Marilyn Manson. A queda do anjo devasso do rock

Marilyn Manson. A queda do anjo devasso do rock


Uma semana depois de Evan Rachel Wood ter acusado Manson de absusos sexuais, psicológicos e de diferentes formas de coacção, um dos grandes ícones do mal na cultura popular norte-americana foi abandonado por todos, ficando reduzido a um maligno pária.


É raro encontrar o mal puro, absoluto e gratuito, como sabemos, e ainda mais na cultura popular, mas para muitos Marilyn Manson é das figuras que melhor soube envergar publicamente essa forma de sedução diabólica. E se em tempos o músico conseguiu desmontar uma campanha que quis fazer dele o bode expiatório para o infame massacre de Columbine, desta vez tem contra si um processo a que poucos mortais escapariam ilesos. Foi franqueada a porta da sua intimidade e, agora, todos aqueles que exortam a um clima de vigilância permanente, isto é, a desconfiar sem tréguas, terão aqui um festim para a sua devastadora concupiscência, a qual se disfarça envergando as vestes da justiça e da promoção da decência. Assim, na semana passada, a actriz Evan Rachel Wood confirmou que o homem que havia descrito a uma subcomissão judiciária do Congresso norte-americano, num testemunho com vista a promover uma lei de defesa para as vítimas de abusos sexuais, é Brian Warner, o nome civil de Manson. Os dois envolveram-se em 2007, tinha ela então 19 anos e ele 38. Na altura em que ela deu o seu testemunho, não demorou para que as suspeitas cercassem o músico, tendo os dois chegado a estar noivos por um breve período, em 2010. Enquanto o romance durou, não se abstiveram de deixar que este espevitasse a imaginação do público, indo ao ponto de expor a relação no videoclipe de Heart-Shaped Glasses, em cenas de cariz sexual bastante explícitas e que remetem para a obra-prima de Vladimir Nabokov, Lolita. Wood surgia, assim, no papel da ninfeta, com Manson a aproveitar para extrair todo o potencial de controvérsia desse envolvimento.

Em 2019, o testemunho de Wood teve grande impacto, não só por alimentar a obsessão do público com os detalhes mais sórdidos da vida das celebridades, mas porque ela se expunha com a maior das vulnerabilidades, relatando como tinha sido atraída para um enredo que misturava abusos emocionais e físicos, e que chegou ao ponto da violação. “Começou a aliciar-me quando eu era adolescente e abusou de mim durante anos. Fui alvo de lavagem cerebral e manipulada até à submissão”, escreveu numa publicação nas redes sociais. Não foi preciso esperar muito para que as suas declarações fossem secundadas por outras quatro mulheres que tornaram públicas queixas semelhantes pela mesma via. Nas horas e dias seguintes, o cerco apertava-se de tal modo que Manson não tinha já como escapar. E, reagindo àqueles que ensaiaram uma defesa do músico pondo em causa as vítimas, Evan Rachel Wood foi incisiva: “Não perguntem porque é que as vítimas demoram tanto tempo para ganhar coragem e falar. Perguntem antes que sistemas estão montados para garantir que estas continuam caladas.”

A actriz tem continuado a intervir diariamente, tantas vezes através de recortes dos comentários de outros, nomeadamente dando eco à opinião de Richard Shotwell, expressa na NBC News. “Embora Wood mal tivesse abandonado a infância quando conheceu Manson, as pessoas supõem que sabia no que se estava a meter. Esta reacção de ‘O que é que estavas à espera?’ é uma das muitas formas de humilhar as mulheres e garantir que continuam prisioneiras de situações abusivas, tornando tão mais difícil falarem das suas experiências se as abandonarem. Porque, mesmo que um homem use maquilhagem de forma ridícula e exponha uma persona agressiva em palco, as mulheres e as miúdas mantêm, em absoluto, o direito ao respeito e à protecção.”

Outra coisa que Wood veio revelar nos dias que se seguiram foi a forma como se viu alvo de chantagem por parte da actual mulher de Manson, Lindsay Usich, tendo esta ameaçado divulgar fotografias dela tiradas num concerto de Halloween dado pelo músico, onde a actriz surge disfarçada de Adolf Hitler e fortemente embriagada. Wood revelou outros aspectos do envolvimento com Manson, que frequentemente a insultava chamando-a de judia, de forma depreciativa. "Ele desenhava suásticas na minha mesa de cabeceira quando se zangava comigo. E usava a palavra começada por ‘n’ vezes sem conta”, revelou Wood na sua conta de Instagram.

