O enterro da História: o Padrão e os canteiros


A discussão já não é sobre os canteiros da Praça do Império e o seu abandono, mas sobre a sua simbologia e se deverão ser ou não recuperados.


2014. Reunião da Câmara Municipal de Lisboa. A fundamentação que o vereador José Sá Fernandes apresentou para a eliminação dos brasões da Praça do Império ficou conhecida na reunião de Câmara, ao responder que a “Câmara de Lisboa […] não deve despender recursos financeiros a recuperar os brasões criados pelo Estado Novo, das antigas colónias portuguesas”. Estava desta forma justificado o lançamento de um concurso de ideias para a remodelação da paisagem do jardim, projetado para comemorar os 800 anos da Independência de Portugal e o terceiro centenário de Restauração da Independência, após o período filipino, no âmbito da realização da Exposição do Mundo Português, em 1940.

A transparência de Sá Fernandes na sua resposta, sincera e convicta, foi depois abandonada pelo próprio que, em segunda argumentação, explicou que nos canteiros não havia qualquer vestígio do cromatismo original das plantas, que dava a forma e a cor aos brasões, através de uma técnica de jardinagem muito valorizada e trabalhosa. O preconceito ideológico, que marcou as suas declarações iniciais, seria escamoteado nas declarações que se seguiram, se bem que esta politização do património esteve sempre presente na proposta que visava, e continua a visar, o desaparecimento dos canteiros de buxo, com as cruzes de Cristo e de Avis, e os brasões das cidades e das províncias de Portugal e das ex-colónias portuguesas, num total de 32 conjuntos. Realce-se o facto deste jardim ter sido classificado por duas arquitetas paisagistas do Instituto Superior de Agronomia de Lisboa com 46 valores, numa escala de 50, principalmente pelo interesse arquitetónico da praça e considerando o caráter único do conjunto de brasões em mosaico-cultura.

A polémica foi de tal ordem que, ainda hoje, se discute a intervenção nos canteiros, chegando a pontos extremos de se discutir as verdadeiras intenções de quem empunha um apagador do passado, pronto a censurar a história e o património histórico do nosso país. A discussão já não é sobre os canteiros da Praça do Império e o seu abandono, mas sobre a sua simbologia e se deverão ser ou não recuperados. Pior, a partir desta controvérsia houve quem fosse por aí fora, defendendo a destruição de monumentos, como o Padrão dos Descobrimentos, não pelo que significavam, mas atendendo ao momento em que foram construídos. Um “apagador do passado” que não reconhece os feitos e a visão do Infante D. Henrique e que não vê qualquer glória no passado português, preferindo um passado em que a revolução de Abril fosse manchada com sangue e mortes, e com a destruição de estátuas e de monumentos. Uma atitude que relembra o derrube das estátuas milenares dos Budas pelos talibãs, ou o ataque das milícias do Estado Islâmico a esculturas no museu de Mossul. Tudo isto foi dito e escrito por um deputado do Partido Socialista, sem que a esquerda moderada se pronunciasse sobre este chorrilho de disparates. Justiça seja feita a João Soares que desde a primeira hora, na qualidade de ex-presidente da Câmara de Lisboa, considerou um “disparate” a posição do executivo socialista no que se refere à manutenção dos canteiros.

A questão primordial é que não existe um plano coerente e sustentado para o jardim; o que se constata é que há uma proposta sectária e fragmentada que define quais os brasões que são recuperados, e quais os que devem ser eliminados. O critério de seleção faz-se com o recurso à evocação do passado colonial, denunciando uma proposta que revela falta de maturidade democrática e uma clara politização do património.

Esta visão muito própria da história e dos monumentos, que assinalam e mantêm na nossa memória um passado que nos une e identifica, coroado com períodos relevantes e saudosos, assim como está manchado com períodos negros que superámos e com os quais nos reconciliámos com a ajuda do tempo, é de tal forma enviesada que revela uma vergonha e desrespeito por quem somos. A habilidade ao defender a destruição do nosso património e de, na mesma frase, fazer referência à inclusão e ao respeito pelos que sofreram, não é para todos. A contradição explícita do desrespeito pelo passado, enquanto fonte do nosso presente, só é compreendida na medida em que a estes indivíduos falta a tolerância que advogam e sofrem de imaturidade democrática.

Na verdade, quem e quantos passam pelos canteiros da Praça do Império ou pelo Padrão dos Descobrimentos e estabelecem uma associação ao passado colonial e se sentem agredidos e ofendidos pela alusão ideológica ao Estado Novo? Até agora, contam-se duas almas que despertaram com uma rebeldia extemporânea para o assunto e que defendem umas marretadas em monumentos e canteiros que não apreciam. Um discurso que apresentam em nome de outros; os mesmos que até hoje não se ouviram, que passavam por lá aos domingos, depois de uma paragem nos pastéis de Belém e tiravam fotografias a pedido dos milhares de turistas que todos os dias se passeavam por ali. Só em 2019, foram registadas cerca de 400 mil entradas na caravela que foi construída para comemorar os 500 anos da morte do Infante D. Henrique e que presta homenagem “aos portugueses que descobriram os caminhos do mar”.

 

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