Uma multidão furiosa, armada, ansiando recuperar o controlo do seu país, avançou contra os seus representantes eleitos, exigindo sangue. Estavam bem conscientes de que o mundo observava, mas “não recorreram a qualquer secretismo ou máscara, o que fizeram foi em plena luz do dia”, escreveu um repórter do Washington Post, surpreendido pela violência, apesar de não terem faltado avisos e ameaças. Os insurgentes, sujeitos a uma campanha de desinformação maciça nos meses antes das eleições de novembro, incentivados por senadores e congressistas, deixaram para trás um rasto de terror, mortos e feridos, enquanto a polícia assistia, impotente, ou se juntava aos amotinados.
Não, não se trata do assalto ao Capitólio por apoiantes do Presidente Donald Trump, mas do golpe de Wilmington, na Carolina do Norte, em 1898, que carrega a infame distinção de ser a única insurreição bem-sucedida nos Estados Unidos. Nesses anos sombrios, em que a promessa da Reconstrução após a Guerra Civil (1861-1865) se desfazia, o golpe de Wilmington, encabeçado por antigos oficiais confederados, marcou o regresso vingativo da supremacia branca ao poder indisputável no sul. E abriu o caminho à segregação das leis de Jim Crow.
Enquanto as imagens do assalto ao Capitólio davam a volta ao mundo, nos primeiros dias de 2021, eram os ecos de 1898 que David Zucchino ouvia na sua cabeça. “Especialmente quando vi alguns amotinados a abanar bandeiras confederadas dentro do Capitólio. Isso tem um significado enorme”, explicou ao i o jornalista do New York Times, premiado com um Pulitzer pela sua cobertura do Apartheid na África do Sul e autor do livro Wilmington’s Lie: The Murderous Coup Of 1898 And The Rise Of White Supremacy (Atlantic, 2020).
“O Capitólio é o assento de um Governo que sobreviveu à Guerra Civil. Abanar a bandeira confederada aí é um ato de traição, e uma lembrança aos americanos de como o seu Governo quase foi derrubado por supremacistas brancos na Guerra Civil”, salienta Zucchino. Trata-se da mesma bandeira que saiu do baú em 1898, quando milícias brancas e soldados abateram negros nas ruas de Wilmington, obrigando o presidente da Câmara, Silas Wright, um republicano que teve a temeridade de nomear uma mão cheia de dirigentes negros, a demitir-se debaixo da mira de espingardas, juntamente com o chefe da polícia e todo o conselho municipal.
Conspiração No séc. XIX, os papéis que agora associamos a republicanos e democratas invertiam-se. Os republicanos, que hoje não conseguem mais de 12% do voto negro, eram ainda o partido de Abraham Lincoln, do norte e da abolição da escravatura; os democratas, que viriam a eleger o primeiro Presidente negro, eram o partido do sul, dos antigos escravocratas e da supremacia branca.
Se hoje os republicanos veem a sua base eleitoral cada vez mais reduzida, com o crescimento da população latina e negra, algo de semelhante acontecia aos democratas da Carolina do Norte, em 1898, com cada mais negros a registarem-se para votar, apesar de todos os esforços para os intimidar. Até a população branca começara a desertar, em tempos de crise económica devido à quebra dos preços do algodão, formando o Partido Populista e sangrando os democratas. O cenário piorou nas eleições de 1890, quando populistas e republicanos se uniram numa aliança desconfortável, a que chamaram Partido Fusionista, roubando o senado estadual e o posto de Governador aos democratas – algo impensável no sul.
Nada simbolizava o triunfo fusionista como Wilmington, um “paraíso negro”, nas palavras desdenhosas de Alfred Moore Waddell, um antigo coronel confederado que prometeu “bloquear o Rio Cape Fear com carcaças”, semanas antes de liderar a turba amotinada no golpe, acabando nomeado presidente da Câmara.
Nesta cidade portuária, que recebera uma maré de antigos escravos à procura de emprego após a Guerra Civil, cultivara-se uma rara e próspera classe média negra, incluindo advogados, médicos e empresários. O nível de literacia era elevado para a época, alguns bairros nem sequer eram segregados, visitantes recordam que alguns negros tinham casas com cortinas de renda, carpetes, pianos e até empregados!
Havia um médico legista negro, bem como funcionários municipais, uns poucos vereadores – apesar dos negros serem a maioria da população, 56% – e mesmo uma dezena de polícias negros. Com instruções para não prenderem brancos, claro, não fosse ferir suscetibilidades.
