Na biblioteca, cada vez mais extensa, sobre a emergência de democracias iliberais em diferentes zonas do globo, O crepúsculo da democracia, de Anne Applebaum (Bertrand Editora), historiadora premiada do Gulag, politóloga, académica na London School of Economics e colunista em algumas das mais prestigiadas publicações internacionais (do Washington Post à The Atlantic), cidadã ideologicamente filiada numa direita liberal clássica (de feição thatcherista), procura dar o seu contributo para o esclarecimento das condições sob as quais é possível a democracia perecer.
Por muito que uma realidade seja intelectualmente consabida por um sujeito (ou por um povo), há circunstâncias históricas que a tornam como que palpável, impossibilitando qualquer estado de negação (ou letargia/apatia) e implicando-nos, seja ao nível do pensamento, seja da ação.
Lembrava Yascha Mounk, evocando Aristóteles (de A poética), que a invasão do Capitólio pelos Proud Boys era um final de drama simultaneamente surpreendente e inevitável. Nem mesmo os mais optimistas ignorarão, por estes dias, que a democracia é um frágil adquirido.
A salvo da história?
E, porventura, talvez seja isso que Anne Applebaum pretende dizer-nos quando convoca a história pessoal da sua passagem de ano de 1999, na Polónia: na sala de festas, há um conjunto de pessoas que partilham um credo claro e estável, num mundo ainda legível; dançam e cantam dezenas de pessoas que, entre outros interesses e afinidades, acreditam, comummente, do ponto de vista político, num liberalismo clássico (ao nível económico), de feição thatcherista. Mais ou menos peso do Estado na economia (no caso, menos), maior ou menor crença no mercado (no caso, maior), ou em valores como a competição e a concorrência são tópicos sugeridos – a discussão sobre a democracia, ela mesma, não ocupa, então, os espíritos (digamos que o credo liberal deste conjunto de pessoas não se fica pela dimensão económica, mas, pelo menos por aquela altura, abrange, igualmente, a dimensão política). Há, mesmo, uma cena particularmente curiosa nessa passagem de ano de 1999: de modo inusitado, uma conviva vai à rua, às 3h da manhã, disparar tiros para o ar em modo de celebração. Uma extravagância típica de quando se está (se julga estar, claro) a salvo da história (houvera os Balcãs, permanecia Le Pen, surgiria Haider…). Mas a história regressou.
Voltámos, em suma, ao longo da última década, a compreender com espanto que “nenhuma vitória política é duradoura”, que há divisões subterrâneas que atravessam uma sociedade e das quais os seus membros nem se apercebem até ao momento em que um dado sucesso histórico despoleta tensões e inimizades entre os seus membros. Amigos de longa data, familiares, vizinhos deixam de se falar… Nenhuma solução é definitiva, nenhuma teoria capaz de explicar tudo, os humanos podem sucumbir às piores paixões. “Reunidas as condições necessárias, qualquer sociedade pode virar-se contra a democracia”.
A nova direita bolchevique
Num segundo momento, Applebaum reconduz-nos a uma inventariação de possíveis causas/respostas explicativas para a transição, de vários dos convivas dos anos 90, de liberais para iliberais, de crentes numa democracia tout-court para se identificarem com modelos autoritários (neles se personificando, evidentemente, esta mudança de regime ocorrida em várias partes do mundo).
É possível, academicamente pelo menos, alvitrar-se que alguns dos indivíduos que passaram por esta mutação – e que tinham estado na festa da politóloga de direita – possam pertencer aquele 1/3 da população de cada país que Karen Stenner identificou como tendo uma “predisposição autoritária”, favorável à homogeneidade e à ordem.
E, no entanto, não são tanto estes casos que, em rigor, mais importarão. Observemos o caso típico do arrivista, os homens e mulheres que se concedem, a si próprios, qualidades de valor insuspeito e se sentem despeitados pelo “regime” – que não os recompensou como, sem dúvida, “mereciam”. Este homem ressentido, humilhado pela ausência de glória que as suas características implicariam não fosse a “corrupção”, a “bandidagem”, as falcatruas do “regime”, aí está pronto a ocupar, de mão firme e sem hesitação na limpeza em favor da “nova ordem”, a televisão estatal, os museus, os tribunais, o que for preciso (eis a Polónia, ou a Hungria, de nossos dias). Em muitos dos casos, tais figuras não serão isentas de certa (ou, mesmo, bastante) preparação intelectual. Na realidade, os demagogos precisam de quem lhes venda a imagem, de gente que consiga distorcer a lei; carecem, assim, de membros da elite intelectual e culta. Entre este escol, além da inveja e vingança acumuladas ao longo dos anos – agora, por fim, satisfeitas -, há, ainda, quem se dê a sofisticações como a de adoptar a “democracia iliberal” como contraponto, originalidade, face ao banal modelo liberal de importação ocidental (demasiado vacilante, demasiado individualista).
