Doenças raras. “O que falta às famílias? O conforto de perceber que lhes vai ser dada atenção”

Doenças raras. “O que falta às famílias? O conforto de perceber que lhes vai ser dada atenção”


Este ano, o Dia Mundial das Doenças Raras assinala-se com uma sensação de retrocesso: a pandemia dificultou o acesso a cuidados de saúde, atrasou tratamentos, interrompeu fisioterapias. “Muitas famílias sentiram-se sozinhas”, diz presidente de associação de doentes.


Uma doença dominou as atenções nos últimos meses. Muitas outras ficaram menos visíveis. São consideradas raras quando afetam menos de duas em cada mil pessoas, o oposto de uma pandemia. Mas quando se juntam todas as patologias hoje identificadas, e são mais de 6 mil, elas ganham outra dimensão e é para as necessidades de doentes e famílias que todos os anos alerta o Dia Mundial das Doenças Raras, que se assinala este domingo. Numa coincidência, Portugal passou esta semana os 800 mil casos de covid-19 e é esse também o número de portugueses que se estima vivam com alguma doença rara. Como foram os últimos meses?

Joaquim Brites, presidente da Associação Portuguesa de Doenças Neuromusculares e da Aliança Portuguesa de Associações de Doenças Raras, faz o balanço que tem chegado às associações: mais dificuldades no acesso a consultas, menos sessões de fisioterapia, possivelmente mais atrasos nos diagnósticos. Ser um doente raro, apesar de melhorias na resposta ao longo dos anos, continua a significar diagnósticos mais complexos e lentos e pertencer a uma minoria, com tudo o que isso implica. E ter um diagnóstico na família, como é o seu caso – pai de um jovem de 29 anos com distrofia muscular de Duchenne –, uma luta constante para inverter os ângulos da atenção.

A data assinala-se, assim, este ano com uma sensação de retrocesso, descreve, que vai dos impactos físicos nos doentes às políticas de saúde. Na área das doenças neuromusculares, a que mais tem acompanhado, a diminuição das sessões de fisioterapia nos hospitais, que são a resposta para a maioria dos doentes, já que na maioria das clínicas não existe essa resposta diferenciada, acaba por ter o impacto mais pesado. “São pessoas para quem ficar dois dias sem fazer fisioterapia pode fazer diferença e há doentes sem fisioterapia há um ano”, frisa. Segundo os dados disponíveis no Portal da Transparência, analisados recentemente pelo Movimento Saúde em Dia, da Ordem dos Médicos e da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, houve menos 12,4 milhões de sessões de medicina física e de reabilitação em 2020. Com uma imagem, Joaquim Brites ilustra que o impacto é mais do que físico e fere o trabalho de promoção de integração por que as associações de doentes se têm batido. “Se uma pessoa tiver um dedo retraído e, por falta de fisioterapia, o dedo retrair de forma irreversível, o doente deixa de escrever, de conseguir trabalhar com o computador. Fica com mais dores, com mais contraturas, mas afeta-o psicologicamente porque deixa de conseguir fazer o que fazia antes”, descreve. “Antigamente, as pessoas que tinham estas doenças, e a maioria surgem na infância, não estudavam, não se formavam, não iam trabalhar. Hoje têm mestrados, têm trabalho, e tudo isto as afeta. Muitos doentes e muitas famílias sentiram-se sozinhas, esquecidas”.

Dados ao certo sobre o impacto da pandemia na assistência a doentes raros em Portugal não existem: sabe-se que, no global, diminuiu a atividade nos centros de saúde, com consultas presenciais, e houve menos consultas hospitalares e menos cirurgias. Houve mais consultas à distância, mas Joaquim Brites sublinha que não é o mesmo contacto. Também a associação procurou intensificar a resposta virtual, de tutoriais para ajudar na atividade física em casa a apoio psicológico, mas se houve famílias que os procuraram pela primeira vez, a sensação é de que o apoio nunca chega a todos.

Um inquérito a nível europeu feito pela Eurordis, uma aliança não governamental de associações de doentes, ainda referente aos primeiros meses da pandemia, revelou que o impacto foi transversal: entre os 6945 doentes inquiridos em toda a Europa, com 1250 doenças diferentes, 83% declararam que os cuidados foram de alguma forma afetados. Seis em cada dez não tiveram acesso a análises como habitualmente, oito em cada dez viram intervenções como sessões de fisioterapia adiadas ou canceladas e seis em cada dez tiveram alguma intervenção cirúrgica adiada.

Luís Brito Avô, médico no Hospital de Santa Maria e coordenador do Núcleo de Estudos de Doenças Raras da Sociedade Portuguesa da Medicina Interna, criado há 11 anos, considera que o impacto se sentiu com mais força na primeira vaga e que desde então houve uma tentativa de expandir a resposta nos hospitais e mitigar o que na primeira vaga foi um quase “colapso” na assistência, como ilustra o barómetro da Eurordis. “Tem havido progresso ao longo dos anos, foram criados centros de referência e, agora, a pandemia trocou-nos as voltas, mas os hospitais tentaram adaptar-se. A telemedicina ajudou bastante, mas é claro que nada substitui a observação clínica dos doentes”, diz o médico.

Brito Avô admite que houve ao início atrasos na distribuição de medicação e em alguns tratamentos, com diminuição na atividade nos hospitais de dia por necessidade de aumentar a distância física entre doentes. Com o passar do tempo foram-se encontrando soluções e, no Santa Maria, avançou-se com a entrega de medicação, até aqui de dispensa hospitalar, no domicílio. “Houve uma quebra, mas penso que não se pode fazer um balanço assim tão negativo”, diz o médico, reconhecendo no entanto que a quebra nas primeiras consultas, na ordem dos 13%, deverá levar a diagnósticos mais atrasados – o que já era um desafio nesta área: “A primeira consulta hospitalar é o passaporte para atingir um diagnóstico mais adequado, que implica que os doentes cheguem aos centros de referência. Sabemos que os doentes raros tem diagnósticos mais complexos, é preciso que a comunidade médica em geral esteja suficientemente alerta para referenciar aos centros de referência e, como sabemos, todo o movimento nos centros de saúde quebrou neste período e, aí, terá havido seguramente atrasos”.

Para Joaquim Brites, mais do que perguntar qual foi o impacto da covid-19, a pergunta que se tornou habitual, deve refletir-se agora sobre o que já estava por fazer antes no apoio aos doentes, na acessibilidade a terapias de reabilitação e no apoio aos cuidadores. Para muitos, o ano de pandemia foi de apoio a doentes, muitos jovens e dependentes. “Se me pergunta o que faz mais falta às famílias, é perceber quando vão ter alguma atenção e que estratégias vão existir ao nível do Ministério da Saúde para restabelecer o elo de ligação entre doentes e sistema de saúde, qual será o plano de recuperação”, conclui.