“Para os brancos, era uma situação intolerável. Os grandes plantadores, advogados e mercadores que dominavam Wilmington desde a sua fundação, em 1739, perderam controlo da cidade”, descreve Zucchino no seu livro. Para os democratas, esse ressentimento seria uma arma de arremesso apontada aos fusionistas, à medida que se aproximavam as eleições intercalares de 1898.
Durante meses, astutos dirigentes democratas prepararam aquilo a que chamaram “campanha pela supremacia branca”, uma espécie de ofensiva em tenaz. Por um lado, recorria-se aos expedientes do costume, através das milícias democratas, os “Camisas Vermelhas”, que cavalgavam de noite pelos campos, invadindo casas, torturando, massacrando e intimidando negros a não votar. Por outro, recorria-se aos préstimos de diretores de jornais pró-democratas, que deram vasta cobertura a supostos crimes de negros, histórias sensacionalistas que apelavam aos receios dos populistas – muitos deles tão racistas como qualquer democrata – quanto ao perigo da “dominação negra”.
“Eles demonizaram o homem negro como não sendo inteligente o suficiente para votar, demasiado corrupto e incompetente para ter cargos públicos”, explica Zucchino. “Para os 25% dos homens brancos que não sabiam ler nem escrever, o principal jornal supremacista branco do estado contratou um cartoonista para desenhar homens negros como vampiros, bestas, bandidos e violadores”, salienta. “Isto teve um efeito incendiário em homens brancos com pouca educação, alguns dos quais foram incitados a espancar e chicotear homens negros aleatoriamente, para impedidos de se registar para votar”.
Orgulho ferido A origem de boa parte do ódio branco no sul pode ser traçada até um sentimento de masculinidade ferida, de perda de virilidade face a seus antigos servos que agora exigiam ser iguais. E nada, nada, era tão tabu como misturas interraciais, sobretudo a ideia de uma união entre um homem negro e uma pura mulher branca, southern belles, como lhes costumavam chamar. Daí que as histórias mais incendiárias na imprensa supremacistas fossem de “negros violadores”, uma suposta epidemia da qual não há qualquer evidência, mas que dava sempre uma excelente capa.
Normalmente, o rescaldo destes rumores eram linchamentos de negros em massa, aterrorizando toda a comunidade para proteger a honra das sulistas. “E se for necessário linchar para proteger a virtude, a posse mais valiosa de uma mulher, face a bestas vorazes – então eu digo linchem, um milhar de vezes por semana se for preciso!”, proclamou Rebecca Latimer Felton, uma influente ativista pelo sufrágio feminino, que não conseguia imaginar qualquer relação consensual entre uma branca e um negro.
O discurso, feito um ano antes da “campanha pela supremacia branca”, foi revisitado pelos jornais de Wilmington em agosto de 1898, para fúria de Alexander Manly, o corajoso diretor do Daily Record, o único jornal negro da cidade e um dos poucos da nação, que este montara juntando dinheiro a pintar casas. Manly, um mulato neto de um antigo governador da Carolina do Norte e de uma escrava, que se afirmava negro quando podia perfeitamente passar por branco, evitando tanta descriminação e sofrimento, ficou furioso com o discurso de Felton. Respondeu-lhe num editorial que selaria o destino do seu jornal, talvez da sua cidade.
“A nossa experiência entre brancos pobres no campo ensina-nos que mulheres dessa raça não são mais esquisitas quanto a encontros clandestinos com homens de cor do que homens brancos com mulheres de cor”, leu-se no Daily Record. “Encontros desse género continuam até que a mulher se aborrece ou a audácia do homem chama a atenção, e ele é linchado por violação”.
“Deixem que a virtude seja algo mais que uma desculpa para intimidar e torturar pessoas indefesas”, rematou Manly. “Digam aos vossos homens que não é pior um homem negro estar intimamente com uma mulher branca que um homem branco estar intimamente com uma mulher de cor”.
Foi a fagulha que acendeu o rastilho. O editorial foi imediatamente replicado em jornais supremacistas brancos, sob manchetes como “uma calúnia horrenda”. Manly perdeu a publicidade de negócios brancos, foi despejado pelo seu senhorio, ameaçado de morte dezenas de vezes. Mas o pior estava para vir. Após os democratas vencerem as eleições de 1898, graças a flagrante intimidação eleitoral, o editorial de Manly foi a desculpa do coronel Waddell para lançar os seus homens sobre a cidade.
