A Amnistia Internacional denunciou que “centenas de civis foram mortos em Moçambique pelo grupo armado conhecido localmente como al-Shabaab, pelas forças de segurança governamentais e por uma empresa militar privada contratada pelo Governo”, na sequência do conflito que decorre, desde 2017, na província de Cabo Delgado, no norte daquele país.
A conclusão surge no relatório “O que Vi foi a Morte: Crimes de guerra no ‘Cabo Esquecido’ de Moçambique”, a que o i teve acesso. O documento alerta para “graves violações do direito internacional humanitário por todas as partes”.
O conflito armado na província de Cabo Delgado tem vindo a acentuar-se e, nas últimas horas, voltaram a surgir notícias de incursões relâmpago nas vilas e aldeias no nordeste da região, protagonizadas por grupos fortemente armados com metralhadoras e catanas. Os ataques mais recentes aconteceram no passado fim de semana nas localidades de Quirinde e Namoto. Na aldeia costeira de Quirinde a população local terá sido surpreendida na madrugada do último sábado. Os relatos dão conta de um cenário de terror: sete mortos civis, três dos quais decapitados.
A Aministia Internacional tem vindo a alertar a situação dramática em que vive a população civil. E, neste caso, parece mesmo que nenhuma das partes envolvidas se pode declarar absolvida de responsabilidades.
O relatório pormenoriza os atos de violência contra civis cometidos pelos jihadistas do al-Shabaab – que significa “a juventude” em árabe –, grupo ligado aos terroristas do Estado Islâmico, que possui o mesmo nome dado aos extremistas islâmicos com presença na Tanzânia, Somália e Quénia. Porém, o relatório também dá conta de “execuções extrajudiciais e outras violações de direitos humanos” protagonizadas pelas forças armadas moçambicanas e “ataques indiscriminados pelo Dyck Advisory Group”, uma empresa militar privada sul-africana contratada pelo Executivo de Filipe Nyusi para apoiar os militares governamentais nesta guerra.
“Os residentes de Cabo Delgado estão encurralados entre as forças de segurança moçambicanas, as milícias privadas que estão a lutar ao lado do governo e o grupo de oposição armada conhecido localmente como Al-shabaab. E nenhum dos três beligerantes respeita o direito dos civis à vida nem as regras da guerra”, afirma Deprose Muchena, diretor da Amnistia Internacional para a África Oriental e Austral.
“As três partes cometeram crimes de guerra, causando a morte de centenas de civis. A comunidade internacional não tem conseguido dar resposta a esta crise, que atingiu as proporções de um conflito armado de grande magnitude nos últimos três anos. Apelamos a todas as partes do conflito para que parem imediatamente de atacar civis e ao Governo de Moçambique para que investigue urgentemente os crimes de guerra que expusemos”, diz Muchena.
O relatório, baseado em entrevistas com 79 deslocados internos de 15 comunidades, concentra-se principalmente no impacto da intensificação da luta armada em Cabo Delgado desde um grande ataque do al-Shabaab a Mocímboa da Praia, em março de 2020.
Relatório de Atrocidades O relatório da Amnistia Internacional não poupa nos pormenores. Descreve ataques vis, que não poupam velhos, mulheres ou crianças. “Em finais de março de 2020, a vila de Quissanga foi atacada pelo al-Shabaab (…) foram raptados vários adolescentes”. Um homem fez esta descrição: “Levam tanto rapazes como raparigas… Alguns levam-nos para os decapitar. Alguns obrigam as raparigas a tornarem-se ‘esposas’ e a fazer trabalho na base. Os rapazes tornam-se soldados”.
Três dias após o ataque, as forças do Governo chegaram a Quissanga. “Capturaram civis que acreditavam serem apoiantes do Al-shabaab. Vendaram os olhos de vários homens e executaram-nos a tiro, atirando depois os seus corpos para uma vala comum. Durante o mês seguinte, forças de segurança governamentais levaram mulheres para serem violadas na base que tinham montado nas proximidades”. Ninguém poupa ou é poupado.
Ódio semeado O conflito em Cabo Delgado tem raízes profundas e complexas. A região, de maioria muçulmana – dois terços da população é islâmica e um terço é cristã (católica) –, viu-se durante décadas votada ao esquecimento por Maputo. A ausência de investimentos sociais e em infraestruturas, a corrupção e a concentração de riqueza pelas elites locais ligadas ao poder central semearam a desconfiança e o descontentamento em relação ao Governo. Criando-se, assim, terreno fértil para o sublevação de grupos radicalizados.
A ligação histórica com a vizinha Tanzânia, de maioria muçulmana, terá contribuído para o aparecimento de líderes que tinham como objetivo doutrinar a população local na visão extremista do islão: o chamado wahhabismo. O al-Shabaab moçambicano acabaria por formar-se como comunidade, com a implementação de escolas corânicas. E, naturalmente, surgia em simultâneo um braço armado que passou à ação contra aqueles que apelidaram de kaffir (ou descrente em árabe) – à imagem do Boko Haram da Nigéria. Os líderes islâmicos tradicionais foram mesmo os primeiros alvos destes combatentes.
Além disso, Cabo Delgado é uma província muito rica em recursos naturais e onde estão concentradas as gigantesca prospeções de gás natural liquefeito, de multinacionais como a Total ou a ExxonMobil; a região é também apontada como ponto de passagem das rotas do tráfico de heroína do Afeganistão e de cocaína da Colômbia com destino para a Europa e África do Sul. Tornando-se, assim, ainda mais apetecível para os militantes.
O conflito terá começado em 2017, mas, dois anos depois, com a chegada de dezenas de combatentes estrangeiros que engrossaram as fileiras da versão moçambicana do al-Shabaab (vindos do Uganda, da Tanzânia ou da região dos Grandes Lagos), empunhando armas mais sofisticadas, as hostilidades aumentaram.
Segundo as Nações Unidas o conflito já terá provocou dois mil mortos e 670 mil refugiados.