José António Almeida. Trazer o mundo para o quarto

José António Almeida. Trazer o mundo para o quarto


Ao mesmo tempo cândido e exemplarmente combativo, ao longo de mais de três décadas José António Almeida foi publicando uma obra poética de uma afinação superior, que se nutre na tradição para orquestrar as partes de um murmúrio prenhe de tenso lirismo e que deixa claro como a experiência da homossexualidade foi um dos aspectos…


Na poesia portuguesa do último século, os assuntos homoeróticos e as declarações sobre a homossexualidade assumem uma preponderância de tal modo profunda que se tornam um eixo inescapável neste jogo de invenção que alarga o campo da consciência. E qualquer lista deixaria evidente como ombrearam em número estes, e como foram, possivelmente, mais aguerridos na sua pluralidade exultante, na coragem moral e no génio com que souberam inscrever a sua herética floração, como nuvens que, à sua passagem, fossem sombreando e até encapelando a língua e os seus usos, sendo responsáveis pela radicalidade de um corte fantasioso com os enquadramentos culturais e o código moral que tenta esmagar aquele outro, que vinga a partir da interioridade. Assim, contra as constantes ameaças de discriminação, mesmo as novas, às vezes dissimuladas ou mais subtis, uma parte considerável da poesia do século XX impõe-se num exuberante e até bárbaro desafio, debelando essas formas de pestilência que cada tempo sabe reinventar. São, por isso, centrais a uma visão panorâmica desta arte as obras de tantos poetas que fizeram valer essa combatividade de um “mesmo-sexo” face à tentação da parte de certos sectores de chamarem a natureza para o seu lado, procurando extrair dela argumentos de alcance moral, como quando estão em causa certos actos que desaprovam ou repudiam e para os quais exigem punição,  considerando-os contranatura. Mas como nos lembra John Stuart Mill, no ensaio “Nature”, a natureza não é só amoral, mas cegamente cruel, ou apenas indiferente. “A natureza empala os homens, quebra-os na roda de despedaçamento, lança-os para que sejam devorados por bestas selvagens, queima-os até à morte… Tudo isto, a natureza consegue fazê-lo com a mais desdenhosa displicência tanto pela piedade como pela justiça, lançando as suas pragas sobre os melhores e os mais nobres e deixando que triunfem os piores e mais crapulosos.”

Seria fastidioso elaborar um elenco de todos ou sequer dos mais significativos poetas que, afirmando a sedução homoerótica, marcaram a poesia do último século, mas o que se tornou evidente é a importância que este tratamento de uma sexualidade diferenciada teve ao trazer a desordem e um abalo vigoroso às construções claustrofóbicas, fazendo da ilicitude um afrodisíaco e do desejo o principal instinto da revolução íntima de cada homem contra as estruturas de uma sociedade obscurantista e repressiva.
 
Entre os poetas que de forma mais combativa e profunda têm sabido dar continuidade a esta hábil refutação, a este poderoso exercício de chamar o mundo a um quarto, “num quadro de harmonia e subtis evocações”, que vão da temática mítica da Grécia Antiga, pendurando a roupa interior na corda da moral religiosa, e perfumando-a com os mitos bíblicos, isto num ouvido habituado ao mais largo sopro da lírica portuguesa, entre as formas eruditas e essa vibração de gosto popular, temos a obra de José António Almeida. Uma poesia que desde cedo se mostrou capaz de escolhas difíceis, não abdicando “do espaço de reclusão, silêncio, de ocultação, de timidez até, com que se tece a sua vida, de que os seus versos precisam para ser escritos”, como logo na estreia do poeta assinalava Joaquim Manuel Magalhães (JMM), detendo-se nos onze poemas que compõem a discretíssima edição de autor “António Nogueira”. Agora, os nove títulos que o poeta publicou desde 1984, são alvo de resgate “em versões emendadas, restauradas” por este poeta nascido em Lisboa, em 1960, mas que cresceu no Alentejo, onde diz ter aprendido “as vogais e consoantes da língua portuguesa entre olivais e searas hoje perdidas”. A perspectiva global desta obra permite-nos ir muito além de uma simples releitura, não ficar apenas impressionado mas deixar-se cultivar por uma poesia de um rigor extremo nos seus processos, numa oficina dedicada ao esplendor contido na nuance, evitando a todo o momento esse registo mais degradado no hábito dos versos, e fugindo de uma expressão que, ao invés de um murmúrio que tende para a música, trai a invenção caindo numa sua semelhança tosca, e que fecha o dizer numa compulsão, num regime notarial, em cadernos de deve/haver. Esses tantos livros em que a poesia não passa de outra sensibilidade caduca, conformista, residual, incapaz de espanto ou abalo, cedendo até a esses fingimentos de uma zanga, como se ralhasse a este tempo, mas, afinal, igualmente incapaz de lhe fugir ou de combatê-lo, sendo apenas outro reflexo da sua miséria.

