Carmen Dolores. Morreu a grande atriz dos palcos portugueses

Carmen Dolores. Morreu a grande atriz dos palcos portugueses


Começou ainda adolescente na rádio, viveu a época áurea do cinema português, marcou o teatro e ainda passou pela televisão. Carmen Dolores morreu aos 96 anos.


Os anos na vida de um ator não se somam, multiplicam-se. Esses que expressam a paixão dos homens não podem apenas encarná-los, pois de cada vez que se libertam, há uma certa dimensão interior que acaba por morrer. Do mesmo modo que há um certo gosto em pensar sozinho, porque, como nos diz Drummond de Andrade, esse ato individual é algo como nascer e morrer, para que o ator se empreste ao público, antes, sozinho, tem de ter contido essa dimensão individual. E foi na época áurea do cinema português que Carmen Dolores entendeu que começou a exigir cada vez mais de si própria, “um nunca acabar de explorar os meus sentimentos e oferecê-los à outra, às outras que queriam que eu fosse”. Mas havia uma dedicação que ia para lá, e algo que, depois, voltava. “Eu dando-me às personagens e elas ajudando-me a descobrir em mim caminhos nunca explorados”. Morreu na segunda-feira, aos 96 anos, uma das mais consagradas atrizes portuguesas, que decidira que o último ato da sua vida se destinaria a preservar a memória, os momentos altos da sua carreira, tendo-se retirado em 2005. Pôs termo a um percurso de seis décadas, subindo por uma última vez ao palco, com a reposição da peça Copenhaga, de Michael Frayn, no Teatro Aberto e com encenação de João Lourenço. Nesse mesmo ano, foi agraciada com o grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, pelo então Presidente da República, Jorge Sampaio. E, em 2018, foi condecorada com as insígnias de Grande-Oficial da Ordem do Mérito pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, numa cerimónia que teve lugar no Teatro da Trindade, em Lisboa, no final da estreia da peça Carmen. Tratou-se de um espetáculo de homenagem à atriz inspirado nas suas memórias com texto e encenação de Diogo Infante. Fora naquele teatro que Carmen Dolores se estreou, e, por essa razão a sala principal do teatro tem, desde 2018, o nome da atriz.

É especialmente ingrato para o ator que, depois da sua passagem pelos palcos, das imagens captadas, da voz soando numa doçura que triunfa sobretudo entre quem se lembra, que se conte a sua história a partir de algo tão trivial como a morte. Ao oferecer esse fim com que se vem coser uma narrativa, aquilo que em tempos foi uma desordem triunfante, vê-se cauterizado, deixando uma marca tão infeliz como são todas as cicatrizes. Há um breve poema de Natalia Litvinova que exprime bem esse fulgor que se torna imperioso à forma como os atores dobram e desdobram o tempo. “Minha pele não sabe cicatrizar, deve ser indício de algo, é como se o corpo/ insistisse em permanecer aberto, obstinado em florescer”. Em 2017, com o título Vozes Dentro de Mim, saiu o último volume das suas memórias, essas “recordações, tornadas vozes dentro de mim”. E a atriz contou na altura que a ideia de fixar aquilo que recordava lhe surgiu durante um recital do pianista Grigory Sokolov, em que foi transportada para a sua infância, para a casa dos pais na Rua Visconde de Valmor, em Lisboa. Empurrada pelo ouvido, que daquele piano chegou à música que então se ouvia numa grafonola. Nesse ano, em entrevista ao Observador, explicou que o livro arrumava saudades, as coisas que se via obrigada por fim a deixar. “Não é nostalgia do que passou, nem melancolia porque lembro sobretudo as coisas boas – sem me esforçar muito por isso. Sei que sinto falta das pessoas que já cá não estão, não só da família como dos colegas, mas isso é natural”, afirmou.

Ontem, depois da notícia da sua morte ter sido avançada, as homenagens sucederam-se nesse regime sempre austero de quem diz ter a voz embargada pela dor. A par disso, houve quem lembrasse a extrema generosidade de Carmen Dolores, sua “infinita simpatia”, e o talento. Numa nota publicada no site da Presidência, Marcelo destacou o variado percurso artístico da atriz, que incluiu a interpretação rigorosa e elegante de clássicos e de clássicos modernos, com uma presença que impressionou diferentes gerações. Marcelo vincou ainda o papel de Dolores na divulgação da poesia. “Vozes que se exprimiram na sua voz e dicção inconfundíveis, e que continuarão connosco e com os vindouros”.

