A Associação Portuguesa dos Bariátricos (APOBARI) alertou para a urgência de o Estado aumentar a capacidade de resposta aos doentes obesos, salientando que o risco de “acabarem numa cama de hospital” por covid-19 aumenta em 113%, sendo o risco de mortalidade também superior (48%).
Em Portugal, cerca de 57% da população (5,9 milhões de portugueses) é obesa ou está em risco de obesidade. Um cenário com previsão para agravar devido aos atrasos nos tratamentos. Segundo a Entidade Reguladora da Saúde (ERS), os obesos esperam em média 16 meses entre a consulta e a cirurgia, chegando a haver tempos de espera superiores a três anos.
Quem conhece bem esta realidade é Marisa Oliveira Marques, presidente e assistente social da APOBARI que mudou a sua vida em 2014. Atualmente, aos 41 anos, e com menos 60 quilos, sente-se bem e desenvolve o trabalho com um único objetivo em mente: “Ajudar as pessoas a chegar à cirurgia bariátrica pelo Serviço Nacional de Saúde, pelas parcerias que temos com os hospitais privados ou semi-privados ou ainda através dos subsistemas de saúde”.
“No fundo, somos um espelho daquilo que as pessoas querem tornar-se. E, vendo a nossa forma de estar e a qualidade de vida muito melhor da qual usufruímos, motivam-se e seguem as nossas pisadas”, explica Marisa, adiantando que, além da autoestima mais elevada, consegue fazer tudo o que quer sem constrangimentos, principalmente ao nível da mobilidade. O seu percurso de emagrecimento teve início muito antes do dia da cirurgia, quando se dirigiu a um parque de diversões com o filho, hoje um polícia de 23 anos, então criança.
“Ele queria andar num carrossel e eu não cabia na cadeira, não podia acompanhá-lo como era suposto. Fez-se um clique e percebi que tinha de fazer alguma coisa”, confessa a mulher que teve banda gástrica entre 2004 e o data em que realizou o bypass gástrico, tipo de cirurgia bariátrica que pode levar à perda de até 70% do peso inicial e consiste na redução do estômago e na alteração do intestino, levando a pessoa intervencionada a comer menos, o que resulta na perda de peso.
Na ótica de Marisa, um dos pontos que falham mais naquilo que diz respeito ao apoio aos obesos, após as cirurgias, é a ausência de comparticipação da vitamina que têm de tomar para o resto da vida. “Se não a tomarmos, podemos ficar muito doentes. Como não absorvemos aquilo que comemos, temos de ter nutrientes”, desabafa. Cada paciente toma entre um e dois comprimidos por dia e o valor médio da vitamina – comercializada por três marcas distintas – é 25 euros por mês.
“É um medicamento essencial. Enquanto o sleeve diminui o tamanho do estômago, o bypass faz com que o intestino não absorva nada”, elucida. “Mas, é claro, entre tomar uma vitamina para o resto da vida e tomar medicamentos para a hipertensão, diabetes e outras patologias, é preferível a primeira opção”, afirma com convicção, não deixando de lançar farpas ao Executivo. “Poupamos muito dinheiro ao Estado e um ministério já comparou a vitamina ao arroz integral”, lamenta.
“Enquanto associação, além de fazermos esclarecimentos, temos parcerias com hospitais privados ou semi-privados porque baixam o valor das cirurgias radicalmente”, partilha. Esclarece que acompanha as pessoas que procuram o apoio da APOBARI “do princípio até ao fim do processo”, pois não esquece as agruras que viveu devido ao excesso de peso.
“Eu fiz um curso de jornalismo e respondi a uma vaga para uma estação de rádio. A primeira entrevista foi por telefone e passei. Na segunda, o senhor perguntou-me ‘A outra também é assim?’, referindo-se à minha amiga que se tinha candidatado também”, recorda. Algo simples como entrar numa sapataria com o filho também se tornava um pesadelo.
“Uma vez, disseram-me ‘Não temos nada aqui para si’ e eu fiquei com tanta vergonha que saí de lá a chorar”.
