anglo-saxónico Foreign Fighters, que numa tradução e adaptação para a língua portuguesa significa Combatentes Estrangeiros, de facto, de um perigoso eufemismo. Na verdade, e de modo bem objectivo, rotula, inadequadamente, todos aqueles, homens e mulheres, que se juntaram a uma das principais e mais sinistras organizações terroristas mundiais – o DAESH[1] -, com o iniludível propósito de, sob a sua bandeira e inspiração, contribuírem para uma das maiores ameaças à segurança mundial. Apesar de não ser novo, o debate à volta do seu regresso aos países de origem, na sequência da intervenção militar da coligação internacional que pôs termo à ocupação terrorista nos territórios sírio e iraquiano, ganhou um novo impulso numa acesa controvérsia que coloca frente-a-frente os alegados defensores dos Direitos Humanos, e aqueles que vêm alertando para a ameaça que tal processo representa para as sociedades de origem. Tal circunstância revela a inexistência de consensualidade sobre a resposta a dar para uma efectiva solução do complexo problema, entretanto agravado pela actual situação sanitária.
ANÁLISE
Fortemente seduzidos pela retórica do DAESH, a par de outras motivações, muitos foram os cidadãos oriundos de todos os continentes que decidiram rumar à Síria e ao Iraque, a fim de integrarem as suas fileiras e, desse modo, contribuírem para a edificação do ideal proclamado pelos dirigentes da organização terrorista – o Estado Islâmico -, o que deu lugar a um significativo crescimento das suas forças, sobretudo a partir de 2013, na sequência do seu envolvimento na Guerra Civil Síria, iniciada em 2011. Essa ascensão seria, contudo, travada graças à intervenção militar da Coligação Internacional, deitando por terra, em Dezembro de 2017, o sonho islamista. Com a morte de grande parte dos seus efectivos, este acontecimento provocaria, de imediato, uma profunda ruptura na estrutura e composição do grupo, dando lugar ao abandono de parte dos seus integrantes, e ao desejo de regressarem aos países de origem. Esta motivação estender-se-ia, de modo natural, às viúvas e descendentes de todos aqueles que foram eliminados nas diferentes confrontações com as forças que combatiam o flagelo por eles representado. A grave crise humanitária, entretanto, instalada levou à intervenção das Nações Unidas através da criação de campos de refugiados. Um desses campos, al-Hol, por sinal o maior, acolhe cidadãos estrangeiros com ligações ao DAESH. Mais de 80 por cento dos seus 62 mil residentes são mulheres e crianças. A maioria são iraquianos e sírios, mas inclui cerca de 10 mil pessoas de outros 57 países. Muitos deles, continuam partidários da organização terrorista [DAESH][2]. A partir deste cenário, são vários os países que se vêem envolvidos num processo de enorme complexidade e profunda controvérsia, agravado agora pela crise sanitária mundial, que se associa à do terrorismo. O problema está, assim, instalado; desde logo, pela controvérsia em torno da “definição” de Foreign Terrorist Fighter (Combatente Terrorista Estrangeiro) e a questão que se levanta sobre o real seu estatuto: deverão ser considerados combatentes ou vítimas? Para muitos, este conceito aplicar-se-á facilmente aos homens (combatentes) que viajaram para a zona de conflito, com o propósito de engrossar as hostes terroristas, onde viriam a tornar-se combatentes; mas quando se olha para as mulheres que partiram, igualmente de livre vontade e com o mesmo propósito dos homens – o de se juntarem às fileiras do bando terrorista – tendencialmente o conceito que se lhes aplica é o de “vítimas”. Esta é uma ideia que fica ainda mais vincada quando falamos da questão das mulheres e crianças que se encontram em campos de refugiados na Síria, sobretudo nos campos de al-Hol e de Roj. No plano internacional, tem-se gerado um debate em torno da obrigação que os Estados têm de ir buscar os seus nacionais àqueles campos, ou garantir o seu regresso o mais rapidamente possível, pois estamos a falar de “vítimas”, que foram ao engano e que assumem voltar a integrar-se plenamente nas sociedades dos países de origem. Será?
