Tinha pensado escrever hoje sobre a raiva e o ódio que grassam descontrolados nos comentários que se leem nas redes sociais e nas críticas trauliteiras e militantes que alguns leitores fazem, quotidianamente, aos artigos dos jornais.
Fazem-no com uma raiva que jamais se viu exposta, de forma pública, entre nós.
Muito desse discurso é inspirado, é certo, nas palavras, mesmo assim sempre mais medidas, de alguns tribunos recentes.
O outro, o discurso das redes e o dos comentários de rodapé aos artigos jornalísticos, é, porém, mais cobarde.
Quem o faz exibe, geralmente, em público, o comportamento submisso do cordeiro, só se atrevendo a vociferar, a coberto do anonimato com que se exprime livremente nas redes sociais ou quando insere, nos comentários que faz, calúnias soezes contra os autores dos textos assinados na imprensa.
Tais vociferadores são militantes do ódio, mas, sobretudo, são vidas frustradas que viram falidos os sonhos de riqueza ou de protagonismo que alimentaram e que, algum dia, mesmo que por pouco tempo, ensaiaram viver.
O problema deles é, sobretudo, o da não subida – ou da descida – de estatuto, pois a cultura a que puderam aceder, mas que não souberam aproveitar plenamente, não lhes permite olhar e compreender a realidade, impedindo-os, assim, de superar as desilusões próprias e as dos que os rodeiam e martirizam por isso.
Mas, desencantado ou não, tal discurso de ódio contumaz infecta tanto como o vírus e, se dele se não cuidar, pode mesmo alterar o quadro do comportamento cívico democrático vivido por todos – políticos e cidadãos – desde o 25 de Abril.
Um artigo de Susana Peralta, publicado num outro jornal, veio, porém, desfocar a minha atenção e virá-la para um assunto mais sério e bem mais real, mesmo que, na verdade, não tão desligado do outro, como possa parecer.
Diz ela, a propósito das condições para o ensino à distância: «…em Portugal mais de um quarto das crianças vive em casas com problemas de infiltração e humidade. Quase 13% vivem em casas sem aquecimento adequado, 9% não têm iluminação suficiente, 15,5% vivem em casas sobrelotadas. Há 6,5% das crianças que vivem em bairros com crime, violência ou vandalismo. A parte da refeição quente é assim: 9% das crianças vivem em famílias sem capacidade para cozinhar refeições completas e saudáveis. Em 2018, ainda havia 3,1% das crianças que sentiram fome, mas não puderam satisfazê-la por falta de dinheiro. Há umas regiões piores que outras. No Algarve, 2,5% das crianças não têm duche em casa. Nos Açores, 12,4% das crianças sentiram fome.»
Esta situação não é nova e, mesmo que não seja pior do que antes sucedia, é grave para o que se espera de um regime democrático.
Mais grave, muito mais grave, do que a incapacidade do Estado de fornecer em tempo – como lhe competia e podia fazer – os computadores necessários ao ensino à distância.
É, porém, este o quadro avassalador, triste e realístico da nossa condição nacional e que muitos dos odientos vociferadores – frustrados apenas com pequenas derrotas pessoais – não comentam.
Ele não lhes diz diretamente respeito e, na verdade, nem os choca por aí além: pobres sempre houve, afinal.
Contudo, é nesta realidade que Susana Peralta descreve, que deveria residir a nossa frustração coletiva maior e a inevitável e necessária revolta moral e política.
É esse quadro de vida miserável de muitos portugueses que deve, sim, nortear a atenção de todos os responsáveis políticos democráticos, quaisquer que sejam os seus ideais e as suas opções partidárias.
É a ele, e menos à intriga politiqueira que apenas alimenta o ódio dos egoístas, que a comunicação social devia revelar e dar importância.
É que, enquanto o retrato de uma parte do país for o que Susana Peralta fez – e ela fotografou-o limitadamente e apenas a partir do universo das crianças portuguesas – haverá sempre condições para um rancor fundo contra a democracia.
É nesse retrato da desigualdade e da pobreza estigmatizante – e não nos estigmas ideológicos, morais, raciais e sexuais – que se deve, também, centrar a ação política democrática, a denúncia mediática e o discurso edificante de mudança de que o nosso país urgentemente necessita.
Resolver – e depressa – essa situação de miséria desastrosa é a única forma de todos nós portugueses nos podermos olhar de frente, sem vergonha, sem preconceitos, sem ódios inventados e mesquinhos ou malquerenças artificiais.