Em tempo de pandemia, as relações físicas e emocionais tiveram de se adaptar. Uns suspenderam-nas totalmente; outros nem por isso. Fernando Mesquita, psicólogo, sexólogo e terapeuta sexual, acredita que, ao contrário do que se pensa, a pandemia fará com que a população se aproxime mais, contrariando a distância a que o novo coronavírus obriga.
Agora com a pandemia tem sido mais difícil conhecer pessoas novas e ter relações. Em que medida é que isso pode afetar as pessoas?
O que eu tenho estado a verificar, e saiu um estudo recentemente sobre o uso das aplicações, é que as pessoas solteiras – nomeadamente as norte-americanas, mas talvez também aconteça com os portugueses – neste momento quando estão nas redes sociais à procura de um encontro, estão realmente à procura de um parceiro amoroso e não tanto por uma questão sexual. Parece que está a existir uma intenção diferente do uso das aplicações. Também porque se calhar os encontros sexuais agora também não são tão frequentes – as pessoas não podem sair, existe maior risco de contágio. Portanto, apareceu aqui uma alteração, nem que seja momentânea, na forma como os solteiros estão a encarar as aplicações de encontros (Tinder, Grindr, Meetic, Happn).
As aplicações tipo Tinder e Grindr têm sido uma forma de escapar à solidão?
Sim, por um lado permitem escapar à solidão e por outro conhecer outras pessoas. Antes havia muito a ideia de que, se não existisse resposta imediata, passava-se para outra pessoa logo a seguir. Neste momento está-se a observar um maior interesse e envolvimento em conhecer os outros. Também não existe a possibilidade de as pessoas se encontrarem fisicamente, o que leva a que exista um maior tempo e disponibilidade para conhecer o outro em termos emocionais e afetivos.
Acha que depois da pandemia vai haver um baby boom, como houve, por exemplo, quando acabou a guerra?
A verdade é que já se tem verificado um aumento de pessoas grávidas. Mas estamos perante duas situações: por um lado, o aumento de nascimentos; por outro, o aumento de divórcios. As pessoas não estavam habituadas a estar tanto tempo juntas e isto leva a que, de alguma forma, surjam assuntos que muitas vezes tinham sido deixados para trás, como o cuidar dos filhos e o estar em casa, tanto tempo juntos. O que eu costumo dizer é que, antes da pandemia, nós tínhamos uma série de estratégias para nos libertarmos do stress e ocuparmos a nossa cabeça. Por exemplo, se estivéssemos mais chateados podíamos ir ao café ou ao cinema ou até mesmo sair para dar uma volta. Agora, todas estas estratégias deixaram de existir e muitas pessoas estão perdidas em busca de outros mecanismos, o que acaba por lhes causar ainda mais stress e irritabilidade e também diminui a tolerância para “aturar” o parceiro ou a parceira.
Mesmo não sendo seguro estar com outras pessoas, acredita q os portugueses estão a transgredir as regras em nome dos seus desejos?
Eu tenho apanhado de tudo: pessoas que estão muito assustadas e não saem de casa e pessoas que descuram por completo a situação. O ideal aqui seria estarmos num meio termo. De facto, temos pessoas que continuam a sair e a encontrarem-se mas penso que será uma minoria. Em geral, as pessoas estão a ter mais cuidado em conhecer outras pessoas.
Tem observado mais casos de pessoas – nomeadamente solteiras – frustradas por verem a sua vida social parada?
Depende do desespero que essas pessoas têm em encontrar alguém. Se essas pessoas também encararem isto como uma forma de se focarem mais em si, aproveitarem a situação para praticar o autoconhecimento, descobrir o que gostam e o que não gostam, tirar formações, verem filmes e valorizarem-se pessoalmente, com certeza não estarão muito frustradas. Se, por outro lado, estão focadas na satisfação sexual ou desesperadas porque têm uma necessidade de companhia, nesse caso, certamente estão a passar por um período muito difícil. Relativamente a esses casos, ainda bem que vivemos numa época com alternativas como as redes sociais, porque assim é possível falar com amigos, familiares e até conhecer outras pessoas para combater essa solidão. Existem recursos que nos ajudam a lidar com ela de uma forma diferente. Provavelmente, há uns anos as consequências podiam ser bem piores.
