Paolo Cognetti. Que coisa é essa, a montanha?

Paolo Cognetti. Que coisa é essa, a montanha?


No romance “As Oito Montanhas”, há uma mestria indiscutível na apresentação de um ponto de vista a que se poderia chamar de “paternalismo arrogante”, uma ideia/convicção inquestionada de quem sabe o que é melhor para aquele rapaz e a certeza de que esse melhor é na cidade, na uniformização de uma dada civilização.


1. Há uma impenetrabilidade na montanha ("um limite invisível, um muro erigido apenas para ele, que lhe impedia o acesso ao resto do mundo", p.208) que jaz, apenas, às mãos singulares da amizade ("há muito tempo que não experimentava a liberdade e a alegria da exploração. Apeteceu-me deixar o carreiro, subir um declive e atingir um cume apenas pela curiosidade de descobrir o que lá havia e encontrar-me, sem ter previsto, numa aldeia que me agradava, passando uma tarde inteira nos charcos de um rio. Aquela era a forma de andar na montanha, para mim e para o Bruno. Pensei que, nos anos seguintes, seria a minha maneira de conservar o nosso segredo", p.222). A montanha é, neste caso, tanto um lugar claramente tangível (os vales, os alpes, os caminhos íngremes, as neves, o pastoreio, as vacas, o leite, as queijarias, as padarias, o isolamento), como um lugar mítico (a montanha como que o lugar da utopia, uma certa ‘ideologia da montanha’ ("e Lara [a mulher de Bruno], a certa altura, compreendera que quer ela, quer Anita [a filha], quer aquilo em que tinha acreditado construir com ele lá em cima eram muito menos importantes para o Bruno do que a sua montanha, significasse isso o que significasse realmente", p.211). Pietro, citadino, de Milão fora com o pai, nas férias, para Grana, na montanha, e acabaria por estabelecer uma relação de amizade com o montanhês Bruno, o último resistente do espécime, em aldeias abandonadas e em uma pastorícia que já ninguém, daquela idade, praticava. A desertificação do mundo rural cantada, também, em italiano (um único rapaz, numa aldeia de 14 pessoas, em 1984). A amizade percorreria trinta anos (p.220), ao longo dos quais descobrimos metamorfoses e perenidades.

2. A mãe de Pietro (ou Beria, como lhe virá a chamar Bruno) é uma antiga enfermeira, depois assistente sanitária, com fortes preocupações sociais e talento para a amizade, um espírito liberal apaziguador em casa, reformista na rua. O pai, nascido em 1942 (p.130), gostava de estudar e estava sempre disposto ao trabalho em uma busca gregária e de uma família adoptiva (p.131). Morreria aos 62 anos quando Pietro tem 31 (p.95), é engenheiro químico ("mais do que pelos seres humanos era atraído pela matéria do mundo e descobrir como era feito (…) era dessa forma que me recordava dele, fascinado por cada grão de areia e cristal de gelo e completamente indiferente às pessoas", p.132), órfão de guerra – uma situação que, então, ninguém estranhava, nem impressionava quem quer que fosse: "era um caso bastante frequente no pós-guerra, assim como era frequente receber em casa o filho de qualquer outra pessoa, talvez um parente morto ou emigrado sabe-se lá para onde" (p.131) -, foi militar em 1967 (p.132). 