Entretanto, o manager de Manson, Tony Ciulla, que o representou nos últimos 25 anos, cortou relações com ele, tendo sido uma das últimas defecções. A editora a que estava ligado desde 2015, a Loma Vista Recordings, não precisou de mais do que umas poucas horas depois de Wood ter tornado públicas as suas acusações para o deixar. Logo a seguir foi a vez da agência de espectáculos que promovia os seus concertos.

Manson sempre negou que fosse ele o parceiro que tinha abusado de Evan Rachel Wood, e, há alguns meses, depois de ter abandonado uma entrevista em que foi questionado sobre estas alegações, reagiu por comunicado, afirmando que, na altura em que as agressões terão acontecido, Wood “namorou com várias pessoas”. “Basta uma rápida pesquisa na internet para vos mostrar uma série de nomes [de namorados] que ninguém referiu”. Assim, Manson escudou-se das suspeitas que recaíam sobre ele, as quais foram feitas por “críticos anónimos”, relevando declarações suas dadas, em 2009, numa entrevista à Spin, nas quais confessava que, num período em que esteve separado da actriz, houve um dia em que lhe ligou 158 vezes e que, então, uma das suas fantasias recorrentes era usar uma marreta contra ela, esmagando-lhe o crânio.

Marilyn Manson tornou-se uma figura central da contracultura na década de 90, tendo sido descoberto pelo líder e vocalista da banda Nine Inch Nails, que o levou para fazer a abertura de uma das suas tournées pelo mundo. Até no nome, que combinava o apelo sexual e a morte trágica de Marilyn Monroe e o messianismo grotesco de Charles Manson, o músico cunhou um imaginário que roçava o patético mas que era muitíssimo eficaz na hora de produzir choque e perturbação, e ao longo dos anos regozijou-se e alimentou rumores horrendos que, como moscas frenéticas, urdiam à sua volta uma ruidosa treva, servindo os interesses de promoção dos álbuns, dos concertos e do merchandising que lhe estava associado. Os seus concertos eram óperas entre a sátira e o satanismo, numa orgia de símbolos própria de um extenuante filme de terror, em que a subtileza era sempre a primeira vítima. Mas Manson era só uma iteração apoteótica para leitores incapazes de ler outra coisa que não o mal enquanto pornografia barata e embaraçosa. Atrás dele, tinha uma linhagem bem mais sofisticada, na qual se encontram artistas bem mais competentes na exploração da liturgia do mal. Figuras como GG Allin, Ozzy Osbourne, Alice Cooper, Gwar, Insane Clown Posse e o próprio Trent Raznor, que entretanto também se apressou a lembrar que há 25 anos que cortou laços com Manson, depois de este ter feito declarações sobre um alegado estupro cometido pelos dois, algo que Reznor garante ser apenas outra dessas fantasias tenebrosas que Manson sempre alimentou.

“Um beijo é o início do canibalismo”, escreveu Georges Bataille, autor que tinha um singular entendimento do Mal, esse que se escreve com maiúscula e que, na cultura popular exerce quase sempre uma sedução aparvalhada, mas que tem, pelo menos, a inteligência de resultar como uma espécie de negativo das noções gerais que respeitam à virtude e ao bem. E se os homens e as sociedades avançam por negações sucessivas das suas condições actuais e uma busca incansável de algo mais, uma outra coisa para além do já visto, desse confronto vai resultando um retrato da falta que nos atinge, e que em grande medida nos define. Assim, o mal pode ser menos um fim e mais uma moral extrema, uma revolução permanente, nessa busca que é feita por meio da negação da sociedade.

Esta negação passa muitas vezes por uma estima odiosa, por uma exigência que se estende ao amor, e que leva alguém a dizer ao outro: “Não quero o teu amor a menos que saibas o quão repulsivo eu sou, e que assim mesmo me ames.” Bataille entendia também que a sedução extrema divide fronteiras com o horror. Hoje, a nossa sociedade rejeita a tal ponto o mal que se recusa a entendê-lo senão como uma expressão teatral, estética, ruidosa e banal, mesmo se grotesca. Recusamo-nos a ir além dessa encenação que todos os anos produz pastelões em technicolor, que parece introduzir um certo risco pela forma como atinge os valores sociais, mas que, raramente é sincera, pois falta-lhe esse lado verdadeiramente tenebroso que faz do mal um mistério tão profundo, tão negro, quando atinge esses tons dos quais não há volta, quando se mostra um absoluto desinteressado, um fim em si mesmo.

