Manuel Carmo Gomes. “Se nos descuidamos podemos ter uma quarta vaga igual ou pior que esta”

Manuel Carmo Gomes. “Se nos descuidamos podemos ter uma quarta vaga igual ou pior que esta”


O epidemiologista assume que quis abanar a reflexão em torno da resposta à pandemia mas recusa qualquer desentendimento com o Governo. Considera qualquer exploração política “miserável” e diz que por isso informou a ministra da Saúde do que queria dizer. Teve carta branca.


Pediu para sair do painel de peritos ouvidos no Infarmed por razões profissionais, como ficou a saber-se no final da reunião?

Quero que isso fique bem claro. Faço parte da comissão técnica de vacinação e neste momento há uma série de aspetos que têm de ser acompanhados quer sobre o impacto das variantes, quer sobre a evolução da imunidade e eficácia vacinal e não tenho dado à comissão o apoio que gostaria. Tenho tido dificuldade em conciliar a comissão de vacinação com este apoio à avaliação da situação epidemiológica. Cada vez que há uma apresentação no Infarmed durante pelo menos sete dias antes não faço mais nada que não seja preparar a apresentação. No meio disto, veio a gota de água que é o início das aulas na faculdade.

Fez uma intervenção bastante crítica da atual estratégia do Governo. As divergências quanto à estratégia não pesaram na decisão de saída?

Não e antes de mais eu não saio. Falei com a senhora ministra da Saúde e coloquei-lhe o problema mal soube que as aulas iam começar. A senhora ministra foi muito aberta a uma solução que eu propus que foi outro colega meu da faculdade, nomeadamente o Carlos Antunes que trabalha na parte da modelação, ir ele ao Infarmed fazer a apresentação. Disponibilizei-me para estar presente no Infarmed e estarei se isso for solicitado para ajudar a responder às perguntas ou a dúvidas, que é o que fazemos na parte final da sessão. Se a senhora ministra entender, estarei lá. Portanto não estou nada zangado ao contrário do que já para aí vi, ou que bati com a porta. Não é verdade. Isso é uma exploração política que acho miserável.

Chegou a colocar-se não ir a esta reunião?

Não foi bem assim. A senhora ministra sabia que eu ia ter uma intervenção que ia contra o habitual. Ia desalinhar e ia pôr em causa… nem é pôr em causa, mas dizer que é preciso dar um passo atrás e repensar tudo o que aconteceu. Janeiro foi a maior crise em saúde pública em Portugal dos últimos 100 anos, qualquer que seja a métrica que usemos, seja os óbitos, o que se passa nos hospitais.

Acha que esse balanço não tem estado suficientemente presente no discurso político?

Não faço comentários sobre o discurso político. O que acho é que mesmo da parte dos epidemiologistas, perante o que aconteceu, tem de haver um passo atrás e assumir que estamos a fazer qualquer coisa que não está bem. Não é bem dar um murro da mesa, mas pedir que se faça uma pausa. E isto é uma boa altura para o fazer porque os casos estão a descer. Não é altura de deitar foguetes e bater palmas, é altura de repensar porque não queremos uma quarta vaga e uma quarta vaga está aí ao virar da esquina. Temos novas variantes e, se nós nos descuidamos, temos uma quarta vaga igual ou pior por cima desta.

Já tem havido diferentes alertas para isso, inclusive seus. Sentiu que havia o risco de se começar a festejar um novo “milagre”?

Achei que estávamos ainda na mesma rotina e que o que defendo é que é preciso uma abordagem diferente. Não é preciso inventar a roda. Na apresentação referi um movimento de 871 cientistas europeus que têm um abaixo assinado com medidas concretas.

Defendeu na reunião o reforço da testagem como arma contra o vírus.

Isso e não permitir que o número de casos diários suba muito. Se isso acontecer, será preciso tomar medidas drásticas. São preferíveis medidas drásticas de 15 dias do que aquilo que nos está acontecer agora, em que vamos levar muito mais tempo a sair deste estado.

Sentiu que havia abertura para equacionar uma estratégia diferente?

Perguntei à ministra da Saúde se ficava incomodada com o tipo de intervenção que eu ia fazer, porque a senhora ministra sabia que eu ia entrar por estas linhas. Não querer que seja explorado politicamente porque entendo que isto é um assunto de interesse nacional levou-me a colocar essa questão. Repare, o facto de eu querer dar um passo atrás e fazer com que se pense nisto, nomeadamente o Governo, não quer dizer que eu tenha alguma coisa contra o Governo e nomeadamente conta a senhora ministra, pelo contrário. Tenho muita admiração por pessoas que têm de tomar decisões numa situação tão difícil como esta. Têm a minha solidariedade, sejam elas de que cor política forem.

