Talvez não pudesse ser de outra maneira. Assolada pela crise pandémica, asfixiada pelas dificuldades e pelo isolamento, confinada a um contacto intermediado mediaticamente com a realidade, a sociedade portuguesa está crispada.
Na perspetiva política, a partir da qual procuro sempre construir estas crónicas, a tentação de cavalgar a crispação é muito grande, em particular num ano em que se disputarão eleições autárquicas que podem dar um forte abanão no atual quadro representativo e gerar reconfigurações fortes em todo o espetro partidário.
Simplificando conscientemente a grelha de análise para a tornar mais intuitiva e fácil de aplicar, os populistas serão iguais a si próprios e à sua matriz definidora e cavalgarão a crispação, procurando todos os pretextos para incendiar, propagar e multiplicar mensagens de ódio, desencanto, desistência e enfraquecimento da vitalidade democrática.
No lado oposto, os negacionistas da crispação dirão que ela reflete posições de minorias manipuladas e multiplicarão até à exaustão os bons exemplos de ação política, económica e social, que felizmente existem com profusão, para contrapor às perceções mais derrotistas.
Pelo meio, ocupando o espaço da moderação radical em que também me incluo, estarão aqueles que compreendendo as razões que levam a que muitos extratos da nossa sociedade estejam ansiosos e frustrados, se esforçarão por usar os recursos e meios disponíveis para minimizar o sofrimento e as iniquidades e lançar processos de resposta rápida, mas simultaneamente transformadora, para reduzir as desigualdades endémicas que continuam a amarrar-nos a índices sofríveis de crescimento comparado.
Será interessante e útil analisar a evolução do quadro político nos próximos meses à luz da grelha rudimentar que antes esbocei. Para já, a grande surpresa tem sido a deriva do PSD de Rui Rio para os braços dos confrades da crispação, chegando a um espaço para onde o CDS já tinha migrado na campanha para as eleições europeias de 2019, desperdiçando, de uma penada, parte significativa do capital político acumulado em quase meio século de democracia.
Do outro lado do espelho da crispação têm sido notórias as dificuldades do Bloco de Esquerda no desempenho do papel que se propôs representar após descolar com estrondo do arco da governabilidade. Os resultados nas urnas da sua candidatura presidencial, não obstante a inegável qualidade política e humana da candidata, foram a prova de que a aposta tem tudo para correr mal.
Quem, com boas ou más razões, já ultrapassou a linha vermelha da tolerância com o regime tem um acantonamento traçado onde se pode acoitar. O que se estranha é que alguns partidos com história e identidade democrática se deixem atrair pela disputa desse espaço de trincheira em vez de se empenharem em dar mais respiração e dinâmica ao terreno da democracia plural – um terreno onde cabem muitos dos movimentos de cidadãos que se preparam para concorrer nas eleições autárquicas. Haverá movimentos e movimentos, mas acredito que na sua maioria serão um antídoto saudável ao risco de cristalização partidária e uma válvula de escape contra o aproveitamento autoritário da crispação social.
Eurodeputado