Insurreição “Wilmington poderia estar a preparar-se para um cerco em vez de uma eleição. Os cidadãos estão a armados e não o escondem. Há uma metralhadora Gatling no arsenal local e diz-se, com boa autoridade, que duas mil espingardas Winchester estão a ser distribuídas entre residências privadas”, escreveu um repórter do Washington Post, enviado para a cidade na antecipação de uma “guerra racial”. Os líderes democratas, que já contavam derrubar o governo de Wilmington, organizaram as suas milícias como batalhões militares, com um tenente por cada bairro, um capitão por cada seis bairros e refúgios para onde esconder mulheres e crianças.
Perante o arsenal reunidos pelos Camisas Vermelhas – financiados por misteriosos empresários democratas, que davam pelo nome de Círculo dos Nove e Círculo dos Seis – republicanos, populistas e negros tentavam armar-se para se defender, mas foi-lhes negado fornecimento em todas as lojas da especialidade de Wilmington. Desesperados, mandaram um pedido de compra de algumas dezenas de pistolas e espingardas diretamente à sede da Winchester, em Nova Jersey. A empresa percebeu que o pedido vinha de negros e reenviou-o à imprensa supremacista branca, que correu a manchete: “Os negros de Wilmington estão a tentar comprar armas, mas o esquema obscuro foi descoberto”.
Há meses que os cidadãos brancos de Wilmington recebiam uma dieta regular de medo e ódio, com os jornais a avisar de um iminente ataque de negros durante as eleições. Que frequentemente as ruas se enchessem de Camisas Vermelhas, muitas vezes bêbedos, armados até aos dentes, intimidando negros, não era contraditório com a realidade alternativa em que viviam os democratas – só reforçava a noção de perigo negro à vista.
De certa forma, eram os delírios paranoicos de uma sociedade com a consciência pesada. Ocorrera algo semelhante seis décadas antes, quando um escravo pregador, Nat Turner, inspirado por visões de Deus, viu um eclipse como presságio de revolta, virando-se contra os seus donos e massacrando meia centena de brancos na Virgínia, perto da fronteira com a Carolina do Norte. “Políticos e jornais supremacistas brancos da Carolina do Norte disseram que um exército de escravos armados estava a marchar da Virgínia, através de Wilmington, para matar homens brancos e violar mulheres brancas. Isto era completamente falso. Nem um único branco foi morto ou ferido por negros na Carolina do Norte nesse período”, conta Zucchino.
“Mas os brancos da Carolina do Norte reuniram dezenas de escravos, espancaram-nos até obterem confissões falsas e lincharam-nos, normalmente em praças públicas. Em Wilmington, supremacistas brancos obrigaram vários escravos a confessar, lincharam-nos, cortaram-lhes a cabeça e espetaram-nas em estacas ao longo da estrada principal até Wilmington. Essa estrada foi chamada de ‘Niggerhead Road’ [ou estrada cabeça de preto] nos mapas da cidade até meados dos anos 1950”.
A mesma energia estava no ar em 1898. Após saírem os resultados das eleições, a 10 de novembro, com uma estrondosa e fraudulenta vitória democrata, foi ordenado que a população branca se juntasse no tribunal, onde o coronel Waddell leu uma “declaração da independência branca”, escrita pelos empresários do Círculo dos Nove.
Daí, marcharam contra a redação do Daily Record. Entretanto, já Manly fugira da cidade, durante a noite, graças a 25 dólares em moedas de ouro e a senha dos postos de controlo dos Camisas Vermelhas, que lhe foram oferecidas por um amigo branco. Suspeita-se que o amigo fosse o reverendo Robert Strange, o respeitado capelão da Divisão de Infantaria Ligeira de Wilmington, que guarnecia a cidade – uma posição que lhe poderia ter dado acesso à senha, estando os soldados sob firme controlo dos supremacistas. Já os soldados negros de Wilmington foram mantidos bem afastados da região, num quartel na Geórgia.
Mesmo sabendo que Manly fugira, os supremacistas não pouparam a sua redação improvisada, montada no Love and Charity Hall, que pertencia a uma irmandade fraternal, dedicada a apoiar negros pobres. Antes de se lançarem sobre os bairros negros, a pé ou agarrados a elétricos, disparando sobre casas, igrejas e escolas, os democratas amotinados posaram para uma fotografia à frente da redação incendiada, (ver foto acima), confiantes e orgulhosos como quem cumpriu com o seu dever. Mais de um 120 anos depois, outros amotinados fariam exatamente o mesmo no hemiciclo do congresso, com a diferença de que transmitiram as imagens em direto através das redes sociais.
