Pouco, e quase nunca pelas razões mais interessantes e verdadeiramente úteis, têm os procuradores portugueses falado de um tema que deveria merecer a sua atenção: refiro-me à Procuradoria Europeia (PE), ao seu Regulamento e, não menos importante, às suas Normas de Procedimento.
É até estranho – ou talvez não – que nenhum fórum de Procuradores tenha ainda refletido seriamente sobre a PE, o seu funcionamento e as repercussões que este poderá ter na vida orgânica do MP português.
Digo isto, pois a questão da PE e das suas normas hierárquicas internas de gestão de processos estão, em muitos casos, em contradição total com as normas que regulam a mesma matéria no Ministério Público (MP) português e que, ultimamente, tanta celeuma têm levantado.
Não fora, de resto, a introdução da «cláusula portuguesa» que Paula Teixeira da Cruz conseguiu – e muito bem – fazer vingar na versão final do Regulamento da PE (artigo 36.º, n.º 1 in fine) e este diploma europeu dificilmente se poderia compaginar com as normas da nossa Constituição e do Estatuto do MP português.
Diz tal cláusula respeito à proibição da emissão de orientações hierárquicas da PE dirigidas aos Procuradores Delegados, no sentido de estes, no final dos processos, arquivarem as investigações a que procederam.
Essa é, na realidade, a única proibição de intervenção hierárquica da PE junto dos Procuradores Delegados – e não é, aliás, por acaso que se chamam assim – que, nos respetivos países, são diretamente competentes para desenvolverem as investigações criminais.
Em todo o caso, convém sublinhar como o artigo 56.º das, posteriormente aprovadas, Normas de Procedimento da PE veio condicionar fortemente o alcance de tal proibição.
No mais, aqueles documentos – o Regulamento e as Normas de Procedimento – desenham um quadro detalhado e apertado de controlo do andamento de cada um dos processos abertos no âmbito da PE, não só por via da intervenção do Procurador Europeu do respetivo país, como, sobretudo, por via de todos os procuradores que integram a competente Câmara Permanente, a que foi atribuído o pleno controlo do processo.
Anote-se que o Procurador Delegado deve, inclusive, ir informando, regularmente e através de relatórios escritos periódicos, o Procurador Europeu do seu país e a Câmara Permanente competente sobre o andamento e o plano de intervenções e iniciativas que pensa tomar no processo.
As Câmaras Permanentes – para quem não saiba – são uma espécie de coletivo de Procuradores Europeus de diversos países que, conjuntamente com o Procurador Europeu do país onde decorrem as investigações, as controlam e orientam, superiormente, a cada passo.
Tais Câmaras constituem-se como um superior hierárquico coletivo e é nelas que reside o verdadeiro poder de conformação processual a que os Procuradores Delegados devem sujeitar-se.
A razão de ser da opção por um controlo e orientação superiores tão apertados e permanentes pode, facilmente, encontrar-se na importância que certas investigações podem ter para os interesses da União Europeia e nas consequências e repercussões que elas também podem comportar para a situação interna de alguns países.
Daí a subversão e substituição do tradicional esquema da hierarquia vertical fundada na competência de um Procurador Geral independente dos outros órgãos de poder, por uma hierarquia horizontal que, inevitavelmente, acolhe o iniludível predomínio de um conjunto de procuradores de países influentes.
Por outro lado, a opção por este tipo de controlo e orientação superiores radica na tradição de gestão da política criminal, tal como existe em muitos desses países, sobretudo na França e, de modo diferente, mas não menos real, na Alemanha, que foram quem, de resto, inspirou esta solução.
Portugal é, a esse respeito, um caso excecional de independência externa do MP em relação ao Governo e a outros órgãos de soberania e de larga autonomia dos seus Procuradores na condução concreta dos processos.
Não quer isto dizer que os Procuradores portugueses possam conduzir sempre todos os processos de inquérito sem controlo judicial, no que se refere a medidas que respeitem a direitos liberdades e garantias – como o Tribunal Constitucional recentemente reafirmou –, nem que os processos mais complexos e de maior repercussão pública não sejam, de facto, acompanhados superiormente pela hierarquia do MP.
Na prática, e com mais ou menos discrição e formalidades, todos sabemos, aliás, que isso sempre aconteceu, sempre!
Por alguma razão, o atual Estatuto do MP e o legislador nacional, que o autorizou, apontaram e bem, quando da sua aprovação, para a necessidade de passar a situar e regular a intervenção hierárquica de natureza processual no Código de Processo Penal.
É essa, de facto, a única forma de, com toda a transparência, se conceber uma intervenção processual objetiva, responsável e responsabilizante de todos os Procuradores: os titulares diretos dos processos e os superiores hierárquicos que neles também intervêm.
Dada a próxima entrada em funcionamento da Procuradoria Europeia, é ainda mais importante que o legislador nacional considere, pois, todas as soluções que, neste sentido, poderão compatibilizar uma efetiva, transparente e objetiva intervenção hierárquica processual com o apreciável grau de autonomia de que gozam – e devem gozar – os nossos procuradores.
É que, como vimos referindo, alguns vão atuar como Procuradores Delegados da PE, mas conservam um duplo chapéu: são, ao mesmo tempo, magistrados do MP português, que agem de acordo com as regras processuais existentes no país, e estão, também, subordinados às estritas normas de organização e intervenção hierárquica interna da PE.
Estamos, pois, perante um problema complexo e de difícil, mas necessária, resolução.
A pior maneira de encarar estes problemas é, todavia, fazer de conta que eles não existem e, depois, quando eles se manifestam na prática, correr a encontrar soluções mal refletidas e muitas vezes incapazes de solucionar já as questões que antes se puseram.