3. A narrativa principia em 1972. Milão, cidade moderna, está acotovelada de um barulho ensurdecedor, há trânsito, e uma irascibilidade sem diques: "certas noites, o meu pai não aguentava mais, levantava-se da cama, escancarava a janela como se quisesse insultar a cidade, intimá-la ao silêncio, ou despejar-lhe em cima alcatrão a ferver; ficava ali um minuto a olhar para baixo, depois vestia o casaco e saía para andar a pé" (p.13). De resto, "durante o jantar via o telejornal em silêncio, ficando com os talheres no ar, como se esperasse, de um momento para o outro, o deflagrar de outra guerra mundial, e praguejava para si ao anúncio de cada morto assassinado, cada crise de governo, cada aumento dos preços do petróleo, cada bomba de origem desconhecida. Com os poucos colegas que convidava lá para casa quase só discutia política e acabava sempre por brigar. Era anticomunista com os comunistas, radical com os católicos, livre-pensador com quem pretendesse enquadrá-lo numa igreja, numa sigla de partido; mas aqueles não eram tempos para escapar às arregimentações e passado pouco tempo os colegas do meu pai deixaram de ir lá a casa. Ele, pelo contrário, continuou a ir para a fábrica todas as manhãs como se tivesse de se meter numa trincheira. E a não dormir à noite, a apertar as coisas com demasiada força, a usar tampões para os ouvidos e comprimidos para as dores de cabeça, a explodir em violentos ataques de cólera: entrava então em acção a minha mãe que, entre os deveres de casal, assumira também o de o amansar, amortecer os choques entre o meu pai e o mundo" (p.14). A montanha era um refúgio. Sobretudo, se se traz um segredo, uma angústia colada ao peito, uma acusação, uma morte, um suceder que nunca se ultrapassa: o pai de Pietro era o melhor amigo do irmão – tio de Pietro, portanto – da sua futura esposa e, numa ida para a montanha – no que podemos ver desenhado um jogo ambíguo sobre o significado desta, entra a pureza, o lugar óptimo, mas também o "fascinante e tremendo" (a formulação deliberadamente em tom religioso, com que Cognetti pega em Otto, para falar da montanha), com o seu legado mais implacável – este seu amigo, numa garganta de Sassolungo, perde a vida, com uma avalanche de neve (p.135). A raiva do seu futuro sogro seria irreparável (p.135). A mãe de Pietro, que observa ao de longe a tragédia, considera injusta a culpabilização do futuro marido. Aproxima-se deste e, após um ano de namoro, casam. Casam na montanha, sozinhos, dado que a família dela rejeitara os convites. A montanha é, assim e aqui, o lugar de todas as estações.
Da pena de Cognetti, o olhar íntimo sobre a vida familiar, com suas subtilezas, não ditos, sinais, gestos, jogos de código: "nos últimos tempos tinha-me metido num canto de onde observava a nossa vida familiar com um olhar impiedoso. Os hábitos imutáveis dos meus pais, as inócuas fúrias do meu pai e os truques com que a minha mãe as tratava, as pequenas prepotências e os subterfúgios a que nunca se lembravam de recorrer. Ele emotivo, autoritário, impaciente; ela forte, serena e conservadora. A forma tranquila de fazer sempre a mesma parte sabendo que o outro fará a sua; as discussões deles não eram verdadeiras discussões mas sim troca de palavras das quais previa sempre o final, e eu acabava também por estar fechado naquela gaiola. Sentira urgência em fugir dali" (p.78).