“Pouca Tinta” é o título já por si bastante claro quanto ao propósito de uma obra em que até a respiração tem algo de respeitoso, exprimindo em ritmos regulares, nas medidas mais solventes, uma razão contemplativa, mas capaz também de exercer a sua “ironia amável” e, com a delicadeza da expressão mais ajustada, ferir a sensibilidade nesses pontos onde a cicatrização não vai até ao fim, e que deixam na pele uma escrita. JMM foi quem mais cedo e mais longe foi na leitura e reconhecimento da importância deste tão singular percurso na poesia contemporânea, destacando a sua capacidade para, sabendo varejar a tradição mais próxima ou distante, acentuar “a singeleza das trocas dos afectos e a euforia quase de arraial de quem recebe o desejo, contempla o desejo, se refugia do desejo, num jogo de desvendamento e receio semelhante ao ludismo barroco que encontramos nos momentos cimeiros das nossas soróres seiscentistas”.

Eis um dos raros poetas surgidos nos anos 80, como Carlos Poças Falcão ou Fernando Guerreiro e poucos mais que, hoje, nos devolvem o avesso daquele rápido fulgor que marcou essa década e tudo o que lhe sucedeu, destacando-se num retrato em que ainda vivos os restantes rostos se apagam ou confundem, com mais títulos ou menos no que deveria ser um cadastro e se torna uma lista de insistências aborrecidas, muito recomendados uns porque então prometiam qualquer coisa, e ainda mais agraciados por terem permanecido na formação, sucedendo a outros nessas contíguas fórmulas da redundância. Mas eis um dos raros que soube furtar-se aos concursos, defender uma sombra que não se mistura, mas que, por delicadeza, também não cospe nas demais. E, a propósito da reunião desta obra pela editora não edições, temos a obrigação ainda de prestar atenção à edição em si, um exercício raro por cá, e que nos diz bastante sobre o desinteresse e o geral descaso dos editores, que patrocinam o agaste e o desânimo de ver os livros circular como qualquer mercadoria, como se o objecto não fosse um aspecto do próprio texto, do poema, como se não afectasse a leitura e até o conteúdo. Este é um livro que parece aumentado, como se originalmente a tentação fosse a de fazer um objecto mais discreto, um pequeno caderno, que ganhou corpo para sustentar o volume das páginas e o encanto de poemas que, embalados uns nos outros, se monumentalizam. Desde a capa, à paginação, passando pela ilustração de Luís Henriques, e destacando ainda o recurso a papéis nobres, como o Munken creme de 130 gramas no miolo, são sinais de uma dedicação invulgar, especialmente num tempo que vulgarizou e se vulgariza dispersando-se em edições agrafadas, quando para isso mais valia que os ficheiros fossem disponibilizados para que os fotocopiássemos nós por uma parcela do valor que nos fazem pagar.

Magalhães identificara já nesta obra “a sabedoria de que o discurso da poesia pode não necessitar de, de um modo radical, uma poesia de discurso extenso para afirmar a inscrição dos terrenos afectivos que sempre a poesia é”, e reconheceu a virtude de um discurso da elipse, da tensa aglomeração dos sentidos subtraídos, preferindo o subentendido, “a rasura do afirmado, para poder vibrar mais longe a insinuação do que deflagra – um nome que é uma metáfora, uma parte por explicitar, e que nessa plenitude é veículo de uma falha, de algo que fica por cumprir”. Há nesta obra uma densidade que não se fica por um regime lapidar, mas hesita, expõe a sua vulnerabilidade entre oferta e temor, arqueja, como se o próprio silêncio tivesse um peso esmagador, e assume assim a propriedade dessas resistências fulgurantes que apontam também para o que se perdeu ou ocultou, como nos fragmentos encontrados em papiros, pedras laceradas, em lugares incendiados, fragmentos a que já aludira Magalhães, de poetas como Alceu, Anacreonte, Philicus, Poseidippus e tantos outros, como se um homem vivo pudesse carregar em si o efeito de erosão de séculos, do mesmo modo que George Bernard Shaw, numa carta, afirmava: “Eu compreendo tudo e todos e não sou nada nem ninguém.” A poesia de JAA tem esta densidade de uma consciência transferível, ameaçada e, por isso, urgente, como esses fragmentos que não restituem as circunstâncias e nem os corpos mas a intensidade de um olhar trocado, e que parece insurgir-se contra as resignações que se impõem no registo mundano como sinónimos de um amor tão próximo da vulgaridade. Tudo isto acirra a sua convicção “rasurante”, os termos que se sucedem num contrato ao mesmo tempo regular, firme e preciso, mas, também por isso, capaz de tornar tão sensível o ouvido a nuances, a percepções e simetrias fulgurantes ou desoladoras, a inesperados confrontos, porque a poesia nunca deixa de ser uma arte de interpretação que recomeça e se inventa diante de cada novo uso a que um verdadeiro poeta obriga a língua. Não há poesia sem antes se desentranhar uma expressão que aflija o entendimento mais condicionado, mais banal e que consiste nessa forma apressada de leitura, que se dá num estado próximo da apneia, seguindo o regime geral da trama sem se dar conta dos pormenores que representam um tráfico em sentido contrário.