De resto, o primeiro mundo de Carmen Dolores foi a rádio, onde se viu entrar como num território mágico, “uma atmosfera que me parecia irreal, de um irreal que eu nunca sonhara”, era “o sonho-realidade”. A boa articulação da sua voz viria a revelar-se uma peça essencial na forma como foi construindo um caminho, e desses dias da rádio, além do ânimo que encontrava nas “palavras aladas dos poetas”, lembra que “a procura da inflexão certa tornou-se uma rotina apaixonante” e que a ajudaria muito no trabalho como actriz.

Nascida a 22 de abril de 1924, Carmen Dolores reconhecia o privilégio que teve por ter tido a possibilidade “de viver, em várias épocas, o início deste ou daquele projecto. Os anos gloriosos da Rádio, os tempos áureos do nosso Cinema (quando todos os portugueses iam ver os seus filmes), o princípio da Televisão, até o começo dos Grupos de Teatro Independentes”. Chegou à rádio tinha apenas 14 anos, e não era então nada que se confundisse com um trabalho, mas sim uma espécie de aventura, descrevendo “a fauna dos estúdios” como um bando alegre que se reunia sem buscar qualquer lucro, simplesmente pela boa disposição. “Que horas maravilhosas essas, surgidas inesperadamente por iniciativa do meu irmão, sempre amado, quando as estações de rádio amadoras pediam colaboradores voluntários… e nós íamos apaixonadamente, não para sair do anonimato, mas pelo gozo de lançar ao mundo as palavras dos poetas ou a melodia mais romântica…” Começou na Rádio Sonora e foi depois que a “voz linda” lhe valeu um lugar na Renascença, seguindo-se o Rádio Clube Português. Antes da estreia nos palcos, estreou-se no cinema pela mão de António Lopes Ribeiro, em Amor de Perdição (1943), e foi em 1945, integrada na Companhia Os Comediantes de Lisboa, que começou a trilhar um rumo nos palcos, na peça Electra, a mensageira dos deuses, de Jean Giraudoux, encenada por Francisco Ribeiro (Ribeirinho), e que, como já se referiu, teve lugar no Teatro Trindade.

Logo chegaria ao Teatro Nacional D. Maria II (Companhia Amélia Rey Colaço-Robles Monteiro), onde permaneceu durante oito anos, tendo passado também pelo Teatro de Sempre, de Gino Saviotti, e pelo Teatro Nacional Popular. Em 1946, contracenou ao lado de Eunice Muñoz em Camões, de Leitão de Barros, no papel de Catarina de Ataíde. Despediu-se temporariamente do grande ecrã em 1952, com o filme A Garça e a Serpente, de Arthur Duarte, só regressando duas décadas mais tarde, já após o 25 de Abril, com O Princípio da Sabedoria (1975), de António Macedo. A pausa no cinema permitiu-lhe explorar outros meios, nomeadamente a televisão. Entrou em várias peças transmitidas pela RTP nos anos 60 e em séries e telenovelas, como a Banqueira do Povo (1993), a segunda “novela das sete” da RTP 1. Escrita por Walter Avancini e Patrícia Melo, a produção contava com Eunice Muñoz como a burlona D. Branca. No início dessa década, fundou, com Armando Cortez, Fernando Gusmão e Rogério Paulo, o Teatro Moderno de Lisboa. Outro marco na sua intervenção pública deu-se em 1999, quando fundou com Raul Solnado, Manuela Maria, Armando Cortez e Octávio Clérigo a Casa do Artista, uma estrutura que se tem revelado de providencial no apoio social aos artistas portugueses tantas vezes esquecidos pelo público.

Num tributo à atriz, Tiago Rodrigues, diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II, afirmou que “o extraordinário talento de Carmen Dolores andava de mãos dadas com uma enorme dignidade e elegância. Marcou as nossas vidas e a existência do Teatro Nacional D. Maria II, onde trabalhou desde o início dos anos 50 em inúmeras peças e até ao final dos anos 90. Durante toda a sua carreira, sem esquecer a breve mas importantíssima aventura que foi o Teatro Moderno de Lisboa, Carmen Dolores foi um exemplo para todos nós. É com profunda tristeza, mas grande sentimento de gratidão, que lhe digo adeus”.