De resto, como Claudio Magris esclarece, a ostentadora profanação hoje tão cara a tantas expressões artísticas, demonstra muitas vezes ser bastante bem-intencionada, da mesma maneira que, em geral, são as pessoas mais formais aquelas que revelam um certo orgulho por terem tido más notas a comportamento. Assim, a maioria dos artistas que se põe do lado do mal, celebram-no como desafios face à repressão, são exuberantes nas suas posturas rebeldes frente ao autoritarismo dogmático, vendo-se como apólogos da revolta dos marginais frente aos tutores e às hierarquias sociais. Tudo isto está muito bem, diz-nos Magris, mas não passa de uma outra profissão de moralidade e de bons sentimentos. E são frequentemente estes artistas os primeiros a porem-se na fila para defender genericamente as liberdades de todo o tipo e as vítimas de todas as formas de opressão, ao passo que os inquisidores e os tiranos são aqueles que realmente representam o mal e que têm, portanto, o direito de se ver revestidos da sua diabólica sedução.

E em que medida é que isto vem a propósito agora que falamos de Marilyn Manson e dos alegados abusos que cometeu contra diversas parceiras? Porque uma sincera investigação do mal não se pode ficar simplesmente por esses aspectos superficiais e decorativos, essa perversão que provoca choque e escândalo mas que se fica pelo campo de visão, pelas manifestações que mais se desfloram perante nós, mas precisa de entender como este se converte a esse sopro frio do nada que às vezes corre pelo mundo, um vazio que se faz sentir no próprio regime da quotidianidade mais habitual e até na mais amada.

A fragilidade é uma espécie de fio com que nos cosemos e que também nos liga. Ora, para quem estuda o amor nessa condição em que este é definidor também do mal, sabe que este implica não só a capacidade de fixar o nada, mas também um desejo de se abandonar, de ser destruído, atingir esse fundo tão privado, distante, essa tão apaixonada e turbulenta verdade sobre nós próprios. Como entende Bataille, o homem é sobretudo construído por aquilo que lhe falta. Há uma simetria, por isso, entre o que se é e o que se não é, o que se não tem mas cada um sente que deveria ter, e também entre aquilo que não se sabe e o que acreditamos saber sobre nós próprios e sobre o mundo. A este respeito, só agora Marilyn Manson começa a tornar-se uma figura verdadeiramente interessante para um estudo mais profundo sobre a forma como o mal opera.

Outra coisa que Bataille disse é que o acto sexual é no tempo aquilo que um tigre é no espaço. Uma mente seriamente devotada a atingir a harmonia na sua aniquilação irá arrastar e seduzir aqueles que, talvez por imaturidade, sentem o apelo do maior dos perigos, entram num flirt com a morte, acabando por sair do outro lado, se saírem, absolutamente degradados.

É claro que uma sociedade que se entregou a uma deriva de um puritanismo que é, em si mesmo, uma das mais perfeitas encarnações do mal, não admitirá esse pacto que expõe a fragilidade daquele que entra numa relação deixando-se subjugar, sendo guiado a um inferno que, muitas vezes, só anos mais tarde irá consumir inteiramente a sua vítima.

Tudo o que Manson disse em sua defesa coube numa frase: “As minhas relações íntimas foram sempre inteiramente consensuais e mantidas com parceiros que viam as coisas do mesmo modo que eu.”

Mas, hoje, o arrependimento dá à sociedade poderes de punição retroactivos, e, mesmo uma figura que sempre buscou enquadrar-se nas representações do mal, não está defendida de um bem tirânico, que se serve de todas as formas de subjectivismo para nos dizer que, mesmo depois da maioridade, em certas condições, todos somos crianças, e não passamos, por isso, de potenciais vítimas nas mãos uns dos outros. Nem o consentimento pode defender ninguém. Simplesmente, deixou de haver escolha porque aquilo que a sociedade entende ser o nosso bem é a única escolha possível, e quem se desvia desse plano, enfrenta a sua fúria.

Na condenação de Marilyn Manson não faltaram os testemunhos de tantos que admitem ter sentido o apelo e o fascínio das suas bizarras encenações quando eram adolescentes, mas que agora, repensando bem o espectáculo a que foram sujeitos, conseguem traçar uma linha entre aquilo que eram as poses de um provocador, um elemento transgressivo no campo do rock and roll, uma estética que sempre rejubilou com uma certa libertinagem e deboche carnal e uma atitude claramente predatória. Lendo agora as letras mais pequenas, as cláusulas mais sujeitas a interpretação, não falta quem entenda que havia um conteúdo de violência sexual que coloca Manson à parte, não sendo, à luz dos padrões actuais, aceitável.

