Sempre vivemos no tempo do incerto, mas sempre tivemos a possibilidade de pensar e planear a existência de cenários e de respostas para as eventualidades. O problema é que o nosso ADN individual e coletivo tem uma forte propensão para o imediato e para a fé infinita nas potencialidades do improviso. O drama é que quando não está pensado e não existem rotinas para que quem atua individualmente atue em conjunto, estamos sempre no domínio da incerteza de que as coisas vão colar.
É assim que os computadores destinados ao ensino à distância dos mais carenciados, que deveriam ser entregues no início do ano letivo, conforme promessa de António Costa aquando do primeiro confinamento, tiveram os procedimentos de aquisição iniciados depois das aulas começarem.
É assim que temos assistido à falta de planeamento da resposta para a terceira vaga da pandemia e a emergência de chico-espertices na concretização do plano de vacinação em função da cadência das vacinas entregues pelas farmacêuticas.
Termos um Governo que não pensa e age sem que o chefe tenha de anuir a tudo, projeta-nos para uma realidade de impossibilidade humana de alcance, para uma baixa execução e para a incapacidade de pensar mais além, o que num momento em que estamos a responder à pandemia e a presidir à União Europeia se constitui numa outra tragédia de incerteza face ao futuro. Somos o terceiro país da União que menos gasta na resposta à pandemia, mas mesmo que tivéssemos recursos ou quando tivermos o dinheiro da Bazuca, o traço de incapacidade para planear e executar a tempo vai voltar a ter expressão relevante. É defeito e feitio de quem se concentra apenas na gestão do turno, das conveniências e da sustentação do sistema vigente mesclado com a sobrevivência política individual.
Portugal que tanto apostou na imagem exterior, tem por estes dias, a realidade trágica das insuficiências do serviço de saúde, dos contágios, dos internamentos e das mortes, coroadas pelo pedido de ajuda internacional e pela profusão de notícias negativas sobre o país nos media internacionais. Não foi preciso ninguém fazer campanhas negativas contra a governação e o país no exterior, a realidade tratou de se projetar.
Portugal que tanto apostou ao longo de décadas na desmilitarização das dinâmicas da sociedade, tem por estes dias uma retoma militar da condução dos destinos em matérias como a proteção civil, os serviços de estrangeiros e fronteiras e o plano de vacinação, pela mão do governo de António Costa. Se fosse um governo de direita a entrar nesta deriva de certificação das incapacidades civis, havia um levantamento à esquerda pela militarização da sociedade.
Portugal é assim, também porque as lideranças são assim, um reflexo dos portugueses. É por isso, digamos, engraçado assistir à emergência de personalidades e personagens a expressarem desilusão com a governação de António Costa quando foram protagonistas do desgaste necessário à sua ascensão ao poder interno no Partido Socialista, causa maior das retomas de protagonistas, metodologias de exercício político e ausência de valores vigentes. Apesar da manutenção de muita proteção mediática perante o exercício, de profusa memória curta e de cultivada prole de suporte à manutenção do poder, a sementeira habilidosa é isto, imediatismo, sorte, pragmatismo e inconsequência. Ninguém que sustentou o protagonista maior tem legitimidade para o abandonar porque o acervo patrimonial de intervenção política e cívica que então detinha já tinha identificado todos os traços atuais. E, no entanto, é vê-los demarcarem-se alegremente, também como Manuel Alegre. É como se a conveniência pessoal, política ou de negócio fossem as mães de todos os valores e princípios, mas não o são.
Estamos num momento em que a tragédia se mistura com a esperança na imunidade conferida pelas vacinas, cuja entrega e administração geral ainda vai demorar. Uma vez mais o Governo é incapaz de gerir a incerteza e os estados de alma individuais e comunitários no contexto da pandemia, como já tinha acontecido antes. Lembrem-se do que aconteceu com a ideia da solução governativa anterior de que havia tudo para todos.
Estamos confinados e assim deveremos continuar até que o novo pico de contágio esteja controlado. Então no atual quadro psicológico geral de cansaço com as limitações não era de se colocar cada cidadão e a comunidade sintonizado com a obtenção de resultados na contenção dos contágios e nos ganhos de liberdade gradual. Não seria benéfico mentalmente confinar a incerteza, dizendo, por exemplo, se conseguirmos baixar os novos casos para 2.500/dia até à data x, podemos reabrir este serviço ou permitir aquela atividade. E depois continuar a estabelecer metas e ganhos periódicos em função dos comportamentos individuais e comunitários e dos resultados obtidos.
Mas não, prefere-se manter todas as incertezas no horizonte, sem associar os comportamentos individuais e comunitários aos resultados e à reconquista de consequentes ganhos. É poucochinho, mas expectável. Só se desilude quem quer ou mantém o compromisso com as habilidades. Não fazem bem o que é controlável, só ampliam as incertezas.
NOTAS FINAIS
VIRA O DISCO E TOCA O MESMO. O parlamentarismo sempre teve muitos adversários em Portugal, mas nada como a singularidade de termos o Presidente do Parlamento a atacar os deputados de populismo por não quererem ser vacinados já, quando a esmagadora maioria do Povo ainda não o foi. Um pouco mais de território e contacto da população, a coisa resolvia-se.
DISCO RISCADO. A queixa de Ana Gomes contra o Chega é um disparate monumental. Ainda não perceberam que o foco deve estar na resposta às causas. E quanto a isso, 15 dias depois, nada.
GIRA-DISCOS. É preciso responder ao presente, além da pandemia (fome, sem-abrigo, isolamento, desequilíbrios mentais), e preparar com competência o pós-pandemia, da Bazuca ao associativismo, da cultura à formação desportiva, da dinamização dos territórios do Interior aos equilíbrios urbanos.
Escreve à segunda-feira