Tantos destes poemas surgem-nos em falsos dísticos, para que ao olhar logo se imponha uma certa quietação, esse regime arejado, canções que seriam populares não fossem tão íntimas, ainda que raramente indiscretas, mas têm um uso natural, rubores muito castos, como se um anjo entrasse na carne para logo a abandonar, num indefinível espanto. Quase se diria que cheiram mais do que se ouvem estes poemas, que cozem num lume brando exalando um olor de feitiço, um português tão traduzido, recebido de línguas tidas por blasfemas, e que nos fala de um candor explicando a decência do desejo a quem confunde o amor com outras funções. JAA chama “Odisseia no Espaço” ao momento do vislumbre de um corpo nu, no chuveiro: “No silêncio da noite esse som claro,// arcaico: jorro de água sobre um corpo (…) “Depois de tantas fotos e orgias:/ um rapaz – todo nu – entre fios de água.”

Essa revelação sustida, candente; ecos firmes de tão trabalhados, como rugas que dão expressão a um rosto, uma aspereza sabedora na voz; esta é uma obra dedicada a outros signos da virtude, iluminações secretas, como uma adolescência espalhada, feita de recortes, descobertas, de um fôlego retomado, e que, talvez por se sentir vigiado ou proibido, origina uma canção às escondidas, atrás dessa descoberta do “fogo de Deus no musgo da carne”. E vão surgindo corpos, presenças que parecem soar de tempos a tempos, nesse registo em que, como de um sino, o tanger parece escutar-se “feito carne”; o efebo, algum rapaz “datável do tempo dos romanos”, de “feições trigueiras”, numa compulsão de traços que prendem menos o corpo do que um rasto. “Pelo espelho não espreito do passado/ muitos corpos mas só algumas caras./ Pouca carne, muitas almas, tão sós/ – e vou ficando casto como posso.”

Há um borralho não muito longe destes versos, ainda quente, desejoso de ser reanimado, de ser corpo em vez de se contentar com a prática dos sons, com o seu modo de enlaçar por piedade o que não se viveu.

Num texto muitíssimo revelador, com o título “Todas as Pérolas São Uma História de Dor”, JAA traça uma arte poética de um rigor assombroso: “Sempre cresci, como poeta e não só, a deitar-me para o lixo. A poesia tem muito a ver com incineração. Toda a boa oficina poética, como se sabe, tem o forno em constante funcionamento e uma sempre fumegante chaminé.”

Vigiando o interior das tradições, nessa busca de antecedentes mitológicos, de uma cumplicidade que atravessou quase emudecida as eras, JAA aprende esse exercício de impiedosa vigilância, num confronto ardoroso que o obriga a deitar tantos versos ao lixo. E conta-nos como isto permite que, de um falhanço assumido, de uma exigência drástica, se entregue a um regime de assombração, em que pode acontecer um poema finado visitá-lo como “uma espécie de fantasma verbal”. Se ainda assim lhe resiste, a sedução pode então capturá-lo num fascínio com formas antigas, usos da língua que ganham uma qualidade quase sobrenatural, como encantamentos, como essa cantiga de amigo medieval que lhe serviu de modelo, “com as suas repetidas e obcecantes flores, o musgo de bem combinadas vogais na rocha das consoantes, a linha de água fresca do seu som antigo”.