 4. Apercebendo-se, desde cedo, da realidade, do abandono que aquele rapaz, Bruno, que o filho acabara de conhecer, da sua fraca escolarização, do seu parco futuro visto (ainda assim) de Milão, a mãe de Pietro, na sua mansidão e liberalidade, na sua certeza e na sua firmeza, avança para a "adopção" (daquele), quer dizer, dispõe-se – e tudo resolve nesse sentido – a levar o rapaz para Milão, a alimentá-lo, a fazê-lo estudar. Numa palavra, a “civilizá-lo”. Há, aqui, uma mestria indiscutível na apresentação de um ponto de vista a que se poderia chamar de "paternalismo arrogante", uma ideia/convicção inquestionada de quem sabe o que é melhor para aquele rapaz e a certeza de que esse melhor é na cidade, na uniformização de uma dada civilização. Quer dizer, a ida à montanha é muito bonita, mas não é vida para ninguém; para se ser alguém, há que sair da montanha, estudar, civilizar-se. Afinal, há gosto pela montanha? A montanha é compreendida? É possível dizer-se que a montanha foi percebida, quando os óculos que a veem são, manifestamente, citadinos? Não há espaço para configurar a existência fora do padrão "habitual"? Pietro questiona-se: "que mal achavam em deixá-lo levar a pastar as vacas o resto da vida?" (p.70). Pietro surge, aqui, aparentemente, como aquele que consegue, em última instância, sintonizar-se, verdadeiramente, com o espírito da montanha ("eu, que sabia como era [Milão], não precisava de imaginar nada para me revoltar contra a ideia. O Bruno iria odiar Milão e Milão iria estragar o Bruno, como quando a tia o lavava e vestia e o mandava para nossa casa a fim de aprender os verbos", p.70), se bem que outros pudessem pressentir, em tais alegações, aquela vontade de manter intacto o espécime derradeiro de um mundo outro, à laia de uma curiosidade antropológica (e, todavia, a amizade de Beria com Bruno desmente essa hipótese). O certo, também, é que nesta altura Bruno está disposto – e quer mesmo – seguir viagem para Milão – e, seja como for, sempre agradecerá à mãe de Pietro os esforços que por ele fez (para o ensinar, para o ajudar a ter "sucesso" na vida; sendo que aqui a pergunta, evidentemente, é: o que é ter sucesso na vida?).
Em algumas das páginas mais impressivas de toda a narrativa, a montanha, personificada no familiar de Bruno, como que se manifesta com toda a sua violência e brutalidade, repelindo os bons sentimentos de quem lhe queria indicar/ditar o caminho. O pai – "um citadino instruído, seguro de si, habituado a dizer aos outros o que havia a fazer, que apenas tinha queimado as barrigas das pernas no gelo e procurava raciocinar com um alpinista bêbado", p.75 – é agarrado pelos colarinhos. Depois, o homem que veio à casa de montanha dos pais de Pietro "sem pré-aviso, baixou a mão direita, fechou o punho e bateu no meu pai à altura da têmpora. Era a primeira vez na vida que via um soco verdadeiro. O ruído dos nós dos dedos na maçã do rosto chegou até dentro da casa de banho, seco como se fosse em madeira. O meu pai deu dois passos atrás, cambaleou, conseguiu não cair no chão. Mas logo a seguir foram os braços que tombaram ao longo do corpo e os ombros que se curvavam um pouco. Eram as costas de um homem muito triste. O outro disse-lhe ainda uma coisa antes de se ir embora, uma ameaça ou uma promessa, e não me surpreendeu depois vê-lo dirigir-se para a casa dos Guglielmina. Durante aquele breve recontro compreendera quem era.
Voltara para reclamar o que era seu. Não sabia que se encontrara com a pessoa errada. Mas, no fundo, isso não mudava nada: aquele soco foi dado na cara do meu pai para que ficasse bem claro na cabeça da minha mãe. Foi a irrupção da realidade no seu idealismo e talvez também na sua arrogância. No dia seguinte, Bruno e o pai desapareceram de circulação; o olho esquerdo do meu pai ficou inchado e roxo. Mas não creio que aquilo que o magoasse mais quando, à noite, entrou no carro e partiu para Milão" (pp.73-74).
Nem um angelical mundo rural, apenas pacífico, submisso e esperando ser salvo pela cidade – violento, bárbaro, intransponível, de personalidade vincada, afinal também; nem um espírito liberal, de bons sentimentos, de quem sabe o melhor para o mundo, citadino e instruído: o constructo de Cognetti obriga a uma outra demora, convida a algum cepticismo, a questionar convicções absolutizadas.

5. Um outro traço que passa pelo âmago de “As oito montanhas” é a reflexão acerca da identidade pessoal, no que esta tem, ao longo de uma inteira vida, de continuidade e rutura, do mesmo e do diferente, do ser e não ser, do misterioso e do revelado. Pietro fala, assim, do companheiro de peregrinações pela montanha, do amigo montanhês: "Bruno veio ver-me de manhã cedo. Era um homem que eu já não conhecia mas que algures encerrava um rapazinho que eu conhecia bem" (p.104).  Com o passar dos anos, seja na introspecção, seja no olhar sobre os demais, Pietro descobre outros nos mesmos: "Não sabia se devia acreditar porque entretanto eu mudara. Pode mesmo parecer-te completamente diferente, como adulto, um lugar que amavas em rapazinho, e revelar-se uma desilusão; ou então pode recordar-te aquilo que já não és e causar-te uma profunda tristeza" (p.100). Sobre o pai: "em parte era o homem que conhecia, e em parte era outro, o que descobria nas cartas da minha mãe. O outro provocava-me curiosidade" (p.97); "e sabia de uma vez por todas ter tido dois pais: o primeiro era o estranho com quem vivera durante vinte anos, na cidade, e cortara relações durante outros dez; o segundo era o pai de montanha, aquele que apenas entrevira e no entanto conhecera melhor, o homem que caminhava atrás de mim pelos carreiros, o amante dos glaciares" (p.136).

