Sapatos para que vos quero…


A marca dos nossos passos pode contar histórias, mas também guarda vestígios dos lugares por onde passámos.


Quando uma criança ainda bebé calça os sapatos dos pais, proporciona-lhes um momento maravilhoso. Foi exatamente a um momento destes que assisti de manhã cedo, quando a minha filha mais nova, muito devagarinho, lá se meteu dentro dos meus sapatos para fazer a sua primeira grande caminhada…

Engana-se aquele que julga que esta atitude inocente é aleatória. Praticamente todas as crianças a têm!

Se compreendermos que, quando leva um objeto à boca, uma criança está a demonstrar a sua vontade de conhecer o que a rodeia, também podemos entender que o gesto de usar os sapatos de um adulto revela um desejo maior.

O fascínio pelos sapatos pode ter origem no facto de se tratar aqui de um dos adereços que nós, adultos, usamos e que dela, criança, estão próximos. Os bebés são baixinhos, gatinham, agarram-se aos nossos pés… E a relação que têm com o nosso calçado é muito diferente da relação que com ele temos em adultos. Aliás, olhamo-lo como sendo um adereço fundamental que está muito longe… talvez no lugar mais distante do nosso corpo.

A marca dos nossos passos pode contar histórias – recorde-se a pegada lunar –, mas também guarda vestígios dos lugares por onde passámos. “Diz-me o que trazes nas solas dos sapatos, dir-te-ei por onde andaste”. Esta é uma verdade, pelo menos, até certo ponto, tornando-se, por isso, oportuna a reflexão, bem como a pergunta: “Por onde têm andado os teus pés? Que chão tens pisado?”

Não deixa de ser curiosa a quantidade de solas que gastamos ao caminhar ao longo da vida. Caminhamos para o trabalho e para casa, passeamos e fazemos desporto, vamos à praia ou ao cinema e, na maioria das vezes, escolhemos cada par de sapatos conforme cada ocasião. Há sapatos para todos os gostos, são de várias formas e feitios, porém, apesar de mudarmos permanentemente de calçado, os nossos pés são os mesmos. Pés pequenos que cresceram, que ganharam forma e que se deformaram.

Se há quem goste de andar descalço para sentir o chão – a terra, a areia, a madeira, o mármore ou a tijoleira –, também há quem prefira ter os pés sempre resguardados.

Mas porque haveria eu de falar de pés? Porque são eles que nos permitem seguir em frente, andando por todo o tipo de caminhos – os que outros abriram e os que nós traçamos. E porque o corpo vai perdendo flexibilidade, também a possibilidade de chegarmos aos nossos pés se vai perdendo e isso suscita em mim o desejo de que a flexibilidade que o corpo perde seja proporcional à flexibilidade que se vai ganhando na cabeça. Aliás, a própria cabeça que se encontra na extremidade oposta aos pés.

Falamos tanto do que está à esquerda e à direita e tão pouco do que está em cima e do que está em baixo.

Talvez passe pela cabeça dos nossos pequeninos que, quando calçam os nossos sapatos, percorrem o mesmo caminho que nós, embora não sabendo por onde andamos depois de calçarmos os nossos sapatos. Sabem que quando o fazemos desaparecemos de casa, viajamos para outros lugares. Será exatamente isto que eles julgam? Que os nossos sapatos nos levam para outros mundos?…

Que os sapatos, mesmo limpos e brilhantes, sejam sempre capazes de percorrer todos os caminhos da vida, os mesmos caminhos que queremos que sejam percorridos pelos nossos filhos. Quando morrer, quero ir descalço…

 

Professor e investigador