A conservadora americana, escreveu por estes dias a revista norte-americana National Review sobre Fran Lebowitz, protagonista da nova série da Netflix com assinatura de Martin Scorsese — e da controversa autora, entrevistada pelo cineasta ao longo de sete episódios ao longo dos quais a conversa se expandirá para temas como os livros (Lebowitz acumula uma coleção de 10 mil), o dinheiro e o capitalismo, o Me Too, a juventude e os tempos modernos, mas sempre Nova Iorque. Aquela Nova Iorque a que chegou na década de 1970 que no cinema poucos cristalizaram como Scorsese, o próprio, seu amigo de um tempo tão antigo que nenhum dos dois parece hoje capaz de dizer como se conheceram.
Nova Iorque é o tema nesta série que, a partir de Nova Iorque e em tempos de pandemia, nos vem recordar do que uma cidade — qualquer cidade — costumava ser. Ainda que para Lebowitz cidade pareça existir apenas uma. E por aí irá, num saudosismo que ultrapassa os limites do verosímil. Saudosismo dos tempos dos quais se congratula ter sido assaltada apenas uma vez — e, detalhe importante, nunca violada. Dos tempos em que preferia trabalhar como empregada de limpezas ou motorista de táxi quando esse era trabalho para homens daqueles que o próprio Scorsese retratou no cinema com um único objetivo: evitar o assédio dos gerentes de restaurantes, cafés e bares sobre as empregadas de mesa, que recorda como constante naquele tempo em que chegou a Nova Iorque e em que, recorda também, pela cidade imunda a um ponto hoje inimaginável caminhava naturalmente descalça.
Descalça terá entrado pelo escritório da reputada editora à qual, completamente desconhecida ainda, tomou a liberdade de ir entregar o manuscrito do seu primeiro livro. História que interrompe ela própria, num momento de quase perplexidade: “A coisa que me surpreende é estar viva, tendo andado descalça por Nova Iorque”.
Nesse tempo em que a icónica (e iconoclasta) figura de Fran Lebowitz ainda não existia enquanto figura da cultura nova-iorquina, trabalhava, segundo conta, seis dias por semana. O dia que dava a si própria de folga era a quarta-feira, o dia em que saía o Village Voice. Imagina-se que o lesse, mas essa parte não conta. Conta antes como atentava religiosamente nas páginas de anúncios de empregos. Era isso que a movia: encontrar um emprego melhor do que aqueles que tinha, ou que já tinha tido.
Até que começou a trabalhar para a Changes, uma pequena revista sobre política e cultura fundada por Susan Graham Ungaro, casada com o músico de jazz Charles Mingus — amigo mas também músico mais admirado por Lebowitz. Tinha 21 anos, estava-se em 1971. A primeira função que lhe foi atribuída foi a de vender espaço de publicidade, mas depressa começou a escrever, e com a escrita, então de críticas de livros e filmes, a ganhar a vida. Foi o dia em que perdeu todo e qualquer prazer em fazê-lo.
A poder escolher a profissão ideal, escolheria a de leitora profissional. Não tendo ninguém disposto a pagar-lhe por isso, a escrever continuou até que Andy Warhol a chamou para a sua revista, a Interview, onde manteve a coluna “I Cover the Waterfront”.
Scorsese recupera um retrato em que aparecem juntos, mas não haja ilusões. “Nunca me dei bem com o Andy [Warhol]. O Andy nunca se deu bem comigo. Está muito melhor desde que morreu”. Vai mais longe ainda Lebowitz no seu sarcasmo e causticidade aqui, ao contar que Warhol a tramou até na hora da morte: duas semanas depois de ter decidido vender a sua pequena coleção de obras do artista, Andy Warhol morreu e o valor das obras disparou. Sobre o mundo (ou o mercado) da arte discorre logo no primeiro episódio, indignada: num leilão de um Picasso, por exemplo, aplaude-se não a obra, não o artista, mas o milionário que o arremata por uma quantidade de milhões astronómica.
Fechado o parêntesis, foi durante esse tempo em que escreveu primeiro para a Interview e depois para a Mademoiselle que se tornou amiga de muitos artistas, incluindo Peter Hujar e Robert Mapplethorpe — com quem se terá a dada altura também ela desentendido. Virá porventura dessa época também a amizade com Martin Scorsese, mas isso permanece ao cabo de sete episódios de Pretend It’s a City um mistério. Ambos dizem não ter memória de como se conheceram.
Dirão que acreditam que tenha sido numa festa. E consta que Lebowitz gosta de festas. Desde que fora do seu espaço privado, como se presume pela forma como se relaciona com ele: “A coisa de sairmos do nosso apartamento é haver tantas pessoas lá fora. A melhor coisa do meu apartamento, além do facto de ser um excelente apartamento, é que controlo se há lá outras pessoas”.
Também a incomodam saídas, viagens, para férias. Se viaja, é porque vai em trabalho, e é sobretudo de falar para audiências que a autora ganha a vida já há uns bons anos. Se foi pela sua obra escrita que se tornou conhecida, essa ficou-se essencialmente pela década de 1990. O seu primeiro livro, Metropolitan Life, foi publicado em 1978, coligindo os textos que publicara na Interview de Warhol e na Mademoiselle com a qual também colaborou ainda nessa década. Foi esse livro que a fez uma espécie de celebridade local, com todo o significado que terá o que é local quando o local é Nova Iorque. Publicou ainda Social Studies (Random House, 1981), mais uma compilação de textos, The Fran Lebowitz Reader (Vintage Books, 1994), que juntava os dois livros, e Mr. Chas and Lisa Sue Meet the Pandas (Knopf, 1994). Depois de uma obra inacabada intitulada Progress que também a Knopf publicou em 2003, mais nada. A justificação que aponta desde então é um bloqueio criativo.
Sobra-lhe aquele humor quase odioso ao qual Scorsese sucumbe a cada 30 segundos por esta conversa, sucessão de conversas com duração suficiente para sete episódios — Pretend It’s a City, o primeiro, que dá o título à série, Cultural Affairs, Metropolitan Transit, Board of Estimate, Department of Sports & Health, Hall of Records e, por último, Library Services, sobre a sua relação com os livros — às quais se juntam imagens dessa Nova Iorque da década de 1970 que Lebowitz detestava mas à qual se tem a impressão de que regressaria. “Quando as pessoas dizem ‘porque é que vives em Nova Iorque?’ não se consegue responder-lhes, tirando o facto de sabermos que temos desprezo pelas pessoas que não têm estômago para isso”.
Diz ainda, em mais uma da infindável lista de observações sobre a cidade que escolheu para viver há 50 anos e que claramente não largará algum dia: “Ninguém tem dinheiro para viver em Nova Iorque. E, ainda assim, há oito milhões de pessoas que o fazem. Como é que fazemos isto? Não sabemos”. Até porque, até nos (odiosos) tempos modernos, Lebowitz, que não cede a tecnologias como os “devices” a que o comum mortal cedeu há tanto tempo, tem os seus mantras, e calculados planos de sobrevivência: “Há milhões de pessoas [em Nova Iorque] e a única que está a ver para onde vai sou eu”.