Colhendo na lição de Kaváfis, JAA soube fazer equivaler a sensualidade à história para registo dos seus pequenos triunfos e episódicas desilusões íntimas, pois se o único instrumento que cada um de nós tem ao seu dispor para lidar com o tempo é a memória, aquele poeta que inaugurou a modernidade na poesia grega exemplificou como uma memória dotada de um sensual sentido histórico é um processo ideal para mimetizar os sobressaltos mitológicos reconduzindo-os à escala ínfima em que a nossa admiração passional se desdobra e constrói os seus enredos. Há, por outro lado, nesta conjugação de tempos dispersos uma mistura de memórias, a qual nos permite falar a língua de um mito em progresso, do erotismo como condição do futuro, enquanto o entendermos num sentido de renovação, de tradições que não se perdem “na mesma distância morta das recordações”. E este registo de uma memória sensual é um mecanismo para lidar com o tempo, para trazer a si sombras amadas, fotografias, corpos que feriram a retina e algo mais, esse “emaranhado de curvas e contracurvas”, essas formas que cercam, que num instante, como um fósforo raspamos “para encher de relâmpagos as trevas”. Um bom exemplo disto é o poema “Olhando Uma Fotografia”: “Contemplo o teu rosto/ como um astronauta// que pisou a lua/ – e por uma noite// de Agosto, sentado/ no umbral da casa// (muitos anos depois/ dos únicos, poucos,// verdadeiros dias/ da vida que teve)// levanta a cabeça/ para olhar o céu// e pensa consigo:/ Oh, eu estive lá.”

Ou este outro, com o título “Velho Poeta em Maus Lençóis”: “Esses lençóis onde dormi com ele,/ onde temi morrer acompanhado// – quem os limpa, quem os põe de lavado?/ Mesmo depois de rasgados, conservam// a treva do seu corpo luminoso./ O meu coração rufava, tambor// – na cama até varanda de alta torre./ O corpo dele igual ao grito rouco (…) Nesses lencóis – onde dormiu um deus:/ onde temi morrer na sombra de outrem.// Sombra longa de faca que foi círio/ vermelho numa tenda toda branca. (…)”

Joseph Brodsky diz que noventa por cento da melhor poesia lírica foi escrita pós-coito, e assim acontece com a poesia de Kaváfis, vinca. “Qualquer que seja o tema dos seus poemas, estes são sempre escritos em retrospectiva.” O mesmo se poderia dizer da poesia de José António Almeida, e a sua homossexualidade desdobra-se num vigor estético e, ao mesmo tempo, numa combatividade face às convenções e ao clima moral que ainda agride a diferença fundamental sem a qual o amor é outro hábito vazio, outra relação esvaziada de tumulto e fascínio. “A homossexualidade, como tal, reforça a auto-análise mais do que o faz a heterossexualidade”, diz-nos Brodsky. “Eu acredito que o conceito homossexual de pecado é bem mais elaborado do que o conceito heterossexual: os heterossexuais são, para não ir mais longe, beneficiados pela possibilidade de uma redenção instantânea através do casamento e de outras formas de constância socialmente aceitáveis. Mas a psicologia homossexual, como a de qualquer outra minoria, é manifestamente caucionada pela nuance e a ambivalência: ela capitaliza com a vulnerabilidade daquele que se mostra capaz de fazer uma inversão de marcha mental após o que se vê em condições de lançar uma ofensiva. Num certo sentido, a homossexualidade é uma forma de maximalismo sensual que absorve e consome tanto as faculdades racionais como emocionais de uma pessoa a um tal ponto que o velho amigo de T.S. Eliot, ‘o pensamento sentido’, é muito provavelmente a consequência disto. A noção da vida homossexual, no fim, tem mais facetas do que a da sua contraparte heterossexual. E esta noção, em termos teóricos, providencia um motivo ideal para se escrever poesia, embora no caso de Kaváfis este motivo não seja mais do que um pretexto.”

E o mesmo se estende a JAA, que vai ao ponto de confessá-lo, em “Aporia”: “Não sei se dificuldade tamanha/ em dizer-te adeus em definitivo// tinha a ver com amor ou poesia./ Certo que nunca foste grande amante// – mas eras uma musa sempre boa:/ venenosa – cruel – inspiradora.”