Apesar dos relatos de muitas mulheres que afirmam a sua inocência, com a fundamentação de terem sido “enganadas com a promessa de uma vida melhor”, “desconhecendo em absoluto” o que as esperava, outras há, no entanto, que dão a conhecer os diferentes papeis que o elemento feminino desempenhou ao longo dos “gloriosos” tempos em que o DAESH teve sob o seu controlo grande parte dos territórios sírio e iraquiano, tais como: o seu directo envolvimento na doutrinação de crianças e de outras mulheres na ideologia terrorista do DAESH; actividades de propaganda, radicalização e recrutamento; “policias de moral e de costumes”; e participação em treino armado. Actualmente, algumas dessas mulheres permanecem como membros activos da organização terrorista, expondo as crianças a um traumatizante ambiente de radicalização. É, igualmente, sabido que entre os membros do DAESH, que permaneceram activos até ao derradeiro minuto no último reduto territorial daquele grupo, Baghouz, se encontravam várias mulheres e crianças que, viriam a ser posteriormente encaminhadas para o campo de refugiados de al-Hol. Nesse campo, são várias as registos que dão conta que estas mulheres permaneceram unidas na ideologia terrorista do DAESH[3], replicando ali a experiência islamista do autoproclamado Califado, tentando radicalizar, sob ameaça ou uso da violência, as outras mulheres[4], continuando a doutrinar os seus filhos, assim como outras crianças que trouxeram e têm à sua guarda, após a morte dos pais em combate[5].
RISCOS ASSOCIADOS AO SEU REGRESSO AOS PAÍSES DE ORIGEM
Desde logo, uma vez chegadas aos países de origem, insuficiência ou mesmo inexistência de prova jurídica que garanta uma fundamentada matéria de condenação por envolvimento ou associação a organização terrorista. Em segundo lugar, e considerando o seu perfil ideológico com forte vínculo à doutrina terrorista do DAESH, haverá uma elevada probabilidade de reincidência em actividades terroristas, prossecução de actividades de propaganda e radicalização, de recrutamento e de apoio logístico; contrariamente ao que é expectável para os homens, sobre os quais poderá ser “mais fácil” recair uma condenação judicial. Em terceiro lugar, a manutenção da liberdade destas mulheres, aquando da sua chegada às sociedades receptoras, implica um profundo empenhamento e preparação das respectivas autoridades para a sua reintegração, com a promoção de respostas adequadas sob os pontos de vista psicológico (com destaque para as crianças, que foram expostas a elevadíssimos níveis de violência), social e económico, com uma forte componente na área da “desradicalização”. Refira-se, a propósito, o frustrante insucesso de programas, entretanto adoptados alguns países europeus, pondo em causa as soluções encontradas para tão complexo fenómeno, que, convenhamos, obriga a uma permanente monitorização desses elementos, de modo a permitir a detecção atempada de ameaças à segurança das populações. Alguns países, incluindo os Estados Unidos, ensaiaram já, ainda que de modo tímido, o processo de repatriação. No caso da Europa, são muitos os países que revelam enormes constrangimentos directamente relacionados com a segurança e a sua política interna. Um desses países é a França, que segue o princípio da análise caso a caso, ainda que ressalvando a situação das crianças órfãs, para as quais está prevista a sua repatriação[6]. Devido ao perigo da sua radicalização, a França impede, no entanto, o retorno das mães destas crianças. Como resultado, algumas preferem manter os filhos consigo, enquanto outras fizeram a difícil escolha de os ver partir[7]. Por seu turno, a Bélgica assume o seu empenho no repatriamento de crianças com menos de 10 anos, desde que seja comprovada a sua ligação a pai ou mãe belga. Noutros casos, a solução é idêntica à de França, com uma avaliação individualizada. Da sua parte, as autoridades alemãs mantêm algumas reservas, reconhecendo, contudo, o estatuto de vítimas às crianças, aceitando o seu repatriamento no pressuposto de terem famílias de acolhimento. Já para as crianças consideradas radicalizadas o seu destino serão as instituições especializadas nesta matéria. As autoridades dinamarquesas decidiram, entretanto, a não atribuição da nacionalidade às crianças nascidas fora do seu território. Finalmente, o caso português. Apesar de