Estados Unidos. Começou um impeachment feito a pensar nas câmaras

Estados Unidos. Começou um impeachment feito a pensar nas câmaras


Os democratas passarão a próxima semana a mostrar em detalhe o horror do assalto ao Capitólio, numa altura em que parece impossível condenar Trump, com os republicanos a defenderem-no. Ainda que o façam com pouco entusiasmo.


Sem grande esperança de condenar Donald Trump, impedindo-o de concorrer de novo a eleições, com a vasta maioria dos senadores republicanos a cerrarem fileiras em torno do ex-Presidente, os democratas preparam um julgamento talhado à medida das televisões. Ao contrário do primeiro impeachment de Trump, considerado “aborrecido” por média conservadores como a Fox News, desta vez, o que não falta é ação. A acusação quer usar o seu acesso privilegiado a imagens das forças de segurança e da imprensa para mostrar num detalhe sem precedentes o que aconteceu a 6 de janeiro na invasão do Capitólio. Na mesma câmara onde se pavonearam tantos apoiantes de Trump serão vistos vídeos tão chocantes como um polícia a gritar de dor, esmagado contra uma porta pela multidão, enquanto os democratas tentam provar que o então Presidente incitou a essa violência.

Trump é acusado de incitamento à insurreição, “a mais grave acusação alguma vez feita contra um Presidente”, lembrou Chuck Schumer esta terça-feira, no início do julgamento de impeachment, que deverá durar pelo menos uma semana. “Varrê-la para debaixo do tapete não trará unidade”, considerou o líder dos democratas no Senado, prometendo que as provas do crime “serão poderosas” e que “algumas serão novas”.

Contudo, antes de chegar ao cerne da questão seria preciso ultrapassar a primeira linha de defesa dos republicanos, que consideram inconstitucional o impeachment de um Presidente após o fim do mandato, levando-os a tentar acabar com o julgamento antes de ele começar. É um argumento que “desafia a lógica”, tornando impossível que um Presidente seja responsabilizado por atos cometidos nas últimas semanas no posto, criticou até Charles Cooper, um dos mais proeminentes juristas conservadores, antigo assessor do senador Ted Cruz, num artigo no Wall Street Journal.

Ainda assim, não foi a lógica que derrotou os republicanos, mas sim o peso da maioria democrata no Senado. A acusação conseguiu convencer cinco senadores republicanos – mas o resultado da votação, no final do mês passado, de 55 contra 45, pressagia que será impossível obter a maioria de dois terços necessária para a condenação de Trump.

O julgamento surge num momento delicado tanto para democratas como para republicanos. Por um lado, a administração de Joe Biden tenta que o Congresso aprove um pacote de 1,9 biliões de dólares, equivalente a 1,57 biliões de euros, para enfrentar a crise causada pela pandemia, e teme-se que o impeachment atrase o processo. Por outro, os republicanos estão divididos como nunca, com a direção a tentar conciliar-se com as franjas mais radicais do partido, consciente de que precisa de se reinventar após a derrota eleitoral de novembro, mas também de que Trump continua a ser a figura mais popular no partido.

Ao contrário do primeiro impeachment, quando Trump foi acusado de pedir à Ucrânia que interferisse nas eleições, desta vez não se encontram grandes defesas do Presidente entre dirigentes republicanos. A vasta maioria abandonou as suas alegações de fraude eleitoral – aquilo que motivou o ataque ao Capitólio – e defende Trump sobretudo com argumentos processuais ou com apelos à unidade do país. Alguns até defendem o seu voto contra alegando que o impeachment faria do ex-Presidente “um mártir”, nas palavras de Marco Rubio. “Não que o Presidente não tenha alguma responsabilidade” pela invasão ao Capitólio, admitiu o senador republicano à NBC.

Mesmo assim, não há dúvida de que o grande objetivo dos senadores democratas, mais que apelar aos seus colegas republicanos, será influenciar a opinião pública. Cinquenta e seis por cento dos eleitores são favoráveis ao impeachment de Trump, segundo uma sondagem recente da Ipsos e da ABC. Mas, como se tornou hábito nos últimos anos, os americanos mostram-se polarizado, em função de partidos, sem sinais de abertura a mudanças de posição – mais de nove em cada dez democratas são favoráveis ao impeachment e oito em cada dez republicanos são contra.

 

Violência

Nos próximos dias, senadores serão expostos a horas e horas de imagens do brutal ataque ao Capitólio, onde morreram cinco pessoas e centenas de agentes ficaram feridos, enquanto lá fora ainda se notam sinais do sucedido – o edifício continua cercado por uma vedação com mais de dois metros de altura, com a Guarda Nacional a reforçar a polícia do Capitólio, para dar mais músculo à segurança. Todos os dias emergem mais detalhes quanto aos responsáveis pelo impensável, mas as respostas nem sempre são as esperadas.

Imediatamente após o ataque, a suspeita era de que as muitas milícias e grupos extremistas armados nos EUA tivessem tido um papel crucial. De facto, há sinais de que os Proud Boys – um grupo orgulhosamente misógino e chauvinista, pró-ocidental, associado a ataques a antifascistas – e os Oath Keepers, a maior milícia do país, tenham funcionado como pontas-de-lança da invasão. Contudo, até agora, entre mais de 200 detidos, apenas uma dezena tinha ligações a estes grupos. Os restantes eram apoiantes comuns de Trump, do tipo que costumamos ver em comícios.

“Aquilo com que estamos a lidar não é meramente uma mistura de organizações de direita, mas um movimento de massas mais amplo, com violência no seu âmago”, avisou Robert Pape, diretor do Chicago Project on Security & Threats, à BBC. E é um movimento que poderemos ver ressurgir nas eleições de 2024, caso Trump não seja condenado no julgamento desta semana. “A mensagem enviada por uma absolvição pode ser pior que nem haver julgamento”, lê-se na New Yorker. “Teremos o pior dos dois mundos: um impeachment divisivo que inflama metade do país e que não traz nenhuma vindicação à outra metade”.