Às vezes passa a ideia de que só falam na reunião do Infarmed. Fala com a ministra da Saúde diariamente?

Temos um WhatsApp onde estamos constantemente a trocar informações. Nada daquilo que disse foi surpresa para a ministra da Saúde nem para a ministra da Presidência. Portanto perguntei e isto só conta pontos a favor dela: disse-me que eu devia dizer aquilo que penso. Perguntei-lhe uma segunda vez e a senhora ministra insistiu. Pensar que eu estou a bater com a porta é um disparate. É aproveitamento político, não é verdade. Estou a fazer o meu papel e não deixo de ter solidariedade com as pessoas que têm de decidir.

Não aponta falhas ao Governo para a situação em que se chegou em janeiro?

Acho que é uma falha de todos nós. Quando o Governo tomou medidas de confinamento aos fins de semana e havia horas em que os restaurantes tinham de estar fechados vimos os media a explorarem o setor mais impactado por essas medidas e a clamar que não fazia sentido. Como vemos pessoas das ciências da educação que clamam que a situação atual é uma desgraça. Todos nós quando vemos que as medidas de confinamento afetam os nossos interesses reclamamos. Como sociedade, independentemente das cores políticas, o que defendo é que temos de fazer uma reflexão do que queremos. Hoje o senhor primeiro-ministro disse (na reunião) e muito bem que os agentes sociais económicos têm de pensar o que preferem: em caso de necessidade, parar 15 dias e poder reabrir ou deixar as coisas ir como agora foi e depois são dois meses fechados.

Na sua opinião, quando deveríamos ter fechado esses 15 dias?

Em outubro, no início de outubro.

Na altura não o propuseram.

Ninguém propôs mas acho que temos de nos interrogar. Na altura alertámos que o R estava acima de 1 há vários dias.

Considera que a estratégia gradualista seguida foi insuficiente. Na altura foi um dos peritos que insistiu na estratégia de medidas nos concelhos com maior risco, que acabou por levar a medidas graduais. Não teve os resultados esperados?

Essa estratégia não foi adotada como nós a propusemos, foi a versão ultra simplificada. Propúnhamos quatro critérios e só foi usado um, que foi a incidência acumulada a 14 dias por 100 mil habitantes. Propusemos quatro mas entendeu-se que os quatro eram uma mensagem complicada de digerir a nível concelhio. Foi melhor que nada. Mas a maioria da Europa adotou medidas de confinamento muito antes de nós. A Alemanha é o paradigma mas não só. O que defendo é que enquanto sociedade temos de dar um passo atrás e ver o que se pode fazer para que isto não se repita.

Mesmo desconfinando só em março, quando haverá já mais pessoas vacinadas, podemos voltar a ter uma onda desta dimensão, com este número de mortes?

Não tenha dúvida nenhuma. Ou pior. Mostrei na reunião o que é um crescimento exponencial com um R de 1,1 ou 1,5, em que os casos sobem a pique. Está estimado que quando um país tem um R de 1,1 tendo a nova variante inglesa dominante fica com um R de 1,4. Quando temos um R de 1,4 os casos duplicam de sete em sete dias. Com um R de 1,1 temos a duplicação de 22 em 22 dias. Estivemos à volta disso, um bocadinho abaixo e um bocadinho acima, e fomos parar onde fomos. Agora imagine-se o que é a duplicação de sete em sete dias.

Mas desconfinando em março, a vacinação não poderá começar já a atenuar o impacto?

Não vai a tempo. Israel está já com mais de 50% da população vacinada e só agora é que se começa a observar o impacto positivo na redução das hospitalizações. Mas estamos a falar de 50% da população vacinada. Ainda vamos levar muito tempo a chegar a essa fasquia, pelo menos o segundo trimestre. A vacinação não vai chegar a tempo de travar uma quarta onda se nos descuidarmos. E por isso é que agora que os casos estão sob controlo é que é altura de refletir sobre isso e não repetir erros.

Na reunião não apontou uma data para o desconfinamento, falou antes de estabelecer linhas vermelhas para apertar e aliviar medidas: RT abaixo de 1,1, menos de 2000 casos por dia e positividade abaixo de 10%.

