1. Em cerca de três semanas somámos a irresponsabilidade coletiva dos portugueses, as falhas graves do Governo de António Costa e uma oposição de direita moderada desaparecida (onde param os líderes do PSD e do CDS?), o que, globalmente, resultou num Estado incapaz de combater a pandemia, através de medidas profiláticas eficazes, lógicas e coerentes. Consequentemente, o milagre português foi substituído por um nacional-cataclismo. Apesar de estarmos a viver horrores, não era possível (por incompetências acumuladas) adiar as eleições presidenciais. Assim sendo, elas são um tema incontornável, como agora se diz nos comentários políticos. Há, portanto, que ponderar sobre o assunto, mesmo havendo um virtual vencedor. Seria lamentável termos, dia 24, uma abstenção superior a 70%, apesar de haver um potencial ainda mais catastrófico se se repetirem ajuntamentos semelhantes aos ocorridos no dia da votação antecipada. Essa foi uma operação que mostrou mais uma vez a total e absoluta impreparação do ministro Cabrita, do MAI e da Comissão Nacional de Eleições (CNE). Tamanha aglomeração de incompetência, irresponsabilidade e cabotinismo era impensável. Mas aconteceu e está para durar.
2. Analisados, entretanto, os discursos dos rivais de Marcelo, verifica-se que nenhum é realmente um pretendente a Presidente da República. Todos, com a pontual exceção de João Ferreira, falam de coisas que têm a ver com poderes de governação, e não com a função presidencial que, em Portugal, é sobretudo de árbitro, de decisor último em caso de impasse. O Presidente é também o zelador da Constituição, da equidade e da justiça, face às leis que lhe são submetidas para promulgar, vetar ou enviar para o Tribunal Constitucional. Além disso, é também, por definição, o grande detentor da palavra como arma política, de estímulo, de reprovação ou de apoio à população em momentos difíceis.
Como se tem visto, só mesmo o incumbente, ou seja, Marcelo Rebelo de Sousa, se tem colocado na postura institucional correspondente à função presidencial. Dadas as circunstâncias específicas de um mandato marcado pelos grandes incêndios e a pandemia, Marcelo tem tentado unir, conciliar e motivar a resiliência da população. Tem-se posto acima dos seus ideais específicos e procurado ser um pedagogo paternal – por vezes, reconheça-se, um tanto lamechas e pouco exigente com o Governo. Mas, contas feitas, tem sido essencial, sem deixar de ser totalmente quem é, mantendo até, impercetivelmente, certas facetas mais maquiavélicas que integram a sua personalidade e a política. Lá fora, tem sabido representar o país tão bem como os seus ilustres antecessores, o que nos dignifica. Outro faria certamente diferente. Mas era difícil fazer globalmente melhor.
Do lado dos outros candidatos ouviram-se até agora, com mais ou menos extremismos à esquerda e à direita, posições que têm a ver fundamentalmente com funções executivas de governação nacional ou de proximidade. Há cinco anos, quando Sampaio da Nóvoa se apresentou, houve efetivamente uma alternativa quanto ao exercício da função presidencial. Nóvoa não passou, mas tinha postura de Presidente e tinha preparação para tal. Agora, nenhum dos candidatos desafiantes tem as características mínimas exigidas. Marcelo corre sozinho. Os outros apenas usam a oportunidade para ganhar espaço. São estratégias legítimas, mas de oportunidade publicitária. Domingo só pode mesmo haver um vencedor: Marcelo, pois claro! Espera-se é que, a seguir, assuma uma postura mais exigente face ao Governo e aos restantes poderes (como a justiça), sem perder as suas características específicas.
3. Espiar jornalistas para detetar eventuais violações do segredo de justiça é próprio de ditaduras e de países em asfixia democrática. Os métodos usados ultimamente em Portugal por uma procuradora, com requisição de polícias a fazer de espiões, violações de sigilo bancário e sem validação por um juiz, são deploráveis, tanto mais que foram cobertos por parte da hierarquia. Há que investigar e punir abusos, sobretudo quando partem da procuradoria que, na prática, é a entidade com mais poderes de polícia que há em Portugal, excedendo tudo o que se vê em países democráticos. Mas não podemos simplificar as coisas, como se tudo fosse a preto e branco. Não deixa de ser verdade que há no jornalismo quem seja beneficiado noticiosamente por certas fugas cirúrgicas que nada têm a ver com investigação jornalística, aceitando plantar notícias em momentos que, objetivamente, prejudicam pessoas, nomeadamente políticos. São notórios casos que vêm a público em vésperas de eleições, ou porque são repescados ou porque aparece uma pequena diligência que gera um enorme estardalhaço noticioso. Nessas ocasiões faz-se muito barulho. De seguida, os assuntos entram em hibernação, até outro momento oportuno. Nas questões de violação do segredo de justiça não há santos e pecadores. Mas, obviamente, isso não legitima minimamente os métodos lamentáveis a que a procuradoria recorreu recentemente. Desta vez, há que investigar o investigador, o que é bem capaz de não dar em nada.
4. A nossa justiça está a braços com outro caso grave: a nomeação de José Guerra para a procuradoria europeia. Todos os dias se sabe mais qualquer coisa de um processo sinuoso e inquinado que responsabiliza a ministra Van Dunem e o Governo e põe em causa o nome de Portugal, numa altura em que António Costa lidera a UE. O tema está para ficar na agenda político-mediática europeia e é digno de ser comparado com o que se passa na Hungria. É uma situação deplorável. Assim como é deplorável que José Guerra não tenha a hombridade de desistir do cargo. Há cadeiras de sonho nas quais não podemos sentar-nos, em nome da dignidade pessoal. Ficava-lhe bem resignar, mesmo que se saiba que não foi ele quem colocou falsidades numa carta que acompanhava o seu currículo.
5. Não é hábito neste espaço responder às observações de leitores, sejam elas críticas ou elogiosas. Abre-se, no entanto, uma exceção a propósito de um reparo feito pela pessoa que se identifica como Vilardemacada quando verbera o facto de se ter escrito, na semana passada, que “até Tino de Rans tinha adiantado em outubro a hipótese de adiar as presidenciais”. Para o leitor, a palavra “até” colocada na frase é depreciativa. A intenção não era essa. Pelo contrário. A ideia era elogiar Tino de Rans ou Vitorino Silva por algo que só ele fez. Todavia, o leitor tem razão. Não voltará a acontecer.
Escreve à quarta-feira