Há políticos – e não só – que assinalam (e disso se queixam amiúde) a politização do processo crime. A expressão pode ter vários sentidos. Desde logo, pode significar que o andamento de um processo tem razões políticas, seja no sentido mais estrito de atividade política, seja no sentido mais amplo de visão ideológica e social. Pode, também, significar que o andamento de um processo tem consequências na vida ou na atividade políticas, dele se retirando impróprias consequências nestas esferas. E pode significar outras coisas, mas os dois sentidos essenciais parecem-me ser os assinalados. Ora, deixemos por agora de lado o primeiro deles, embora seja tema a merecer atenção, sobretudo na vertente relativa à visão ideológica e social (ou, dizendo de outro modo, à mundividência). Olhemos para o segundo. É verdade que existe politização do processo crime nesse sentido. E tem razão quem se queixa. Porém, muitos dos que se queixam são em larga medida responsáveis pelo fenómeno.
A partir do momento em que a existência de um processo e o seu andamento passaram a ser – e continuam, até em crescendo – arma de arremesso político, ficou ainda mais aberta a porta da politização (porta essa que o quadro sociológico do nosso tempo abriu, e favorece). Se a existência de um processo que visa alguém, a sua constituição como arguido, a sua condenação, et cetera, constituem temas de combate e de apreciação políticos, estão depois à espera de quê? Que não haja politização? Ou que só aconteça aos outros? (Quando nos acontece a nós, já vemos de outra maneira, não é?) Quando se retira a confiança política a alguém que é constituído arguido, que caixas de Pandora se estão a abrir? Significa acaso ser constituído arguido alguma conclusão, certeza ou sequer enunciado seguro? E acaso são as autoridades judiciárias imunes ao erro? (Pelo menos quando não somos nós os visados, parece que são, mas quando somos nós fia mais fino, não é?) E que respeito mostra quem usa o processo como arma política pela presunção de inocência, pelo contraditório, pelo processo leal, acusatório e equitativo? E, aliás, que respeito pelo e que confiança no sistema de justiça revela (ou não)?
Políticos – em campanha (nesta em curso, por exemplo, tem sido um fartote) e fora dela – servem-se de processos, antigos ou atuais, para vários tipos de juízos, não importa sequer o que neles ocorreu, porque ocorreu, ou sequer se ocorreu? Para alguns parece valer quase tudo ou mesmo tudo, mesmo que não seja mais do que patética e perigosa demagogia ou, mais grave, incompreensão ou desrespeito por valores que subjazem ao processo e à organização do Estado, embora encham a boca com a sua adjetivação “de Direito”. E há quem nunca resista a dar logo os seus “5 centavos” sobre o tema do momento, dizendo uma coisa qualquer (bem, “qualquer” não, uma coisa que pareça soar bem e ir ao encontro das tendências).
Enquanto não se compreender que o uso de uma arma de arremesso pode ter, tal como o celebrado artefacto tido por australiano, um poderoso efeito de “regresso à mão que a lançou”, andaremos nisto. A usar processos para a política, ao mesmo tempo que se enche o discurso com a separação de poderes e de áreas e bla bla bla. E, também, a não perceber que isso até pode abrir caminho para que o andamento de um processo, além de ter essa espúria serventia extra-processual, possa mesmo ser determinado pela antevisão de que do mesmo se virão a tirar consequências políticas (e quem diz políticas diz outras, noutras esferas da vida, mormente pública ou com relevância pública). E, depois, queixam-se de quê? De si mesmos? É por essas e por outras que sou de opinião, além do mais, de que o Presidente da CMP, Rui Moreira, fez muito bem em não se demitir por causa da acusação criminal recente contra si. Deu uma lição de cidadania e, já agora, de Política, no melhor sentido da palavra.
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