Cemitérios. De portas fechadas mas com cada vez mais trabalho

Cemitérios. De portas fechadas mas com cada vez mais trabalho


Nos cemitérios do concelho do Barreiro, o número de funerais por dia triplicou desde que o ano começou. Os coveiros queixam-se de falta de tempo para descansar.


São onze e meia da manhã e o cemitério de Vila Chã já fez uma inumação. As portas estão fechadas e é proibida a entrada ao público, a não ser quando há um funeral. Mesmo nessas ocasiões, o acesso é restrito. Os que estão presentes na cerimónia não têm a oportunidade de se dirigir a mais nenhuma campa. Com o novo confinamento tornou-se impossível realizar o luto junto dos falecidos. As floristas estão fechadas e os marmoristas, nem vê-los. No passado dia 27 morreram 678 pessoas; no mesmo dia de 2020, 412. No dia anterior morreram 708; em 2020 foram 374. Se os números contam quase o dobro dos óbitos relativamente ao ano passado, o movimento nos cemitérios não o mostra.

Na funerária desde sempre Alexandre Pires é agente funerário há seis anos. Apesar de ser jovem, começou cedo a interagir com aquilo que fica longe dos olhos da maioria. “O meu pai é proprietário de uma funerária desde que me lembro”, relata Alexandre. Apesar de ter estudado Engenharia e Biotecnologia, nunca chegou a exercer. A prioridade foi sempre continuar o negócio da família. Desde os 19 anos que prepara os cadáveres para que as famílias possam, pela última vez, ver os seus entes queridos de uma maneira digna. “É importante tratar dos corpos porque preferimos que a família veja a pessoa com a melhor aparência possível para o momento”, explica o agente funerário. Desde março que essa função ficou suspensa. Devido à pandemia de covid-19, esse passo foi posto de lado e substituído pelo peculiar gesto de embrulhar caixões em película aderente. Mas não é por isso que Alexandre tem menos trabalho, muito pelo contrário. Agora são cada vez mais as inumações e cremações que tem de realizar por dia. É ele que começa o processo de levar um corpo até ao cemitério. Quando chega, o trabalho passa a ser dividido a meias com o coveiro.

Todos equipados Joaquim Pinto e José Pina são os que estão de serviço no cemitério de Vila Chã. Este é o principal do concelho do Barreiro e todas os processos das cerimónias que são feitas, tanto no cemitério do Lavradio como no de Palhais, passam por aqui. Joaquim Pinto (ou sr. Pinto, como é gritado o seu nome por lá) está a equipar-se a rigor para fazer a inumação de alguém que morreu devido à pandemia de covid-19. Héber Saldanha, o encarregado do cemitério, conta que “estão marcados 18 funerais para esta semana, desde terça passada até sábado”. O ex-coveiro explica que neste momento estão a ser feitos seis funerais por dia quando, sem covid-19, a média era de dois. No entanto, “é por causa do que se está a passar com as cremações que eles estão a vir para aqui”. Alexandre Pires afirma que há quem tenha de esperar 11 dias por uma cremação, “e algumas pessoas, quando ouvem isso, optam por fazer inumação, mesmo que seja mais caro”.

Cinco coveiros, três cemitérios No Barreiro são cinco os coveiros que prestam serviço aos três cemitérios, “mas é preciso mais gente porque não temos tempo nenhum para descansar”, avança José Pina. Rui Silva, o responsável dos cemitérios do Barreiro, afirma que “já foram contratadas mais duas pessoas. Um deles é um miúdo de 20 anos e tudo”. Héber, que já tem “muitos anos de casa”, relembra uma altura em que eram mais: “Em 2006 éramos 12”. Hoje são menos de metade.

O Funeral A carrinha funerária do serviço marcado para as 15h30 chega ao cemitério um pouco antes das três. Cerca de 15 pessoas rodeiam-na, com máscaras e distância entre si, fazendo um semicírculo com o padre e a viatura no centro. O discurso do pároco demora cerca de dez minutos. Quando acaba, os coveiros ajudam os agentes funerários a retirar o caixão da carrinha. Por ter sido uma morte por covid-19, o enterro é feito num “talhão” específico para doenças infetocontagiosas. Héber diz que subiu esta semana para 60 o número de pessoas aí enterradas: “Desde março do ano passado até dezembro foram 36, e as restantes este mês”.

A zona destinada aos infetocontagiosos é no fundo do cemitério, quase como um sinal de que “é melhor prevenir do que remediar”. Rui Silva aponta para ela enquanto diz que “falta de espaço é aquilo de que não nos podemos queixar”. Atrás dos espaços já cavados no chão existe muito terreno; no entanto, neste caso, a necessidade desse espaço não parece ser algo particularmente positivo. O funeral é agora feito sem tato, sem um abraço ou um aconchego. É o que a altura exige.

Mais trabalho, menos tempo Héber explica que “apesar de existir cada vez mais trabalho, os coveiros fazem cada vez menos coisas”. Quando trabalhavam com uma média de dois funerais por dia era possível realizar serviços de limpeza e arranjo de flores, por exemplo. Agora, esse trabalho é deixado de lado, “já não há tempo”, afirma o encarregado em jeito de reflexão.

Depois do primeiro confinamento, as visitas aos cemitérios voltaram, mas apenas com marcação. Rui Silva relembra a dificuldade que era para as famílias não visitarem aqueles que já tinham partido: “Há muita gente a visitar o cemitério por uma questão de bem-estar. Eram várias as pessoas que não entendiam o porquê de os cemitérios estarem fechados, tinham a necessidade de visitar a sepultura do ente querido e não tinham como. Muita gente ia à rede do cemitério para poder ver as sepulturas”.

Alexandre Pires, que assiste a funerais há mais anos do que os dedos de uma mão podem contar, compreende a dificuldade que pode ser para alguém não se despedir de quem gosta. “Há vezes em que temos de ir buscar um corpo a casa ou ao hospital e, se se suspeitar sequer que essa pessoa tinha covid-19, ninguém o vê. Pode ser traumático”, afirma o agente funerário.

Desde março que essa tem sido a realidade mais comum e por muito que se tente “normalizar” o processo, a pandemia cortou aquilo que é mais necessário quando se está de luto: os gestos de afeto.