Salvar pelas costas


Quando, em situação de afogamento, uma pessoa nos aborda frontalmente, o instinto leva-nos, desesperados, a agarrá-la e a empurrá-la para o fundo.


Aprendi recentemente a proceder ao resgate de pessoas em risco de afogamento. Diz a regra que, para que a manobra seja eficaz, o nadador deve aproximar-se da vítima nunca face a face, sempre pelas costas. A razão de ser desta regra está no risco de a vítima poder vir a afogar a pessoa que tenta salvar-lhe a vida pois, quando está em causa a sobrevivência, o nosso instinto leva-nos a uma determinada perda do sentido da realidade que nos conduz a atitudes irracionais. Assim, quando, em situação de afogamento, uma pessoa nos aborda frontalmente, o instinto leva-nos, desesperados, a agarrá-la e a empurrá-la para o fundo. O objetivo é continuar a respirar. Sem querer, com o intuito de sobreviver, somos capazes de matar quem nos está a salvar, sem pensar sequer que essa atitude pode levar-nos à morte.

Se a imagem que acabo de partilhar é dramática – principalmente para quem já passou pela experiência –, imaginemos agora alguém que viva uma vida inteira assim… lutando por cada segundo de vida… em permanente estado de sobrevivência.

O instinto de sobrevivência aproxima-nos da rotina da vida selvagem, cujo princípio-base é: alimentar-se de espécies mais fracas, evitando ser alimento das mais fortes.

Por conseguinte, a evolução da natureza levou a que a maior parte dos animais selvagens se tornassem agressivos. Afinal, esta é a única maneira de se manterem vivos. Geralmente, quanto mais solitário viver o indivíduo, menos dócil se torna. A exemplo, podemos falar do tubarão, da víbora, do crocodilo, da pantera ou do escorpião, animais que tanto têm de agressivos como de solitários.

Estes animais não precisam de uma comunidade para sobreviverem, para caçarem ou para se defenderem. Recorrem às garras afiadas, às mandíbulas destrutivas ou às toxinas mortais. Se os de maior dimensão recorrem à força, já os mais pequenos recorrem ao veneno. Paralisam, intoxicam, sufocam, matam. Na maior parte das vezes, quanto mais pequeno for o animal, mais poderoso é o seu veneno.

Nós, humanos, estamos entre os animais mais frágeis e menos habilitados a sobreviver na selva; no entanto, estamos, aparentemente, mais preparados para viver em sociedade. A nossa competição há muito que deixou de ser com as outras espécies; porém, somos dos únicos que devoram os seus pares, deles fazem a sua presa.

Transportámos para as nossas estratégias de ataque o abraço da serpente, as lágrimas do crocodilo e o riso das hienas. Mas, ainda assim, distinguimo-nos continuamente pois somos os únicos capazes de salvar pelas costas.

 

Professor e investigador