O autor é quase desconhecido em Portugal. Tirando um ou outro título em editoras católicas – o que acaba logo por condicionar a recepção -, Um vestido curto de festa é, muito provavelmente, das primeiras vezes que Christian Bobin chega às livrarias. Com tradução de Teresa Noronha e prefácio de António Cabrita, saído numa editora recente que conta com cerca de uma dezena de títulos, estas histórias dificilmente classificáveis acabam por ter um denominador comum, desde logo visível no texto que as antecede: um elogio da leitura e da escrita.
Não são propriamente histórias, apesar de podermos reconhecer, em todos os textos que compõem o volume, uma narrativa. São pequenos motivos – como na pintura -, arabescos cujo modelo é facilmente adivinhável e que têm, no fundo, uma dimensão sapiencial que nos fala dessa “solidão da língua, solidão das almas”. O modelo, claro, para um autor como Bobin, é o conjunto de textos que os católicos designam como Bíblia, onde as diversas narrativas se encontram de tal forma embebidas num lado meditativo que, sem este, desaparecem (não é por acaso, aliás, que comparecem neste livro de Bobin tanto a conhecida história de Jonas como Perceval).
Este pequeno conjunto de histórias tem, portanto, essa dimensão sapiencial, meditativa, são histórias cujo objetivo passa sempre por fazer nascer outras palavras, como se pedissem constantemente uma interpretação – não tanto uma palavra que venha explicar, mas uma palavra que se enderece à história, que se venha juntar a ela. Mas talvez por causa disso, dessa dimensão sapiencial, todas estas pequenas histórias acabam também por ser um elogio tanto da escrita como da leitura, como se estas duas só fizessem sentido através dessa dimensão narrativa, desse contador de histórias em que a narrativa atinge aquilo que Walter Benjamin chamava de “amplitude vibratória”. Bobin sabe, tal como Benjamin já sabia, que esta dimensão da escrita e da leitura, que esta fina vibração que consegue por vezes atingir, já desapareceu, que é hoje apenas uma ideia, uma falta, que a narrativa tende a fechar-se sobre si mesma num conjunto de regras tantas vezes arbitrárias – que perdeu essa “matéria vinda de longe” que nos pedia uma resposta, uma outra palavra, a palavra outra que se vinha juntar a uma cadeia ininterrupta de outras palavras. Hoje, apenas nos resta isto, a falta e a sua consciência, saber que nos falta alguma coisa, mesmo que não se saiba nomear o que isso seja – e saber isso é já muito, é já tudo tantas vezes.
“Um dia reconhece-se a palavra sobre a página, lemo-la em voz alta e é um pedaço de deus que se vai para sempre: a primeira fractura no paraíso. Continuamos com a palavra seguinte, e o universo que até aí era um todo desfaz-se em frases, nada mais do que frases, terras perdidas no branco da página. Estamos na escola, temos a nossa ocupação de crianças. Existe, é verdade, uma enorme felicidade nessa perda, nessa descoberta primeira da leitura, da sua capacidade de decifrar uma página, de contemplar as sombras.”
Seria fácil arregimentar este conjunto de histórias, todas elas encenando de uma forma ou de outra a escrita e a leitura como motivo, para um certo discurso contemporâneo que insiste na valorização do livro e da cultura escrita – tanto mais que, agora, as livrarias e as editoras reclamam a sua forma particular de “excepção cultural”.
Dizem-nos – há sempre uma pequena lição moral neste tipo de discurso – que os livros, a leitura, a escrita, têm um valor inestimável, que, enfim, nos protegem contra a barbárie, que são uma protecção contra os abusos do poder, que nos tornam melhores, que nos cultivam (são, afinal, cultura, que não anda distante do campo semântico da agricultura). Este tipo de discurso, que se vem tornando hegemónico, mas tendo ele próprio uma história, foi resumido por Hannah Arendt numa figura bastante conhecida e que, na realidade, se tem vindo a tornar parasitária ao campo literário: o filisteu cultivado ou o filisteu educado, tal como aparece no texto “A Crise da Cultura”. Ouçamo-la:
“O problema com o filisteu educado não estava em que ele lesse os clássicos, mas que os lesse movido pelo motivo secundário de se auto-aperfeiçoar, ignorando o facto de que Shakespeare ou Platão podiam ter coisas mais importantes para lhe dizer do que o modo como se educar”.