6. O binómio, a antinomia mesmo, cidade-campo surge, amiudadamente, ao longo da narrativa. Quase sempre, num desenho que releva da crítica à cidade e do elogio à montanha. Todavia, esta tese, que poderá passar por uma espécie de exposição de um posicionamento mais mainstream sobre o tópico – em todo o caso, se assim é, se a montanha é sonho e a cidade pesadelo, porquê as migrações para as cidades, onde vivem já mais de metade dos habitantes da Terra, cada vez mais maciças? A explicação económica, monocausal, chega? Um paraíso perdido, a nostalgia do absoluto? A impossibilidade de viver no paraíso, mesmo que com má consciência do seu abandono? -, como se vem de observar, é completada pelos perigos que a montanha encerra (o tio de Pietro que morre na avalanche), a brutalidade do mundo rural (personificado no pai de Bruno e na sua violência sobre o pai de Pietro), ou mesmo a debacle de um projeto idílico, mas pouco sustentado como o casamento de Bruno e Lara – que não resiste à falência material, a montanha como lugar imaginário e utópico, para além de físico, na cabeça de Bruno, que rejeita o demais para se aferrar a ele. 
Mas a elaboração da dita antítese é, com efeito, realizada desde as páginas iniciais do romance: "depois, em alguns raros dias de vento, no outono ou na primavera, ao fundo das avenidas de Milão surgiam as montanhas (…) Eram os cumes brancos, o céu insolitamente azul, uma sensação de milagre. Cá em baixo, à nossa volta, ficavam as fábricas amontoadas, as casas dos pobres superlotadas, os confrontos de rua, as crianças maltratadas, as raparigas já mães: lá em cima, a neve" (p.16); "sentia-o alegre e loquaz, completamente o oposto do pai da cidade a que estava habituado. Ficava contente por me mostrar o mapa e me ensinar como se lia" (p.18)
O paralelismo cidade/campo [montanha, mais concretamente] passa, igualmente, pela comparação que o narrador – Pietro fala na primeira pessoa ao longo de toda a viagem que a obra encerra – produz entre ele mesmo e Bruno – de resto, uma medição, dir-se-ia, invariavelmente favorável a este último. Por exemplo, o tópico idealismo vs realismo, ou abstracto vs concreto, ou, ainda, saber livresco vs saber empírico: "O bosque estava cheio destas escavações, montes, destroços, que Bruno traduzia para mim como os sinais de uma língua morta. E juntamente com aqueles sinais ensinava-me um dialecto que achava mais correcto do que o italiano, como se à língua abstracta dos livros, na montanha, eu devesse substituir a língua concreta das coisas, que tocávamos agora com a mão" (p.62); "E dizia: são vocês, da cidade, que lhe chamam natureza. É tão abstracta na vossa cabeça que até o nome é abstracto. Nós aqui dizemos bosque, pasto, rio, rocha, coisas que se podem apontar com o dedo. Coisas que se podem usar. Se não se podem usar, nem lhes damos nome porque não serve para nada" (p.158). Mas, igualmente, o separador sofisticado vs puro, artificial/manhoso vs verdadeiro, cobarde vs corajoso: "sabia que era perigoso e sabia também que estava a trair a confiança da minha mãe, porque não havia nada de sensato em metermo-nos naquelas armadilhas e, quando o fazia, um sentimento de culpa estragava-me todo o prazer. Teria gostado de ser como o Bruno e ter a coragem de me rebelar abertamente, aceitando o castigo de cabeça levantada. Eu, pelo contrário, desobedecia às escondidas, disfarçava e envergonhava-me" (p.63). Frágil/débil vs forte ("embora ele fosse muito mais carregado do que eu, era eu que tinha de parar todos os quartos de hora para recuperar o fôlego. Poisava a mochila e sentava-me no chão – tudo erros que o meu pai outrora me ensinara a não cometer – e ficávamos ali em silêncio, evitando olhar um para o outro enquanto o meu coração acalmava", p.112). Inexperiência/experiência das lides da vida, amadorismo/profissionalismo: "eu estava a improvisar, ele não. Tinha programado cada fase, o meu trabalho e o seu, os tempos e as deslocações. Explicou-me onde preparar as coisas e o que deveria trazer-lhe no dia seguinte" (p.118). Bruno perde, de qualquer forma, na preparação académica, intelectual, no conhecimento das normas da civilização, na ausência de uma disciplina que lhe permita singrar na cidade: "víamos então ocorrer uma transformação no Bruno. Indisciplinado por natureza, adaptava-se às regras e aos rituais da nossa família (…) Assim, Bruno fez o sexto, o sétimo e o oitavo, passando no exame com a classificação de discreto [entre Bom e Suficiente]" (p.65). 
Na ambiguidade que cada característica (que possuímos) pode conter, a pureza de Bruno transmuta-se ou pode ser lida, a certa altura da sua vida, como uma perigosa ingenuidade, puerilidade, tacanhez, provincianismo, falta de mundo, ausência de preparação fundamental para enfrentar os desafios: "agora [Lara] estava a falar de Bruno. Quando entrámos no tema foi dura com ele. Dois ou três anos antes, disse-me, quando era evidente que a empresa não se aguentava, ainda poderiam ter encontrado soluções. Vender as vacas, alugar os alpes, procurarem ambos trabalho na aldeia. Bruno teria arranjado logo, num estaleiro ou numa queijaria e até nas pistas de esqui. Lara podia ser empregada de balcão ou criada. Estava pronta para essa opção, pronta a fazer uma vida normal até que a situação melhorasse. Bruno, pelo contrário, não tinha querido saber de nada" (p.211).
Como bom amigo para com o amigo, o que, reitere-se, mais se pode notar é a admiração de Pietro para com Bruno, sendo a montanha pano de fundo de uma palavra de honra ancestral, de um homem à antiga:
"- O que não compreendi foi como estão as coisas entre vocês.
– Ah – disse. – Não estão. Há cerca de dois meses que não nos vemos.
– Discutiram?
– Não. Não há nada entre nós, fico contente se ficar contigo.
– Tens a certeza?
– Tenho. Não há nenhum problema.
– Então está bem.
Despediu-se e desejou-me boa viagem. Aí está um homem de outros tempos, pensei; quem mais teria pedido autorização para fazer o que era preciso fazer? Quando desliguei já sabia tudo o que iria acontecer a seguir. Estava contente por ele. E também estava contente por ela" (p.162). Bruno era o rapaz com modos de adulto, não mimado, iniciado ao álcool e à taberna bem cedo.