Poeta de uma certa lascívia, a qual funciona mais como mecânica interior, melodia intricada, variação do regime que organiza os corpos celestes, a reflexão para a qual nos chama JAA entende que o prazer desmedido termina na dor. Assim, defende-se de um regime puramente ocioso ou taciturno desta arte, para que o desejo não seja um vão museu de distracções nem de jogos verbais, de costuras inúteis no interior da ausência, e nestes versos respira-se antes um fulgor de formas que passaram pela vista e pelas mãos do poeta e lhe queimaram as pontas dos dedos. Há um ardor anelante como regime de peregrinação, de busca, e essa “pouca tinta” é a condição de versos que nos surgem como anotações na margem da vida, o invisível legendado com minúcia, intensificando impressões, fixando o olhar, como um louco, sobre um imaginário colapsado, como quem colhe restos dulcíssimos de estátuas, conchas, e respira sobre a falha do que em tempos prendia certas visões que tiveram uma realização física. (“Sob aroma de flor que só de noite// ondula por telhados e terraços./ O beijo tombado num adeus breve// com o pé no pedal da bicicleta./ Sombra trémula atrás de vidro baço// numa acesa janela anota a cena.”) Assim, vai cartografando ausências, esse “corpo de oiro perdido no caminho”, no avesso do escândalo, e até para lá da simples discrição, nesta música calada (“clara fonte cantando nos ouvidos/ – esse rumor em versos soletrado”), em sua secreta fulgurância, imprimindo a continuidade difícil de um encanto proibido. Mais do que depurada, é uma poesia decantada, em que todo o pó foi soprado depois de ter passado com o cinzel, de ter magoadamente percorrido e polido as superfícies, e o amor volta a parecer-nos uma invenção raríssima, que transtorna o curso das coisas, que rompe o quadro, chega a provocar a ira de alguns. “E como setas alvejando um torso mártir/ contra ti, raivosos, dirão palavras vis// – todos os tormentos farão por te infligir.”

E se, como nos diz W.H. Auden, os três temas recorrentes na obra de Kaváfis são o amor, a arte e a política, na obra de JAA estes três temas são inseparáveis uns dos outros, pois o amor revela-se a condição suprema de uma vida harmoniosa e de enlevo artístico, mas a condição de um amor malvisto, tantas vezes perseguido, exige coragem e um desafio que enquadra uma visão crítica e até feroz do contexto político, é um “amor cercado de urtiga”, uma mágoa perante um ânimo que torce contra nós, e leva o poeta a retratar-se assim em “Ao Anoitecer”: “Sou um velho rato celibatário:/ a lei não me permite casamento.// Outros encontram sem dificuldade/ o universo pronto a vestir// logo de manhã, desde que nasceram./ Depois trajam todas as convenções// – que lhes assentam bem, do colarinho/ às mangas. Até parece que Deus// é um alfaiate por conta deles./ A nós, a melhor roupa fica mal:// em armazém nenhum vendem sapatos/ que nos deixem ir noutra direcção// – nem anel que não faça propaganda/ à sempre «natural» ordem do mundo.”

Esta poesia encontra-se com essa forma de ingenuidade ferida que é a verdadeira sabedoria, e conhece esse assombro que nada tem de natural, que é razão criativa e admirável dos homens, e que fora do contexto da mortalidade perde não só o gosto como a vertigem, essa urgência que torna o amor uma relação de que os deuses troçam mas admiram e até invejam, e JAA está tão enraizado nesta antiga lição, compreendendo como talvez o Ocidente, mais do que uma crença, é sobretudo uma ideia da paixão, aquela que a cada um cabe inventar, esse horizonte que, no instante em que para nós se extingue, condena-nos a um limbo, a essa frieza dos que se destinam aos venenos que trocam a existência pelos trocos que a morte faz tilintar no seu bolso.

Se a realidade está ainda incompleta, e se “a poesia nada tem a ver com a realidade (no sentido vulgar de realidade)…”, como nos disse António Maria Lisboa, a paixão é o que nos livra das convenções, dos preconceitos e, finalmente, do cinismo. Veja-se como isto se reflecte num poema como “Dos Bons Velhos Tempos”: “Quando algum de nós deixava escapar/ qualquer incipiente observação// acerca da beleza masculina,/ no intervalo da grande batalha// entre peles-vermelhas e cowboys,/ ouvia-se sempre aquela réplica// troante: ‘Mas tu aprecias homens?’/ Mais ou menos crianças, mais ou menos// adolescentes, já colonizados/ por todo o preconceito dos adultos.// Se mesmo sobre pedras e berlindes/ um juízo estético formulamos// (Isto por outras palavras, é claro)/ – por que motivo não podem humanos// acerca do fraterno semelhante/ homóloga proposição fazer?// Isto por outras palavras, é claro:/ infantis, perdidas notas de música// – apenas o sentimento recordo./ Tal me parecia então o mais// risível e revoltante brasão/ da fanfarrona estupidez da tribo.”