A perspectiva feminina, essa que, até aqui, supostamente fora suprimida, vem agora permitir um certo efeito revisionista, abrindo margem, hoje, para se dar ordem de exílio contra aqueles que ao longo de décadas viveram de acordo com as liberdades de um tempo mais adulto, e que aceitava uma dose de risco da parte das expressões artísticas e das manifestações culturais muito maior do que este. Mas este processo de revisão de licenças, com margem para formas de punição retroactiva tem levado, como nota Amanda Petrusich num artigo publicado na “The New Yorker”, a que, de cada vez que um suposto iconoclasta é acusado de abusos, as notícias atinjam rudemente os fãs que procuraram no seu ídolo outras referências que os ajudassem a aceitarem-se a si mesmos. “Pode soar contraintuitivo, tendo em conta a calculada fealdade da sua persona, mas o comportamento descarado e extremo de Manson fez dele, para muitos, um espaço seguro”, escreve Petrusich. 

Embora reconheça o elan desta figura diabólica, e como, por explorar e encarnar as depravações que a sociedade tanto tem feito por expurgar, foi uma figura radicalmente libertária, logo a seguir Petrusich passa a elencar e exaltar outros artistas com uma mensagem carregada de “boa-fé”, e que promovem uma outra via, bastante mais suave, para a insubordinação.

Curiosamente, o que esta autora e outros parecem esquecer é que esta sociedade, tão intolerante para com o mal, o é apenas numa acepção estética, já que a nível de conteúdo promove formas mais perniciosas da degradação dos indivíduos, nomeadamente promovendo uma cultura do luxo e da ostentação, enquanto carrega de culpa e facilita a exploração dos mais frágeis do ponto de vista socioecónomico. Talvez nunca tenha havido uma sociedade mais cruel que esta, e, portanto, mais necessitada de uma cruzada moral que a invista de uma ideia de virtude. Mas Petrusich garante-nos que os artistas que estão com a lógica de sanitização moral da época, provam que a singularidade e a desobediência já não têm de estar ligadas a uma ideia de destruição.

Em tempos, um poeta do final do século XIX, que ofereceu aos vindouros um verdadeiro confronto com os limites do seu tempo e da sua arte, abrindo caminho uma tensão fundamental e que serviria de fôlego às gerações seguintes, afirmou: “A destruição foi a minha Beatriz.” Esta atitude, hoje, só é apreciada como um dito espirituoso. De resto, quase tudo o que apreciamos nas terríveis aberturas que a arte produziu há um século, são levadas na conta de airosas hipérboles.

O conteúdo herético da arte perdeu-se. Aos 52 anos, Manson prepara-se para ser julgado por tudo aquilo que fez na sua intimidade, pela forma como deixou o mal soprar o seu gélido hálito no seu quotidiano mais privado.

E enquanto isso, Petrusich como tantos outros, juntam-se nesta farra sacrificial como figuras para-legais e investigadores da equipa de acusação no processo contra Manson, indo buscar declarações que este fez e que indiciam uma atitude perversa face às relações sexuais. Em 2015, o músico confessou à revista Dazed que a visão do seu pai sobre as mulheres era de que se queriam arranjar um homem tinham de abrir as pernas, e se o queriam segurar era melhor que “fechassem a puta da matraca”.

“É nojento”, admitia Manson, “mas foi assim que fui criado e educado – sob a presunção de que se queres segurar o teu homem é melhor que te cales, e não andes a espalhar aos sete ventos aquilo que fazes. Se queres arranjar um homem mostra-lhe as tuas partes capazes de fechar negócio. Não estou com isto a dizer que é esta a minha filosofia, apenas estou a contar o que me foi ensinado pelo meu pai.”

Serve como uma espécie de confissão de culpa, e Petrusich agarra-se-lhe de modo triunfal, concluindo que leva muito tempo para que estas doutrinas e mitologias se desintegrem, e que é isso que nos exige o nosso tempo, pois estamos no centro de uma viragem geracional.

É bastante perigosa esta crença de boa parte das figuras que assumem, hoje, preponderância nos meios culturais, a de que é possível uma revolução que componha tudo, a de que, por fim, está ao nosso alcance uma virtude absoluta, como se o bem não se definisse precisamente pelaa suspensão das leis absolutas, dos imperativos morais, como se o seu mistério não fosse tão intrigante por exigir sempre um olhar capaz de saltar por cima das aparências, uma atenção profunda, mais difícil e aventurosa, mais complexa e despreconceituosa, sem pressa em condenar. Afinal, o que nos exige o bem? “Exige coragem, fantasia e originalidade”, garante Claudio Magris.

Por outro lado, esta nossa época parece regozijar-se com este poder que recai sobre qualquer um de se tornar assistente num processo movido contra uma figura pública. Esta geração que exprime sempre os seus bons sentimentos, que puxa do cartão de ofendido em todas as ocasiões, gosta de falar numa “fadiga de abusos”, mas na verdade parece atraída por eles, e, como nos diz aquele pensador italiano, “alegrar-se com um crime às vezes pode ser ainda pior, mais cobarde e mais gratuito do que cometê-lo”.