7. O período da adolescência, o forjar da personalidade do adulto que sai do casulo tem, igualmente, neste livro, um vivo testemunho. Pietro, temeroso, silencioso, dócil, cobarde decide-se, por fim, a desgostar a progenitura, que é o que acontece, ao fim e ao cabo, quando se escolhe, quando se experimenta a decisão livre. O dizer não, mesmo que acarretando a incompreensão, ou mágoa, paterna. O fazer-se à estrada de um caminho próprio. Não sem dor, mas ainda a tempo de se (re)descobrir, nos passos repetidos, inadvertidos, como que tatuados sem hipótese de remoção, que se dão/que dá emulando o progenitor. A descrição do (estádio) adolescente, desde logo, soa comum: "Nas suas [memórias], eu [adolescente] estava sempre calado. [A mãe] Lembrava-se de mim absorto no meu mundo, onde era impossível penetrar e do qual lhe dava raras referências. Estava contente por agora ter ocasião de recuperar" (p.121) 
E a descrição de uma vontade própria, de um choque, de um capricho talvez; de uma existência, porventura e em síntese, finalmente reclamada: "Para o meu pai, se eu estivesse calado significava que podia falar ele. Descontraiu a testa e disse: – Vamos tirar talvez algumas coisas. Ajudas-me, está bem?
– Não – respondi. -Não está nada bem.
– O que é que não está nada bem, a tenda?
– A tenda, o lago, tudo.
– Não me apetece. Não vou.
Não lhe podia ter dado um choque pior. Recusar-me a segui-lo para a montanha: era inevitável que acontecesse mais tarde ou mais cedo, já devia esperar. Mas de vez em quando penso que ele, não tendo tido um pai, não experimentara certas coisas, de forma que não estava preparado para as suportar. Ficou muito magoado. Teria podido fazer-me outras perguntas, talvez, e teria sido a boa ocasião para ouvir aquilo que eu tinha para dizer, mas era visível que não era capaz, ou não lhe parecia necessário, ou naquele momento sentia-se demasiado ofendido para pensar nisso. Deixou as mochilas, a tenda e os sacos-cama e desandou sozinho. Para mim, foi uma libertação" (p.79). O filho pródigo que ousa arriscar e sair, mais tarde, reconhecer-se-á filho, (re) descobrirá o pai (entretanto falecido), reconhecerá em si traços genéticos e psicológicos do progenitor. As memórias com este permitem-nos traçar também, com claros contornos, um arquétipo de pai: "quando perguntei ao meu pai, ele respondeu-me na sua forma enigmática: parecia sempre que não me podia dar a solução mas apenas alguns indícios, e que eu é que devia forçosamente alcançar sozinho a verdade" (p.42). Apesar do corte de relações, o pai continua a interessar-se e a preocupar-se, deveras, com o filho (p.97). Sabe as notícias pela sua intermediária favorita, a mulher – lugar de apaziguamento -, nunca dá o braço a torcer, o orgulho. No pai, a ansiedade, que era feitio, tornou-se doença (de resto, a doença de uma época).

