O foco ou a distração com o passado é uma estranha forma de vida, no presente. Amiúde o espaço mediático e digital é tomado, quiçá no domínio do possuído, por uma inusitada fustigação em torno do passado, das suas realidades, das perceções e das querelas, numa espécie de ajuste de contas com o tempo, impulsionado mais pela ambição da rescrita do que não pode ser reescrito do que por qualquer objetivo de aprendizagem com os erros e as realizações de tempos idos. A empreitada é ainda mais esquisita por ser esboçada aos olhos do pensamento e das vivências de hoje. É uma espécie de desesperada procura de pretextos no passado para expiar a inação consequente no presente, a falta de capacidade de transformação das realidades com base no interesse geral e outras insuficiências atuais dos protagonistas das polémicas e de quem tem o poder de dispor de instrumentos de governação da comunidade. O passado é intimado a dizer presente como se os artífices da polémica tivessem alguma ambição de consequência, além do proveito próprio, do afago das convicções, ideologias ou posicionamentos públicos, políticos e mediáticos. Um circo mediático, volátil e inconsequente, apenas eficaz na divisão, no exacerbar de posições e na boleia dada aos “ismos” da sociedade portuguesa.
O exercício dialético destes salteadores do tempo passado, qual desporto nacional em tempo de confinamento, despende energia, tempo e atenção de forma totalmente inconsequente para as necessidades e as ambições das pessoas e dos territórios. É um desperdício de tempo e de espaço, por quem demonstra não ter nenhuma ambição de transformar o presente e responder aos problemas estruturais; à diversidade da realidade atual, adensada pela pandemia e pelas suas consequências; e aos desafios de futuro.
O minuto de fama do escarafuncho do passado não diz nada ao trabalhador rural do Baixo Alentejo nem ao jovem a recibos verdes num qualquer serviço em meio urbano. Não responde a nenhum problema de sempre ou de circunstância, mas ajuda a dividir, a deslaçar e a gerar todas oportunidades para os recuperadores de passados, outra deriva de simplificação inconsequente sem capacidade para gerar respostas concretas para a complexidade dos nossos dias.
O Estado tem de assumir a sua história como um todo e tem mínimos que deve cumprir em todas as circunstâncias, em função das opções que, em algum momento e noutras circunstâncias, outros assumiram por nós, como comunidade. Se é para tentar reescrever tudo o que passou, seremos projetados para os pressupostos e para os momentos da fundação da nação, não ficará pedra sobre pedra, seremos nada aos olhos dos dias de hoje. O que para alguns, mestres da polémica estéril, acessória e inconsequente, será sempre mais que a nulidade da sua ação presente e do contributo efetivo para a construção de um futuro que some e não subtraia.
O drama é que olhamos para as instituições, partidos políticos ou espaço mediático, estão tomados por predisposições para o escarafuncho, do passado ou de qualquer outra coisa que dê fama ou alente o espírito de sobrevivência política e mediática.
O problema central na atualidade é ainda e continuará a ser de resposta à emergência de saúde pública, mas não há manobra de diversão ou dispersão com o passado que responda aos desafios do presente e ao futuro que temos pela frente.
Se não houver clareza e senso na definição de critérios para desenvolver e concretizar projetos com os recursos financeiros previstos na famigerada “Bazuca”, “Vitamina” ou outra designação para oportunidade excecional, de pouco valerá os escarafunchos ou vasculhos do passado. A consulta pública do Plano de Recuperação e Resiliência é já um ensaio do que para aí vem de exigência e de reivindicação dos diversos setores, alguns completamente esbulhados de atenção governativa consequente, como é o caso do desporto, outros sem perspetiva de apoio para o relançamento, como acontece com a cultura.
Não haver uma noção coerente, justa e integrada do que é essencial fazer no desconfinamento e no pós-pandemia com os recursos existentes, em que faça sentido o que está incluído e o que não pode ser contemplado, pode ser uma tragédia social, económica e política. Será um registo próximo do popular, “casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”, só que com recursos disponíveis.
Basta ler os sinais. E não há como não haverá, escarafuncho do passado que lhes valha no presente.
NOTAS FINAIS
BATER A BOTA COM A PERDIGOTA. Os partidos alteraram a lei para obstaculizar as candidaturas independentes nas autárquicas. Houve um tempo em que não se alteravam leis eleitorais em ano de eleições. Agora vão mexer na lei, a alteração dificilmente entrará em vigor antes do início do prazo de contabilização das despesas de campanha eleitoral. Que irresponsabilidade.
A CEPA TORTA. O preconceito ideológico e a retórica comunista têm dimensões ridículas. O SG do PCP verberou esta semana que em matéria de vacinas “o país não pode ficar refém das decisões da Comissão Europeia, comprometida que está com os grandes grupos farmacêuticos, que olham para a produção das vacinas como um negócio e não como um bem público”. Tudo serve para tentar abocanhar a União Europeia, mesmo quando, desta vez, esta é parte da solução, ao invés de um PCP cada vez mais parte do problema e alimentado pelo ânimo do protesto inconsequente, sem memória de outros tempos em que os ditames internacionais de Moscovo eram lei.
MOSQUITOS POR CORDAS. O tempo atual tem uma exigência dos processos de decisão que não é compatível com as soluções existentes para o funcionamento das instituições e das comunidades. Há muito que o tempo, mais do que o espaço, dita a lei da eficácia das respostas. Não perceber que esse desfasamento é fatal para qualquer afirmação positiva é condenar o país e os portugueses a continuarem a correr atrás dos prejuízos. Ora aí está um bom desafio para os folgados das polémicas estéreis, compatibilizar garantias constitucionais com menores tempos dos processos de decisão e de acesso a bens e serviços.
Escreve à segunda-feira