23 de fevereiro de 1941. Faça sol ou sombra, o medo não tem lugar na arena…

23 de fevereiro de 1941. Faça sol ou sombra, o medo não tem lugar na arena…


Chamava-se Rafael Guerra Bejarano e Córdova o viu nascer e morrer. O sangue fervia-lhe nas veias sempre que chegava a sua vez de se ver frente a frente com o touro. Tinha muitos amigos em Portugal e atuou por diversas vezes no Campo Pequeno, um lugar que adorava.


Córdova viu-o nascer e morrer. Há muito que Rafael Guerra Bejarano estava nas vascas da agonia. Chamaram-lhe Guerrita. Antes fora Llavarito, ainda criança, quando o pai lhe dava ordens para ir lavar os restos do gado que mandava abater. Tinha a paixão dos touros. Tornou-se um dos membros da Cuadrilla de Niños Cordobeses, um grupo de garotos que ansiavam por mostrar-se na arena, exibindo a sua coragem frente à fera. Isso foi em 1876, ele que nascera a 6 de março de 1862. Tinha o sangue a ferver-lhe nas veias. Fervendo sempre até borbulhar. Sempre e sempre e sempre até ao dia da sua morte, 23 de fevereiro de 1941.

Não é toureiro quem quer. Nem mesmo quem pode. Há uma linhagem, se assim quiserem. Uma aprendizagem que se conclui como cadeiras de um curso universitário. Um homem tem de saber de touros. Quando pisa a arena, o touro, de narinas inchadas, sabe tudo sobre o homem. Tudo menos o lugar onde devia estar e já não está.

Guerrita passou pelos cuidados sábios de matadores únicos e irrepetíveis. Aprendeu com Don Fernando, El Gallo, e com o mestre Lagartijo, El Grande. Bebia os seus gestos através dos olhos esbugalhados. Sozinho, repetia-os em forma de dança, sem touro. Há tempo para o touro. Há tempo para se saber tudo sobre ele. E, se o medo nasce, de ir embora e nunca mais se aproximar de uma arena. Guerrita não foi. Guerrita era um daqueles fulanos que traçavam as suas próprias circunstâncias.

Em 1883, em Madrid, organizou-se uma corrida em nome de D. Luís i de Portugal. Rafael estava lá, de traje de luces, magro, de peito empinado, no papel de bandarilheiro. Dizem que o cumpriu com tal mestria que El Gordito saltou a barreira para lhe ir apertar a mão num lugar onde todo o público pudesse vê-los.

Aos 25 anos tomou alternativa das mãos do mestre Lagartijo. A fama chegou longe e partiu para Havana, Cuba, para tourear 14 tardes consecutivas, com os campos abarrotando de gente que não se importava com mais nada a não ser ele, que se lixasse sol ou sombra. Matou seis touros, pagaram-lhe 23 mil pesos, regressou a Espanha, desta vez a Sevilha, para um embate marcado ao longo da duração da feira: ele contra El Espartero, orgulho sevilhano, por quem as mulheres suspiravam escondidas atrás dos leques.

Em 1893, em Madrid, voltava a atuar para a realeza lusitana, numa homenagem a Dona Amélia, ele que tinha tantos amigos portugueses e fazia questão que as suas lantejoulas refletissem a luz da tarde e cegassem com o seu brilho aqueles que o envolviam num carinho especial.

Guerrita, o grande admirador de Joselito, só ouviu dele elogios. Foi toureiro da cabeça aos pés, matador sem piedade, porque a piedade não tem bilhete de entrada para as arenas. Não deixou que tivessem pena da sua própria morte, homem rico e generoso para lá do traje com que fascinava as multidões. Gostava de ser só.