Todavia, episódios menos felizes como estes deram-lhe força para inspirar quem se quer transformar numa borboleta, o símbolo de quem foi submetido à cirurgia bariátrica. “Costumo dizer que somos esculpidos porque estamos apenas escondidos por debaixo da gordura. Renascemos”, declara com orgulho.
A perspetiva médica “O tempo de espera médio, no Serviço Nacional de Saúde, para a realização de um procedimento como este é de dois anos e meio. No privado, é de cerca de um mês, mês e meio, se tanto”, afirma Marisa, que assiste a variadas cirurgias bariátricas por semana. Realça que os pacientes “passam por equipas multidisciplinares, desde o psicólogo, o nutricionista, o cirurgião e o endocrinologista e fazem exames que são necessários”.
De facto, já em 2019, antes da pandemia, mais de metade da população adulta residente em Portugal apresentava excesso de peso ou obesidade, registando-se um “ligeiro aumento” face a 2014, segundo os resultados do Inquérito Nacional de Saúde divulgado pelo Instituto Nacional de Estatística. Os dados precisavam que, nesse ano, 4,6 milhões de pessoas com 18 ou mais anos (36,6% da população) tinham excesso de peso e 1,5 milhões (16,9%) obesidade (55,88% no total, o que representa um aumento em relação a 2014 de 36,4% e 16,4%, respetivamente, o que perfaz um total de 55,18%. No ano corrente o valor ascende a 57% da população.
Os motivos apontados para o aumento da obesidade, em território nacional, são variados. A título de exemplo, durante o confinamento, quase metade dos portugueses (45,1%) mudou os hábitos alimentares e, destes, 4 em cada 10 mudaram para pior. Estes são os resultados de um inquérito nacional feito pela Direção-Geral da Saúde (DGS), em parceria com a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. O estudo mostrou que a maior parte passou a cozinhar mais, mas também a petiscar mais e a consumir mais ‘snacks’ doces. Tudo isto, aliado ao sedentarismo, fez com que um quarto dos inquiridos admitisse que aumentou de peso.
António Albuquerque, cirurgião do Centro de Tratamento Cirúrgico da Obesidade do Hospital de Curry Cabral e do Centro Multidisciplinar de Tratamento da Obesidade do Hospital Lusíadas Lisboa, começa por esclarecer que antes da pandemia se realizavam entre 200 e 300 intervenções por ano no Curry Cabral “e houve um decréscimo acentuado”. Entre março e junho de 2020, não foi efetuada uma única cirurgia bariátrica na instituição mencionada.
“Entre junho e outubro, operámos à volta de 150 doentes, mas é um número muito aquém daquele que devia ter sido verificado. Entre outubro e este mês, operei de novo duas pessoas por bypass via robótica”, constata com algum desapontamento.
“A obesidade é uma doença, mas é considerada benigna. E, como tal, as cirurgias bariátricas não foram vistas como prioritárias nas alturas em que havia menor capacidade de internamento”, expõe o médico que obteve o grau de Especialista em Cirurgia Geral em 2006 e o grau de Consultor de Cirurgia Geral em 2016.
“Continuaram a operar-se doentes como aqueles que têm cancro, mas os doentes com obesidade, mesmo em alturas que as coisas estavam mais brandas, como em outubro, não eram prioritários”, critica. E se “já estavam em longas listas de espera, na ordem média dos dois anos desde que iniciam o processo até que são operados, agora tudo ficou ainda pior”, lamenta.
“Esta semana, posso dizer que vou operar dez pessoas no total. Mesmo sendo este número reduzido, fico feliz porque conseguirei mudar as suas vidas”. Para o profissional de saúde, “não só se agravaram os tempos de espera como as condicionantes que fazem com que a própria doença em si fique pior”. E explica: “Ao ficarem confinadas em casa, sem poderem fazer exercício físico, privadas de terem os melhores hábitos alimentares, as pessoas obesas veem a sua doença agravar-se”.
E o balanço dos últimos tempos? “Ainda não existem dados concretos, mas seguramente que houve um acréscimo de doentes que vão precisar de ajuda ao nível bariátrico porque deixámos mesmo de operar durante longos meses”, garante. Antes da pandemia eram concretizadas entre 2.500 e 3.000 cirurgias anualmente no Serviço Nacional de Saúde e nos privados.