Viver a verdade a mentir


Aos lobos deixa-se que se vistam de cordeiros, aos gatunos que se apresentem como benfeitores e às bestas que se mascarem de bestiais. 


O ambiente que se vive à volta do fogo propicia pensamentos, memórias, reflexões. As chamas que devoram cada pedaço de madeira fascinam-nos pela força que têm, pelo seu poder destrutivo. Há muito que encaramos o fogo como elemento divino que revela, purifica e aconchega. Ao longo da história queimámos oferendas e incensos, acendemos lamparinas de azeite, velas de cera, e alumiámos imagens para nós sagradas. Além de troncos, também queimámos cartas, fotografias e muitas outras recordações.

Foi assim que este ano passei o meu Carnaval, perto do fogo, em família. O mesmo Carnaval que nos habituámos a festejar com euforia e excesso ao ritmo da música, da dança, do colorido das máscaras e da diversão. “É Carnaval, ninguém leva a mal”, dizem. Talvez seja o espírito carnavalesco que faça com que, mesmo nas noites geladas, o calor humano se sinta nas ruas mais estreitas, onde os corpos se tocam, colidem, onde os adereços se embaraçam. Disfarçamo-nos de heróis, vilões, animais e muitas outras criaturas tão originais quanto a nossa imaginação consegue alcançar. 

Vem-me à memória um certo disfarce de mosqueteiro que usei durante um certo Carnaval, quando era criança. Gostei tanto do chapéu que compunha a indumentária que quis continuar a usá-lo depois de a festa ter acabado. Lembro-me tão bem dele!… Era vermelho, tinha um penacho enorme, uma faixa preta e uma fivela dourada. Tudo poderia ter sido perfeito, mas o hábito que os adultos têm de dizer não às crianças roubou-me aquele momento de felicidade. Ainda hoje me pergunto qual a verdadeira razão pela qual não me deixaram sair de casa com o meu chapéu de mosqueteiro. Por mais que me explicassem que o Carnaval tinha acabado, eu queria continuar a usar aquele lindo chapéu, mas não foi possível, e assim se perdeu um mosqueteiro.

Não é que o hábito faça o monge, mas os sinais e os rituais ajudam-nos a viver mais intensamente as nossas convicções. Não tomo como certo que devamos viver a verdade como se de uma mentira se tratasse. Mas talvez porque há quem o faça, haja mais gente nos teatros do que nas igrejas. É que os rituais de fé, por exemplo, se não forem vividos com autenticidade, ficam muito aquém do Carnaval. Facilmente perdem o brilho, amputam os corpos, retiram cor à vida e confundem a inocência. 

À criança que eu fui não permitiram cumprir o ritual de usar um chapéu de mosqueteiro, mas aos lobos deixa-se que se vistam de cordeiros, aos malandros que se disfarcem de responsáveis, aos gatunos que se apresentem como benfeitores e às bestas que se mascarem de bestiais.
Seja como for, viemos do pó e ao pó voltaremos.

Professor e investigador

Viver a verdade a mentir


Aos lobos deixa-se que se vistam de cordeiros, aos gatunos que se apresentem como benfeitores e às bestas que se mascarem de bestiais. 


O ambiente que se vive à volta do fogo propicia pensamentos, memórias, reflexões. As chamas que devoram cada pedaço de madeira fascinam-nos pela força que têm, pelo seu poder destrutivo. Há muito que encaramos o fogo como elemento divino que revela, purifica e aconchega. Ao longo da história queimámos oferendas e incensos, acendemos lamparinas de azeite, velas de cera, e alumiámos imagens para nós sagradas. Além de troncos, também queimámos cartas, fotografias e muitas outras recordações.

Foi assim que este ano passei o meu Carnaval, perto do fogo, em família. O mesmo Carnaval que nos habituámos a festejar com euforia e excesso ao ritmo da música, da dança, do colorido das máscaras e da diversão. “É Carnaval, ninguém leva a mal”, dizem. Talvez seja o espírito carnavalesco que faça com que, mesmo nas noites geladas, o calor humano se sinta nas ruas mais estreitas, onde os corpos se tocam, colidem, onde os adereços se embaraçam. Disfarçamo-nos de heróis, vilões, animais e muitas outras criaturas tão originais quanto a nossa imaginação consegue alcançar. 

Vem-me à memória um certo disfarce de mosqueteiro que usei durante um certo Carnaval, quando era criança. Gostei tanto do chapéu que compunha a indumentária que quis continuar a usá-lo depois de a festa ter acabado. Lembro-me tão bem dele!… Era vermelho, tinha um penacho enorme, uma faixa preta e uma fivela dourada. Tudo poderia ter sido perfeito, mas o hábito que os adultos têm de dizer não às crianças roubou-me aquele momento de felicidade. Ainda hoje me pergunto qual a verdadeira razão pela qual não me deixaram sair de casa com o meu chapéu de mosqueteiro. Por mais que me explicassem que o Carnaval tinha acabado, eu queria continuar a usar aquele lindo chapéu, mas não foi possível, e assim se perdeu um mosqueteiro.

Não é que o hábito faça o monge, mas os sinais e os rituais ajudam-nos a viver mais intensamente as nossas convicções. Não tomo como certo que devamos viver a verdade como se de uma mentira se tratasse. Mas talvez porque há quem o faça, haja mais gente nos teatros do que nas igrejas. É que os rituais de fé, por exemplo, se não forem vividos com autenticidade, ficam muito aquém do Carnaval. Facilmente perdem o brilho, amputam os corpos, retiram cor à vida e confundem a inocência. 

À criança que eu fui não permitiram cumprir o ritual de usar um chapéu de mosqueteiro, mas aos lobos deixa-se que se vistam de cordeiros, aos malandros que se disfarcem de responsáveis, aos gatunos que se apresentem como benfeitores e às bestas que se mascarem de bestiais.
Seja como for, viemos do pó e ao pó voltaremos.

Professor e investigador