Nos jornais – e muito mais na televisão – podemos aperceber-nos, hoje, de uma tendência para um crescente e sistemático apelo à criminalização de específicas condutas e a um agravamento de sanções das infrações já existentes.
Num país que, apesar de toda a crise que atravessa, mantém um nível de segurança elevado e uma criminalidade reduzida, estes apelos sistemáticos não podem deixar de ser lidos como estranhos e inquietantes.
Os discursos mais extremos exigem, por exemplo, penas de morte, de prisão perpétua, castrações e amputações várias e sugerem-nos, também, cada vez mais, proibições e censuras despropositadas.
É, porém, no que respeita às pequenas transgressões sociais – aquelas que quase todos os cidadãos comentem – que a senha persecutória se adensa, se exprime nos fóruns políticos menos expectáveis e se populariza, criando, assim, um ambiente favorável a uma cultura cada vez mais autoritária.
Este desejo larvar de criminalização e sancionamento de todo o tipo de condutas torna-se ainda mais extraordinário, quando, em paralelo, assistimos na sociedade – por parte de quem o alimenta e propaga – a uma relativização crescente de qualquer ordenamento que vise disciplinar, no plano dos deveres, a conduta social dos cidadãos.
Discute-se e critica-se a aprendizagem escolar dos princípios e dos valores democráticos que o texto constitucional exprime e contesta-se, também, a legitimidade e autoridade de professores das escolas públicas para os veicular aos alunos.
Contrariam-se, livremente, os bons costumes que, para além das regras jurídicas, devem presidir a relações laborais normais.
Descura-se a necessidade do tratamento cortês entre funcionários e os cidadãos que recorrem aos serviços públicos e o dos cidadãos entre si: basta ver o tom desbragado da linguagem que é usada em alguns programas televisivos passados em horário nobre.
Deprecia-se necessidade de conter a calúnia e desenvolver as regras de boa educação nos discursos políticos, nas redes sociais e nas críticas e comentários mediáticos, permitindo-se, nestes, tudo o que de mais ordinário e soez se possa imaginar.
Questiona-se, nos media, quem muito estudou e se aperfeiçoou em certas matérias, interrompendo-se, com observações totalmente despropositadas e tendenciosas, as respostas fundadas que os especialistas procuram dar.
Duvida-se, com leviandade e sobranceria, sobre e o rigor dos conhecimentos médicos e científicos, e o exercício sério e dedicado dos seus profissionais.
Debate-se, sem qualquer consistência, a legitimidade e a autoridade jurídica das decisões dos tribunais e ironiza-se com a indispensável ação preventiva das forças policiais, mesmo, ou sobretudo, quando esta é contida e racional.
Coloca-se, enfim, genericamente em causa a validade dos princípios de convivialidade que estruturaram a organização institucional e social, que até hoje nos regeu, à qual costumamos chamar civilização.
E – pasme-se! – quem o faz e, simultaneamente, fomenta e se aproveita deste relativismo deletério, arvora-se, quase sempre, em defensor e regenerador dos valores em que se funda a História do país.
E, depois – pasme-se de novo -, para apaziguar as tensões artificialmente criadas, pede-se mais crimes, mais sanções, maiores penas.
Esta tendência recente para a neocriminalização da vida comum tem como consequência a despolitização da resolução dos problemas, perspetivando, simultaneamente, uma visão aparentemente neutral, mas na verdade, autoritária da vida social.
Compreender e repudiar esta pulsão para o uso desmesurado da força e desmascarar os discursos contraditórios e demagógicos, que tanto desvalorizam a autoridade democrática, institucional e científica, como exigem mais e mais autoritarismo, parece difícil no contexto mediático – quase sempre medíocre e, não raro, conivente – que nos cerca.
É, todavia, essencial que o façamos, se queremos preservar os princípios e valores humanistas em que assenta a nossa república.
É verdade que esta não é perfeita – como não o são, de resto, alguns dos cidadãos que a compõem e, sobretudo, muitos dos que a agridem – e que, em áreas fundamentais como as da sua dimensão social e económica, está longe de estar minimamente realizada.
Todavia, ela é, mesmo assim, uma das mais completas democracias existentes, designadamente no que respeita à defesa dos direitos e à afirmação da dignidade do homem.
É compreensível que tantos meses de indispensáveis regimes de exceção – com mais ou menos confinamentos – possam provocar ansiedade e apreensão coletivas.
É, todavia, fundamental que a tensão daí resultante não possa ser aproveitada para desmantelar o regime democrático e os seus princípios fundadores: a liberdade e a igualdade.
E, se a liberdade é quotidianamente abusada por aqueles que sempre a negaram, a realização progressiva da igualdade sempre foi dificultada, mesmo pelos que dela falam como um objetivo bonito, mas sempre distante.
Só rebatendo – todos os democratas que se reveem na Constituição – os discursos tremendistas e autoritários que hoje nos massacram seremos, certamente, capazes de preservar e aprofundar a nossa democracia.
Só esforçando-nos por ir realizando, todos os dias, mais e mais igualdade, conseguiremos, afinal, conservar a liberdade que tanto nos custou a alcançar.