residual, devido ao reduzido número de aderentes ao jihadismo terrorista, não pode, no entanto, deixar de merecer o necessário cuidado por parte das autoridades, que com base na partilha de informações mantida com o Reino Unido sempre esteve a par de matérias relacionadas com o envolvimento de cidadãos nacionais, para as quais sempre houve o propósito de compatibilizar a segurança nacional e a protecção dos cidadãos em situação vulnerável, sem que em algum momento fosse ignorado o facto de Portugal se encontrar sob o compromisso de alinhamento com as políticas das organizações internacionais às quais pertence, para as quais é absoluta a rejeição a tudo o que consubstancie ameaças ao modo de vida, aos valores e à segurança dos cidadãos. Temos assim que, dos oito portugueses inicialmente acusados pelo Ministério Público por “conversão ao Islão e radicalização ao serviço do DAESH, e do cometimento de vários crimes de terrorismo”, só dois foram formalmente condenados a penas de prisão efectiva de nove anos e oito anos e seis meses, respectivamente, por “crimes de apoio a organizações terroristas ligadas ao radicalismo islâmico”[8]. Dos restantes seis acusados, pouco ou nada se sabe, tendo eventualmente sido eliminados ou encontrando-se em parte incerta,
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As autoridades dos países de origem dos terroristas jihadistas estão profundamente divididas relativamente às medidas a adoptar no caso dos pedidos de regresso apresentados pelos próprios ou pelas famílias de jihadistas mortos em acções terroristas na Síria e no Iraque. Se de um lado estão todos aqueles que, movidos por um sentimento de matriz humanista, defendem a sua reintegração nas sociedades que deixaram para trás, do outro encontram-se os que advogam a inequívoca rejeição das suas pretensões, com base nas ameaças que a sua presença significa para as populações receptoras. Neste contexto, importa, uma vez mais, referir a preocupação das autoridades portuguesas com a dramática situação em que se encontram as famílias de cidadãos seus, actualmente retidas em território sírio. Embora reconhecendo a complexidade do problema, para o governo português, assim como, de resto, para as lideranças de outros países europeus, a solução para este complexo problema passará pela criação de um plano de âmbito multidisciplinar, numa estreita colaboração entre as Forças e os Serviços de Informações, as autoridades judiciais e outras entidades ligadas às questões humanitárias, ressalvando sempre o respeito pela segurança nacional, através da implementação de programas de integração social e a prevenção de eventuais processos de radicalização. Objectivamente, as soluções encontradas pelas autoridades dos diferentes países são resultado das mais diversas sensibilidades e orientações face ao problema que lhes é colocado. O actual contexto pandémico tem-se encarregado de o agravar, fazendo com que sejam muitos os países que manifestam a sua relutância em trazer de volta os cidadãos que partiram com o assumido propósito de aderir ao terrorismo jihadista. As sociedades estão, assim, perante um cenário de inquietante incerteza quanto ao seu futuro. Cabe, naturalmente, aos decisores políticos uma séria avaliação dos riscos apresentados por este novo fenómeno e, a partir dela, proceder à implementação de soluções legislativas que contribuam, sem margem para dúvidas, para a segurança e o bem-estar das suas populações, e onde o futuro seja encarado com absoluta confiança nas instituições.
João Henriques
Investigador Integrado do Observatório de Relações Exteriores (OBSERVARE)/Universidade Autónoma de Lisboa
Vice-Presidente do Observatório do Mundo Islâmico
Auditor de Defesa Nacional pelo Institut des Hautes Études de Défense Nationale (IHEDN), de Paris
[1] Acrónimo de Estado Islâmico do Iraque e do Levante (https://www.state.gov/j/ct/rls/other/des/266556.htm).
[2] ASSOCIATED PRESS, 18 de Fevereiro de 2021.
[3] Disponível em: https://syria.liveuamap.com/en/2020/28-may-isis-women-demonstration-in-alhol-camp-demanding-the
[4] Disponível em: https://english.elpais.com/elpais/2019/10/25/inenglish/1571990542_345221.html
[5] Disponível em: https://www.thesun.co.uk/news/9534033/isis-flag-al-hawl-shamima-begum-refugee-camp/
[6] FRANCE 24, 13 de Janeiro de 2021.
[7] FRANCE 24, 23 de Fevereiro de 2021.