O filisteu está constantemente a elogiar o valor da literatura e da escrita – não faz, aliás, outra coisa, vive e respira nesse elogio perpétuo. Que esse elogio é contraproducente é facilmente perceptível (o valor, além dos discursos vagos e bem-intencionados, é sempre um valor económico e, aí, a poesia, por exemplo, é absolutamente inútil), que ele é normalmente dúplice, dando a ver outras motivações, também parece evidente: atrás do discurso vagamente romântico e edificante relativo às livrarias a aos livros, por exemplo, o que se está em causa é o grande retalho, esse sim o verdadeiro objeto de elogio.
Mas há outras formas de nos relacionarmos à escrita e à leitura que não passa pelo filistinismo – e é na sobriedade deste discurso, o de Bobin, por exemplo, que encontramos uma possibilidade.
É um discurso pobre, sem dúvida – sóbrio, reivindicando para a escrita e para a leitura, não o direito de cidade que o filistinismo sonha, mas esse extremo de onde surge, essa “vida sem amanhã” que só a escrita e a leitura conhecem. Jonas, convocado numa das histórias, depois de cantar na “caverna-ventre do negro” – esta escrita, esta leitura, sabe que se trata de um mundo sem saída onde se inventa uma saída – desiste e decide voltar à cidade para entregar essa mensagem cheia de cólera.
“As pessoas acreditaram no que ouviram, elas pensaram, acabou, deus não volta atrás na sua decisão, desta vez acabou, e ei-los que param com os negócios, saem dos seus gabinetes e descem às ruas para reencontrar a vida sem amanhã, quer dizer a graça de viver, quer dizer deus”.
É uma vida sem propósito, que deixou atrás de si qualquer finalidade: “sonha em todas as línguas”, sem dúvida, como esse homem inútil que “não acrescenta nem retira nada ao mundo: ele abandona-o”; mas também conhece uma forma particular de desespero – essa graça de viver que soa tantas vezes a uma condenação violenta, sem saída.
Desta pobreza, desta sobriedade que Christian Bobin descobre na escrita e na leitura, não se faz nada. Com ela não se constroem discursos eloquentes em defesa do livro, nem se alimenta o filisteu cultivado, que vê nesta reivindicação da pobreza um discurso anterior ou posterior à política – sobredetermina-o, no máximo, arregimentando-o para os seus propósitos de educação das massas.
Esta pobreza ou esta sobriedade é a medida do desespero que Bobin encontra na escrita e na leitura – é a falta que a palavra vai inaugurar no mundo. Na primeira história que conta é esta pobreza que está em causa: um suicídio falhado e, depois, o ressurgir da escrita para dar conta daquilo que perdeu (“a palavra, o gosto pela palavra límpida, o amor pela palavra verdadeira”); mas é também esta pobreza que encontramos nesse desespero que Bobin vê em Racine:
“Um livro é grande pela grandeza do desespero que o procede, por toda essa noite que pesa sobre ele e que o impede, durante muito tempo, de nascer. Portanto, isto é no início. Antes do acto de ler, da leitura. Portanto, esta sombra do pai pairando, esta noite fulva na cabeça de Racine que espera o seu primeiro verso, no embaraço dos dias”.
A escrita, a leitura, fazem-se sempre nas imediações desse desespero de que fala Bobin, dessa falta – disso que faltará sempre -, dessa vida sem amanhã (condenação ou graça). Porque, em última análise, esta escrita e esta forma de ler medem-se constantemente, sem qualquer heroísmo, face a um mundo sem saída:
“É neste século, na fúria dos negócios, das dívidas de sangue e guerras de honra, que os trovadores pegam no nome de uma mulher entre os dentes e deixam subir dentro de si o canto, uma chama azul num céu franco. É neste mundo sem saída que eles inventam uma saída, a porta de um só nome em todas as línguas”.
Facilmente se percebe que esta saída inventada não é saída alguma – que isto, a escrita, a leitura, não mudam nada, não acrescentam nem retiram nada, não melhoram nem pioram, por mais que o filisteu cultivado aposte tudo numa retórica que pretende dar tudo à literatura quando, na realidade, lhe retira a possibilidade da sua pobreza e da sua sobriedade.
E aquilo que se poderia perguntar, contrariando esse discurso que se foi instaurando no espaço público, é simples: o que acontece ao próprio espaço público quando a literatura consegue escapar tanto à sua valoração como à afirmação da sua inutilidade?