Domingo é dia de ir a votos. Não é rotina: é uma das maiores expressões democráticas poder participar como cidadãos numa escolha comunitária. O espetro e as circunstâncias podem não ser mobilizadores, mas saber que houve quem morresse para que tivéssemos essa oportunidade é razão maior para o pequeno esforço cívico de participar, qualquer que seja a expressão do voto, em sentido democrático.
As circunstâncias do tempo presente, com a crise pandémica, poderiam ser um poderoso exercício de pedagogia cívica das novas gerações sobre a importância da democracia, da cidadania, dos direitos, liberdades e garantias, mas também dos deveres. Em vez disso, a campanha eleitoral e o discurso político são expressões mal-enjorcadas da superficialidade vigente e do insulto gratuito.
Há gente a morrer porque há um vírus letal.
Há gente a sofrer porque há uma pandemia global e respostas similares em todo o mundo, ou falta delas, pelo acumular das trajetórias civilizacionais ou pela agilidade dos decisores.
O vírus mata, e muito! O vírus marca, e muito! A fragilidade das respostas em todo o lado determina o confinamento como medida de recurso para o achatamento dos contágios e na linha de morte, dos internamentos e dos cuidados intensivos.
Estamos limitados e devíamos respeitar as limitações, determinadas por uma maioria democrática e pelo funcionamento constitucional das instituições, concordemos ou não. Há razões objetivas para as limitações e houve deliberações constitucionais.
Agora imaginem os sedentos de ruturas do regime por troca por outros tempos que as limitações se deviam aos humores de um homem, ou no respeito pela igualdade de género, de uma mulher, à ideologia de uma clique ou uma outra latitude de arbítrio.
Não sais porque não. Não falas porque não. Não expressas o pensamento porque não. E se fizeres não podendo, levas. És preso, torturado e quiçá morto.
Não é conversa, foi realidade. É como o vírus. Não é conversa, é realidade e mata! Demais!
Uma coisa é não te sintonizares com os candidatos, outra é desperdiçares os mecanismos da participação representativa que outros conquistaram para ti.
Uma coisa é identificares várias anomalias do funcionamento do Estado de direito democrático nas práticas, nos protagonistas e nas opções políticas, outra é quereres uma implosão regressiva para modelos antidemocráticos.
Por exemplo, a sistemática violação do segredo de justiça, por conluio entre pilares da investigação judicial, da justiça e dos média, é uma miserável distorção do Estado de direito democrático. Sob a capa do direito à informação, a que acham que devemos aceder em detrimento de outros, alguns acham que podem violar o segredo de justiça, numa distorção social e constitucional em que os fins podem justificar todos os meios – aliás, na linha dos cibercriminosos. Num Estado de direito, os fins nunca podem justificar todos os meios. Se o funcionamento não é o adequado, muda-se o sistema. Não se introduzem distorções de geometria variável à medida dos protagonistas, das circunstâncias ou da alegada bondade do exercício de violação das regras existentes.
Em democracia há demasiados humores individuais, particulares ou parcelares a determinarem distorções do Estado de direito, mas o sistema e os cidadãos têm poderes para os contrariarem e pressionarem para a sua correção. Em ditadura, tudo é muito mais difícil porque o poder é acompanhado de uma bateria de vírus que impedem o pensamento, a expressão e a ação livres.
Em democracia, a liberdade também tem, por vezes, preços, mas, por regras, são dentro de linhas vermelhas. Já disse o que penso, aliás, digo-o sempre e já paguei por isso, pessoal e profissionalmente.
Domingo há eleições. Votarei pelo passado das conquistas democráticas e, apesar das falhas, dos avanços que registámos em décadas, pelo presente e pelo futuro. Afinal, há sempre três possibilidades de votação: numa candidatura, em branco ou nulo. Todas são expressões democráticas e todas têm leituras, embora nem todas sejam consequentes.
Domingo é dia de desconfinar o voto como uma das expressões da cidadania num Estado de direito democrático. Noutros regimes, em que os fins justificam todos os meios, já alguém tinha votado por nós, definido as regras porque tinha acordado maldisposto ou porque tinha decidido que só tínhamos deveres.
Há um défice crescente de senso no funcionamento, nas opções e nos protagonistas. Não se resolve numas eleições, mas pode ser que os sinais sirvam para alguma coisa. É votar.
NOTAS FINAIS
PORTA DOS FUNDOS. Pelas traseiras, é chegado o dia da saída de Trump e de um dos períodos mais negros da história dos Estados Unidos. Há muito que a América é mais do que a visão dos filmes, mas é preciso retomar equilíbrios e tirar ilações desta expressão distorcida do exercício do poder, com muitas sintonias com a realidade diversificada do país. São muitas realidades complexas a exigirem respostas que não podem ser simplificadas.
PORTA FECHADA. A histeria de informações em torno dos testes a Marcelo Rebelo de Sousa foi um miserável serviço de descredibilização do funcionamento dos mecanismos de despistagem. Menos efervescência, mesmo estando em causa um hipocondríaco, é dar menos espaço aos negacionistas e afins, que são parte do problema e dos incumprimentos.
PORTA ESCANCARADA. O sovietismo da proibição dos livros, desporto, têxteis e decoração nos hipermercados devia ser compensado com maior atenção ao desastre corrente da logística em boa parte das compras online. O consumidor não está no centro do sistema. O engodo é maior que a previsibilidade e a eficácia.
Escreve à segunda-feira