O Dr. Baltazar Nunes do INSA referiu a questão dos dois meses. Eu não falei de datas, o que defendi foi uma proposta de critérios para desconfinar ou voltar a apertar medidas. Temos de ter fasquias e só quando estivermos abaixo dessas fasquias é que devemos desconfinar e gradualmente. Propus fasquias concretas e para mim a ideia é que enquanto não estivermos com esses indicadores no verde, não se deve desconfinar. Se o conseguimos em 15 dias, três semanas ou seis semanas, não sei, o que defendo é que existam critérios. Da mesma forma que alguém quando está na bolsa estabelece fasquias e depois aconteça o que acontecer quando o preço está a um determinado nível vende, quando vem abaixo de uma determinada fasquia compra. É um sistema muito parecido: temos oscilações brutais com tendência para subir ou descer e quem trabalha com risco tem de se guiar. Com certeza que uma coisa é a bolsa e outras são medidas que têm um enorme impacto na sociedade e que fazem sempre com que as pessoas não fiquem contentes.

Considerou decisivo o fecho das escolas. Na última reunião o tema não foi consensual. Compreendeu a hesitação do Governo?

Nesta reunião já foi mais e não percebo que na altura se tenha ficado preso numa discussão académica e não percebo alguns colegas meus. Para mim é incompreensível: estamos a ver os 14 mil casos diários pela frente e estamos a discutir se as pessoas se infetam na sala de aula ou no corredor?

Um tema sobre o qual não existe até hoje evidência são os transportes públicos. Para o desconfinamento devem ser um setor a preparar?

Penso que depende muito dos transportes e das regiões, mas com certeza. Íamos precisar de dois anos para chegar a conclusões satisfatórias sobre o peso dos transportes. Não temos dois anos nem sequer um ano portanto temos de agir na incerteza. E nessas circunstâncias o que se faz é jogar pelo seguro, o princípio de precaução, que é o que acho que se devia ter feito em relação às escolas a 12 de janeiro.

Janeiro foi o mês com mais mortes no último século. Que relatos o impressionam mais da situação que se vive no país?

Sobretudo o que se vive nos hospitais, em particular nos cuidados intensivos. A sobrecarga a que SNS foi submetido e o esforço que todas as pessoas que trabalham nos hospitais, e tenho alguns na família, estão a fazer para responder. E em paralelo a quantidade de doentes não covid que estamos a deixar para trás e que vão aparecer mais tarde ou mais cedo. E a quantidade de sequelas que estes milhares e milhares de pessoas infetadas, quer tenham ido para o hospital quer não tenham ido, vão ter e nem sabemos por quanto tempo, se é meses, se é anos.

Na reunião foi apresentado um balanço de anos potencialmente perdidos associados à covid-19. Há doenças como o cancro que representam todos os anos mais anos de vida perdidos e vemos maior dificuldade na resposta. A situação pandémica a que chegámos vai agravar todos esses indicadores?

Não tenho dúvidas nenhuma sobre isso. O que os clínicos estão a dizer é que os doentes aparecem em muito pior estado. Em vez de terem ido a uma consulta de rotina, de terem ido fazer os exames da situação, estão a adiar. Umas vezes por receio, outras porque os serviços não dão resposta. Existirão mil e uma razões mas o facto é que estão a adiar e portanto isto vai-se refletir em todas as doenças. E isso é também o que mais impressiona nesta crise. Vai ter ondas e vai ter réplicas muito para lá da covid-19 e muito tempo depois da covid-19.

Há algum erro ou recomendação de que se arrependa? No Natal alertou para o elevado nível de contágio e para o risco elevado mas não recomendou que se proibissem as reuniões familiares.

Já tenho pensado nisso várias vezes e não mudei muito a opinião que tive na altura. O Natal é a principal festa para os portugueses, de longe. Se tivéssemos tido uma atitude muito mais dura em relação ao Natal tenho medo que tivéssemos um Natal clandestino. As pessoas fariam na mesma o Natal, simplesmente deslocavam-se de concelho mais cedo, escondiam mas ia haver muito Natal. Ainda hoje quando se diz que foi um erro e que não se devia ter permitido, do ponto de vista epidemiológico com certeza, mas teria tido alguma eficácia proibir o Natal? Não sei. Eu não o sugeri. O que sugeri foi que chegássemos ao Natal com um nível de incidência muito mais baixo e isso não aconteceu. As medidas que foram tomadas no fim de novembro e início de dezembro não foram suficientes. A incidência baixou e estabilizou. Evidente que quando se parte de um nível tão alto, 3000/3500 casos e há um descuido, nunca mais se apanha o vírus, que foi o que nos aconteceu.