O golpe rapidamente se transformou em massacre. Mulheres negras acorreram aos seus filhos e maridos, operários da Sprunt Cotton Compress, uma compressora de algodão que era o maior empregador da cidade, para os avisar que as suas casas estavam em perigo. Cada vez mais homens se afastavam das suas máquinas, nas docas, preocupados – enquanto uma turba de supremacistas se dirigia ao local, confiantes que o tão esperado ataque negros chegara. Abriram fogo com armamento pesado, deixando o chão coberto de cadáveres. Perseguiram os fugitivos aos gritos de “matem os pretos”, com o caos e o pânico a consumir toda a cidade.
Fake news antes das fake news O mais incrível é que a conspiração de 1898 funcionou. Muito antes de se falar em fake news, o golpe de Wilmington, onde foi expulsa boa parte da população negra, com centenas de mortes, foi pintado como um regresso à lei e ordem, após um suposto motim negro. E os supremacistas brancos conseguiram agarrar-se ao poder, perante o silêncio do Presidente, o republicano, William McKinley, ocupado com a Guerra Hispano-Americana e com uma rebelião nas Filipinas
“William McKinley e o Partido Republicano precisavam dos votos de sulistas brancos nas eleições de 1900, e não quis ofendê-los ou a políticos supremacistas brancos”, lembra Zucchino. “McKinley foi avisado várias vezes que os brancos prometiam abertamente derrubar o governo multirracial de Wilmington, negros e republicanos da Carolina do Norte imploraram-lhe que enviasse tropas para proteger os negros, mas ele nunca disse uma palavra publicamente sobre o golpe e o massacre. Ninguém foi alguma vez condenado por isso”.
Em Wilmington, como em boa parte do resto da Carolina do Norte, os negros foram eliminados como força política, impedindo qualquer esperança num futuro melhor. “Em 1896, havia 126 mil eleitores negros registados na Carolina do Norte. Em 1902, quatro anos depois do golpe, supremacistas brancos dizimaram esse grupo para 6100”, lembra Zucchino. “Cidadãos negros não votaram em números significativos até à passagem do Voting Rights Act, em 1965”, graças a uma campanha liderada por Martin Luther King, acrescenta o jornalista do New York Times.
Apesar do impacto tão duradouro do golpe de Wilmington, a história foi praticamente esquecida até muito recentemente. “Os supremacistas brancos responsáveis falsamente retrataram o golpe como a resposta por homens negros armados em Wilmington para matar homens brancos, violar mulheres brancas e tomar controlo da cidade”, explica Zucchino. “Mas depois dessa geração de homens morrer, o golpe foi escondido durante décadas – até ao seu 100º aniversário, em 1998. A maioria dos residentes da Carolina do Norte nunca tinham ouvido falar disso até ao meu livro ser publicado. E virtualmente ninguém fora dos EUA, exceto historiadores, ouviram falar do golpe”.
Numa altura em que se debate se a mais recente insurreição americana, no Capitólio, é o último espasmo de um movimento político moribundo, ou começo de um novo capitulo da política americana, relembrar a história de Wilmington pode dar-nos algumas pistas quanto ao futuro, argumenta o jornalista do New York Times.
“Ambas as insurreições foram incitadas por campanhas de desinformação cuidadosamente orquestradas. Trump disse aos amotinados do Capitólio que o ‘seu’ país foi roubando por pessoas negras, castanhas e imigrantes – as mesmas pessoas que disse terem cometido mais fraude eleitoral, ao visar distritos negros em cidades com grandes populações negras, como Filadélfia, Detrot e a Atlanta, apelidando-as de pântanos de fraude”, lembra Zucchino.
“O meu medo é que isto seja apenas o princípio de um movimento supremacista branco violento e armado, que continue a planear ataques e subversão muito depois de Trump sair do seu cargo. Trump irá, claro, provavelmente começar o seu canal de notícias de direita, para incitar estas pessoas a mais violência e anarquia, em rota para as presidenciais de 2024”, refere o jornalista. “A não ser que ele seja impeached e, como tal, impedido para sempre de concorrer à presidência”.