Não é que o dia da nossa morte seja demasiado importante para nós – talvez o seja mais para aqueles que deixamos e se vêm forçados a despedir-se, e para quem o dia se torna uma data, um coágulo escuro no calendário –, mas é estranho que em qualquer momento, seja o que for que estejamos a fazer, nos sirva de lição a consciência desse verso de Roberto Juarroz que nos diz que neste mesmo momento “alguém está a morrer”. Ao ponto de, apesar do nosso legítimo desejo de morrer num minuto ou num dia com exclusividade, nem isso nos ser dado. Outros morrerão no mesmo dia, na mesma hora e até no mesmo instante.
Num só dia, morreram três actores portugueses: António Cordeiro, José Mascarenhas e Licínio França. Foi este sábado, 30 de janeiro. O primeiro fora já obrigado a abandonar a sua profissão, debatendo-se com uma doença degenerativa rara, paralisia supranuclear progressiva, a qual lhe foi diagnosticada em 2017 e que acabaria por matá-lo aos 61 anos. Dedicou-se sobretudo ao teatro, mas era um rosto familiar dos portugueses pela sua participação em produções marcantes para a televisão portuguesa, primeiro em Duarte & C.ª, série em que se apresentou ao grande público com um pequeno papel, em 1987, mas só uns anos depois alcançaria o sucesso, com o papel do detective Claxon na série do mesmo nome da RTP, que passou no início da década de 90. No final da mesma década, voltaria a capturar a nossa atenção nas duas temporadas de Major Alvega, em que fez o papel do vilão, Helmut von Block. Com uma carreira de mais de trinta anos, nos últimos este actor alentejano formado na Escola Superior de Teatro e Cinema conseguiu deixar aquele vinco ou a irregularidade de uma presença e parecença distintiva em telenovelas como Laços de Sangue, Coração de Ouro, Mar Salgado e Espelho d’Água, todas da SIC. O seu último trabalho no cinema foi em Índice Médio de Felicidade, de Joaquim Leitão. Mais memoráveis são os papéis que fez em dois filmes de João Mário Grilo – O Processo do Rei (1990) e Os Olhos da Ásia (1996). Numa mensagem de condolências enviada à família e amigos, Marcelo Rebelo de Sousa recordou o percurso de António Cordeiro, afirmando: "Lembraremos em especial o seu detetive de 'Claxon', bem como todas as personagens que se pareciam muito com ele, idiossincráticas, autoirónicas e empáticas".
José Mascarenhas morreu aos 65 anos, também de doença prolongada, e era também alentejano, e um dos actores mais destacados no panorama do teatro da região, tendo sido encenador e director do Teatro de Portalegre. Por sua vez, Licínio França, actor que ficou conhecido pela participação em séries como Médico de Família, Floribella e Inspector Max, sofria de Alzheimer e encontrava-se internado num lar de idosos, tendo morrido aos 67 anos. Foi um dia pesado, e os três, como petálas num galho negro e húmido, quebraram-no, libertando-se do longo sofrimento provocado pela doença. Mas num país e num momento mais difícil em que a cultura tão poucas condições tem para se impor, e que por isso se exprime sendo fiel sobretudo à ausência de um verdadeiro ânimo e sentido cultural, a doença que nos mata chega a ter mais consideração do que esse veneno de indiferença dos obituários, e até das homenagens servidas tão friamente por tantos nas redes sociais. Todos exprimem uma devastação emocional que nos sova com a bordoada dos clichés. Nenhuma lembrança que se nos aferre, nem algumas palavras mais vibrantes e que desenhem um contorno que gesticule e se debata contra o longo silêncio que se abaterá sobre estes nomes.
Subitamente, todos os conheceram e ninguém tem um grão de sal para dar gosto à lágrima pública. Não se destaca qualquer pormenor das biografias que possa ampliar a nossa história comum: a dos indivíduos ou a do país, até às dimensões da lenda. Assim, nenhum rosto se impõe como uma aparição entre a multidão, nem uma frase nos puxa pela manga, e nada é destacado entre a memória para tornar o tempo de uma vida sensível na hora em que acaba. Mas talvez qualquer um destes actores gostasse de ler estes versos de Juan Bonilla: “Claro que estamos sozinhos./ Em comboios subterrâneos, olha para nós,/ os miolos martelados pela prosa de percussão dos jornais,/ sem halo de santidade nos olhares,/ cada um a caminho dos seus bosques,/ onde nos aguardam as hienas do dia útil,/ os parênteses em que construímos para nós mesmos/ um sonho à medida de quem fomos.”