E por outro lado, os casais que agora passam o dia em casa, acredita que aumentaram a sua atividade sexual? Ou estar muito tempo com o outro acaba por provocar um afastamento?
Aquilo que se costuma dizer é que nós desejamos aquilo que não podemos ter. O facto de a pessoa estar ausente leva-nos a fantasiar e a desejar estar com ela. Se passamos 24 horas com a outra pessoa, perde-se o espaço para a fantasia, mas claro que isso depende do casal e da estrutura que tem. A forma como estamos mais tempo juntos ou não depende muito de como encaramos a situação da pandemia e de estarmos confinados. Se vemos o confinamento como uma obrigação ou um castigo, vamos estar menos tolerantes e mais irritados com a própria situação. Se virmos como uma possibilidade de estarmos mais próximos com os nossos parceiros, pode ser uma oportunidade de melhorar a aproximação e eventualmente até, em alguns casais que não tinham tanta atividade sexual, aumentar a regularidade. Não há uma regra geral, depende da forma como as pessoas encaram a própria situação.
O prazer individual é capaz de substituir o toque de outra pessoa?
Eu considero que o autodescobrimento e o prazer sexual individual devem fazer parte da vida de qualquer pessoa, quer se tenha uma relação ou não. Mas esta é uma questão à qual não é fácil responder. Nós não podemos dizer que uma pessoa que está satisfeita apenas com o prazer individual tenha algum tipo de problema. No entanto, se essas pessoas se refugiam neste tipo de prazer e não investem em contactar outras pessoas porque têm algum tipo de bloqueio, seja timidez ou receio da rejeição, aí já podemos dizer que pode existir um problema e essas pessoas deverão procurar ajuda especializada de um psicólogo ou de um terapeuta sexual. Mas uma pessoa que esteja bem consigo mesma e com o seu prazer individual, não existe qualquer tipo de problema.
Acha que as pessoas poderão ter mais dificuldade em lidar umas com as outras, tanto física como emocionalmente, quando as coisas voltarem ao normal?
Acredito que não e que, com o passar do tempo, voltaremos à regularidade. Aliás, já tivemos o exemplo disso quando ficámos mais desconfinados, as pessoas rapidamente voltaram a estar mais próximas. Existe uma grande vontade de tocar e de estar com o outro, acredito que isso não se vá perder. Mesmo com as limitações que tivemos neste período, o ser humano é muito necessitado e acredito que, eventualmente, até comecemos a valorizar mais o toque. Eu gostaria que, de alguma forma, esta situação ajudasse as pessoas a desintoxicarem-se das redes sociais e virarem-se mais para o contacto físico e presencial.
O que acha das recomendações dadas noutros países, por exemplo usar máscara durante o ato sexual?
Obviamente que, numa relação onde um dos elementos do casal sai de casa para ir trabalhar há um risco de contágio. O facto de existir o uso das máscaras poderá de alguma forma limitar a transmissão, mas não é só isso que importa porque existem estudos que mostram que a libertação de outros fluidos também ajuda na transmissão do vírus. Portanto, seja de uma forma ou de outra, teríamos de ter sempre outras restrições além da ausência do beijo, como a troca de suor e de outros fluidos.
Que conselhos que dá para quem está solteiro e sozinho em casa?
Acho que esta situação pode ser uma oportunidade de as pessoas olharem para dentro de si, verem quais são as suas reais necessidades, aquilo que gostam e de que não gostam, aquilo que querem mudar em si e focarem-se verdadeiramente nelas próprias. Temos estado muito focados no aspeto externo, naquilo que os outros pensam de nós, no que devemos ter e comprar e temos de olhar um bocadinho mais para dentro para que sejamos capazes de entender o que nos faz realmente falta.