A atual direita autoritária, a Leste, brande a bandeira anticomunista com inusitada intensidade; trata-se, sobretudo, de pura hipocrisia, dado que, na Polónia ou na Hungria atuais, as nomeações de quadros comunistas, agora fidelíssimos ao novo regime, são frequentes. Mais: a nova direita é revolucionária (e não, como tradicionalmente, conservadora), é bolchevique – a lição de Applebaum seria, de resto, ratificada no episódio grotesco da invasão ao Congresso norte-americano, assalto à democracia representativa, por uma caterva que, muito provavelmente, a autora incluiria nesse paradoxal movimento de uma “Internacional Nacionalista”. “A nova direita é mais bolchevique do que burqueana: é composta por homens e mulheres que querem derrubar, contornar ou minar as instituições actuais, que querem destruir o que existe”, diz-nos. Há sonhos de violência purificadora, de um choque cultural apocalíptico, na nova direita, como, outrora, existiram na esquerda radical. Aliás, o estado iliberal de partido único foi inicialmente desenvolvido por Lenine e é também praticado por China, Venezuela ou Zimbabué (sendo que em países como Tunísia ou Venezuela se constata uma oposição, em muitas ocasiões, meramente simbólica). Se a paixão “de classe”, marcaria o marxismo, sob o fascismo a paixão adquire o contorno “nacionalista”.
“Uma forma de raiva política”
As mudanças demográficas ocorridas em alguns estados contribuíram, também, para que muitos cidadãos sentissem uma nostalgia dos “bons tempos” senão um autêntico “desespero cultural” e o próprio fim da guerra fria, cuja cruzada moral permitia um empolgamento entretanto transformado em vazio, contribuiu para que alguns encontrassem no palavreado moralista dos novos “homens fortes” um porto de abrigo. Acresce que, de acordo com Applebaum, nalgumas partes dos EUA e do Reino Unido (onde a paixão nacionalista tocou a rebate, como o Brexit evidenciou à saciedade) “há provas de que os novos imigrantes criaram uma concorrência indesejável em alguns postos de trabalho”.
Embora “a Hungria seja o único país que encerrou uma universidade inteira e foi o único país da Europa que usou de pressões políticas e económicas para pôr a maioria dos meios de comunicação privados sob controlo do partido do governo”, o “iliberalismo”, segundo a autora, não é um problema do Leste europeu. E importa perceber “como é que países com trajectórias políticas, estruturas de classe e ciclos económicos distintos – (…) Europa ou os Estados Unidos, mas também a Índia, as Filipinas e o Brasil – desenvolveram, simultaneamente, uma forma semelhante de raiva política entre 2015 e 2019 (?)”. Face a tais questionamentos, respostas como o incremento da imigração, o revivalismo nostálgico, a desilusão com a meritocracia, o apelo das teorias da conspiração, a natureza conflituosa do discurso moderno (hipermediatizado e presente em redes sociais onde a emoção e a extravagância competem para vencer na economia da atenção) são possibilidades explicativas. Que podem, ainda, perceber-se melhor se confrontadas com um mundo de ontem: existência, então, de diálogo centro-esquerda e centro-direita, predomínio de emissoras televisivas nacionais, jornais de grande alcance, um único debate a nível nacional (em vez de uma pluralidade de canais, de grupos, de milhares de fragmentos de conversas, interesses, atenções… quando estas existem e não são pura dispersão). Eis a revolução da internet a explodir de consequências sobre o político (“o género de revolução na comunicação que, no passado, teve profundas consequências políticas”, diz-nos Applebaum), num tempo que sugere estar despido de autoridades – políticas, culturais ou morais – e, assim, sem fontes de confiança). “Os próprios algoritmos das redes sociais incentivam as falsas percepções do mundo” e o meio de comunicação utilizado para o debate transformou a natureza desse mesmo debate: o reddit, o twitter e o Facebook são adequados à ironia, à paródia, ao cinismo e, em diferentes latitudes, vão vencendo eleições políticos “irónicos”, “paródicos”, “farsantes”. Aos poucos, o mundo virtual semioculto começa a adquirir uma presença no mundo não digital. No tempo que vivemos, a máxima de que “a política é a guerra por outros meios” vai-se impondo.
Os founding fathers norte-americanos não estavam assim tão convencidos de que a democracia liberal era irreversível: “a história era circular”, “a natureza humana era imperfeita”, “eram necessárias medidas especiais para evitar o resvalar da democracia de volta à tirania”. Não se pense, contudo, que o mais recente título de Anne Applebaum, contém um diagnóstico ou profecia destinada a cumprir-se inevitavelmente. Não é disso que se trata: a autora quis colar-nos à pele o aviso – é possível o retrocesso, a democracia liberal não permanecerá se cada geração não quiser lutar por ela. Cabe-nos, agora, decidir se não queremos que os sinos dobrem pela democracia e, bem assim, empenharmo-nos, vigorosamente, na sua defesa e revivificação.