“Miserável país aquele que não tem heróis. Miserável país aquele que precisa de heróis”. Bertolt Brecht
A morte de Marcelino da Mata, um militar português que combateu na Guerra Colonial e que recebeu as maiores condecorações militares, reabriu uma polémica recorrente: os militares portugueses que combateram naquela guerra cumpriram um dever ou simplesmente estiveram do lado errado da História?
Considerado herói por uns e assassino por outros, Marcelino da Mata é um exemplo típico da revisão da História, feita sempre pelos vencedores. No Estado Novo, foi um herói. No regime democrático, um criminoso de guerra. Na verdade, Marcelino da Mata, oficial dos comandos africanos na Guiné, cometeu atrocidades nos combates em que participou, a exemplo de muitos outros militares, de parte a parte.
Poder-se-á invocar a “guerra justa”, a desenvolvida pelos nacionalistas, contra a “guerra injusta”, levada a cabo pelo Exército português. Isto é, olhar com benevolência para todos os atos praticados pelas forças nacionalistas e reprovar todos os cometidos pelos militares portugueses. Podemos também tentar esquecer que a guerra em Angola começou com um verdadeiro ato de barbaridade cometido por populações enfurecidas. Podemos até reprovar apenas a resposta tão ou mais violenta das forças militares e civis armados.
O que separa um ato bárbaro “justo” de um “injusto”? O que é um herói de guerra? O celebrado e idolatrado Che Guevara afirmou em plenas Nações Unidas, no dia 11 de dezembro de 1964: “Fuzilamentos? Sim, fuzilamos e continuaremos a fuzilar, sempre que necessário. A nossa luta é uma luta até à morte!”
Já vi escrito que Marcelino da Mata foi “um traidor do seu povo”. A questão é que, legitimamente, o militar sentia-se português. Tão português como qualquer outro. Criticá-lo à luz dos dias de hoje não me parece ser um exercício honesto.
Como afirmou Napoleão, “o exército é uma multidão que obedece”. Na verdade, em nome dessa obediência, muitos militares, de ambos os lados, praticaram atos de que não se devem orgulhar.
Marcelino da Mata excedeu, sem dúvida, em muitas ocasiões, as ordens que recebeu. E, segundo muitos testemunhos – eu próprio o entrevistei para um livro que escrevi –, não hesitava em contar algumas “façanhas”. Ele era um “herói” condecorado pelo Exército português e assim se considerava.
Mas quando falamos de “heróis” é sempre importante ter em conta que a guerra não se fez só com eles. Aliás, como Brecht recordou no seu poema “Quem faz a História”, há sempre alguém por detrás de cada “herói”: “O jovem Alexandre conquistou a Índia./ Ele sozinho?/ César bateu os gauleses,/ Não tinha pelo menos um cozinheiro ao seu serviço?/ Felipe de Espanha chorou quando sua armada naufragou./ Ninguém mais chorou?/ Frederico ii venceu a Guerra dos Sete Anos./ Quem venceu além dele?”
Como escreveu Ana Sá Lopes no Público, temos mesmo de “trocar umas ideias sobre o assunto”. A Guerra Colonial continua a ser um tema delicado que muitos ainda querem esconder debaixo do tapete ou, comodamente, registar apenas a versão dos vencedores, em vez de tentar confrontá-la com a dos vencidos.
Um provérbio africano ilustra bem esta ideia: “Até que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça”. Voltando a Brecht: “Tantos relatos. Tantas perguntas.”