De José Mascarenhas pouco sabemos do seu percurso além de que viveu tantos anos em Portalegre, onde lecionou a disciplina de Teatro na Escola Secundária Mouzinho da Silveira. Morreu numa aldeia deste distrito, Casa Branca, em Sousel. Na sua página no Facebook, nos últimos anos pouco mais partilhava além de versos de diferentes poetas, como estes de Jorge de Sena: “sou inteiramente liso interiormente,/ sou um aquário dos mares,/ sou apenas um balão cheio dessa verdade do mundo.”
Por seu lado, Licínio França morreu dez anos depois de lhe ter sido diagnosticada a doença de Alzheimer. Popularizou-se ainda na década de 70, como autor-compositor e intérprete, depois de surgir em 1972, no concurso A Oportunidade. Chegaria à televisão na década seguinte, depois de se estrear como actor no elenco da versão portuguesa do musical Annie, onde participaram nomes como Nicolau Breyner e Noémia Costa. Viria a casar com esta actriz, uma ligação que perdurou vinte anos, até 2005, tendo a união gerado uma filha, Joana França, também ela actriz. Licínio participou em várias telenovelas, integrando também o elenco fixo de Eu Show Nico, de Nicolau Breyner, em 1988, e se nunca desempenhou papéis maiores, no ano seguinte, o Duo Big Ben, que formara com Noémia Costa, venceu o Festival da Canção de Lisboa, da RDP Antena 1 com o tema Lisboa Nunca Esquece.
Após o divórcio da actriz, Licínio França viveu um período bastante negro em que, não tendo oportunidades de trabalho, deu por si a viver na rua, na zona dos Restauradores, em Lisboa, segundo o próprio contou à revista TV 7 Dias em 2008. Por essa altura, dependia da ajuda da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, e já podia descansar os ossos num quarto alugado, fazendo duas refeições por dia na Sopa dos Pobres. Essa entrevista alcançaria bastante repercussão, com Manuel Luís Goucha a capitanear um movimento de solidariedade que permitiu a Licínio regressar ao pequeno ecrã, tendo-lhe sido oferecido um papel na novela Flor do Mar, da TVI. Foi o último trabalho que teve.
Entretanto, com o passar dos anos, vieram a lume aspectos da intimidade do conturbado casamento com Noémia Costa, tendo a actriz revelado em entrevistas que este foi marcado por traições e episódios de violência doméstica. Terá sido isso o que determinou o corte de relações entre pai e filha, tendo a reconciliação acontecido só nos últimos anos, numa altura em que Licínio vivia já num lar em Odivelas, sendo João André, o filho mais velho, fruto de uma relação anterior, o seu tutor legal.
Por que razão o obituário de um actor haveria de ser escrito com a mesma vulgar solenidade com que são escritos os de tantas figuras que se reduziram aos seus feitos e a um qualquer currículo? Então e as outras vidas a que deu o corpo, a voz e o mais? E o que dizer desse modo de erguer os olhos e contemplar o céu, vendo nele um cemitério invisível, o maior da História, de acordo com Elie Wiesel. Iluminando aspectos mais ou menos delicados, a morte destes três actores num mesmo dia deixa-nos perante a imagem de um quarto e de uma figura, os mesmos que encontramos nuns versos de Carlos Poças Falcão, num último acto, espécie de epitáfio em caixa de música que se ouve e embala como a chuva: “Já nada mais serei senão um homem:/ engano por engano, esse me acalma./ Entretanto visto-me, abro o gavetão,/ retiro de uma sombra roupa humana./ Forros, paramentos, a igualdade/ do peito das camisas, essa falha/ de qualquer filosofia. Aos pés da cama o sol/ e terra nos sapatos: assim é o meu quarto,/ lençóis ainda quentes, um modo de trocar/ de temperatura. Ou a costura exacta/ de outra respiração – fios, alinhavos,/ pespontos de luz numa existência escura.”