8. Sobra, ademais, um retrato geracional, no romance de Cognetti, oferecido por Pietro: "os meus trinta e um anos pouco se assemelhavam aos seus [aos do pai]: eu não me tinha casado, não tinha entrado na fábrica, não tinha feito um filho, e a minha vida parecia-me metade de homem e metade de rapaz. Vivia sozinho num estúdio e tratava-se de um luxo que me era difícil manter. Teria gostado de ganhar a vida como documentarista, mas para pagar a renda aceitava trabalhos de todo o género. Também tinha emigrado mas herdara dos meus pais a ideia de que, numa certa altura da juventude, devemos dizer adeus ao lugar onde nascemos e crescemos e irmos tonar-nos grandes noutro lugar; assim, aos vinte e três anos, fora desmobilizado e partira para ir ter com uma rapariga a Turim. A história com ela não durara, mas com a cidade sim (…) Nessa época lia Hemingway, vagabundeava sem um tostão no bolso e procurava manter-me aberto aos encontros, às ofertas de trabalho e às possibilidades, com a montanha a servir de fundo à minha festa de mobilidade (…) O melhor para ele e para mim foi eu ter seguido o meu caminho, inventado uma vida diferente da sua noutro lugar; assim, uma vez distantes, nenhum dos dois fez mais nada para anular a distância" (pp.95-96)

9. A montanha pode ser um lugar político (p.158), representando uma fuga mundi que é crítica à cidade (p.119). Entre dois amigos, entre dois homens, há imensos não ditos (esses não ditos surgem entre Pietro e o pai, e entre Pietro e Bruno [máxime, p.91]). Os nossos amigos tornam-se próximos dos nossos pais, ou os nossos pais dos nossos amigos (a relação de proximidade, mesmo após o abandono de Pietro, entre o pai deste e Bruno, em Grana). Há um certo agnosticismo (aberto ao transcendente) do narrador, revelado no Nepal, para cujas montanhas migra também:
"- O que está escrito no pano? – perguntou.
– São orações que pedem sorte – disse. – Prosperidade. Paz. Harmonia.
– E tu acreditas nisso?
– Em quê, na sorte?
– Não, nas orações.
– Não sei. Mas põem-me de bom humor. Já é muito, não?
– Sim, tens razão" (p.193).

10. A montanha tem uma aura indiscutível, mas sobre ela desemboca, igualmente, uma retórica prolixa: "encontrava nelas algo de falso e sentimental, uma retórica da montanha que não correspondia à realidade. Se lá em cima era um paraíso, porque não ficávamos a viver ali? Porque levávamos connosco um amigo que ali nascera e crescera? E se a cidade nos fazia sentir mal, porque o obrigávamos a ir viver connosco?" (p.72). Só a amizade supera todo o palavreado – “Encontrariam Bruno com o degelo. Apareceria em qualquer desfiladeiro em pleno Verão e seriam os corvos os primeiros a descobri-lo. 
– Achas que era isso que ele queria? – perguntou-me Lara ao telefone.
– Não, não creio – menti.
– Tu conseguias compreendê-lo, não é verdade? Vocês dois entendiam-se!
– Acho que sim.
– É que algumas vezes parece-me que nem sequer o conheci.
E então, perguntou-me, quem o tinha conhecido na terra além de mim? E quem me tinha conhecido a mim para além do Bruno? Se era segredo para qualquer outra pessoa aquilo que nós tínhamos partilhado, o que restava agora que um dos dois já não existia?” – e a perda não tem remédio.