Lá iam os Doutores Palhaços, com a boa disposição e as brincadeiras que lhes são características, animar as crianças hospitalizadas. No entanto, a pandemia surgiu e tiveram de se adaptar à chamada nova normalidade. Nos hospitais onde as visitas presenciais não foram reiniciadas está a ser implementada uma alternativa: as visitas virtuais, por meio de videochamada, através das quais os autodenominados profissionais que não são terapeutas nem palhaços comuns podem continuar a desenvolver a sua arte e a levar alegria até quem mais precisa.
O novo projeto da Operação Nariz Vermelho permite aos Doutores Palhaços chegarem às crianças internadas em variados serviços pediátricos via internet. “Em março de 2020 lançámos a TV ONV (Operação Nariz Vermelho), o canal de YouTube em que publicávamos diariamente dois vídeos de três minutos realizados pelos palhaços dentro das suas próprias casas”, começou por explicar Fernando Escrich, de 52 anos, diretor artístico da ONV há quase três anos. Mas setembro chegou e, com o desconfinamento, a equipa pensou que pudesse regressar ao seu local de trabalho habitual.
“Conversámos com os profissionais de saúde e, infelizmente, percebemos que não poderíamos estar presencialmente nos 17 hospitais com os quais colaboramos”, avançou, esclarecendo que como os Doutores Palhaços já “fazem a paródia do médico, vestem-se com a bata branca e dizem que são doutores”, o novo formato da teleconsulta surgiu naturalmente. Assim, uma dupla de palhaços interage em tempo real com as crianças.
“Com a parceria de profissionais como os educadores ou os enfermeiros, que deslocam o tablet pelos corredores e quartos dos hospitais, o palhaço recorre à estrutura que já tem de lidar com os desafios o tempo inteiro e usar os obstáculos como recursos para serem mais resilientes e criativos”, explicou Escrich, não se esquecendo de mencionar que a iniciativa só funciona “graças à união do elenco da ONV, que dá respostas rápidas e cria com o máximo de qualidade”.
A deslocação eficaz e célere do dispositivo tecnológico é possível através de uma estrutura única. “O tablet é aplicado num suporte de soro. Tem rodinhas e torna-se uma espécie de robô que anda pelos corredores até chegar aos quartos” de, em média, seis a 15 crianças por dia. “É um número bastante bom para nós tendo em conta os constrangimentos provocados pelo coronavírus”, declarou, explicando que a dupla de Doutores Palhaços liga para os profissionais de saúde, existe um momento de transição em que lhes são fornecidos os nomes das crianças, assim como o seu estado de saúde, e posteriormente inicia-se um atendimento em grupo ou individual.
A generosidade como força motriz “Foi uma surpresa termos conseguido os parceiros. Quando decidimos fazer os atendimentos virtuais, no início pensámos fazê-los com os telemóveis dos artistas porque era desta forma que produzíamos os vídeos para o YouTube”, lembrou Escrich, justificando que “permanecer nesta forma caseira ia ao encontro da forma como todas as pessoas lidavam com a vida durante o primeiro confinamento”.
O projeto saiu do papel com o apoio de diversos parceiros. “Tudo conspirou a nosso favor e correu organicamente”, defendeu.
O impacto do mundo virtual Todas as duplas de Doutores Palhaços ficam fixas nos hospitais. “No fundo, existe um trio porque contamos com as pernas e os braços de quem está no hospital. E tem corrido lindamente porque as crianças que ficam praticamente residentes nos hospitais tinham saudades destas interações”, salientou Fernando Escrich, acrescentando que “este encontro toma conta de todo o ambiente do hospital porque todos os presentes acabam por participar na teleconsulta de uma forma mais ou menos ativa”.
“Em março achávamos que um palhaço não cabia num ecrã e, hoje em dia, vemos que até isso é possível”, explicou o homem que, durante mais de 20 anos, integrou a equipa do projeto-irmão da ONV, os Doutores da Alegria, no Brasil. “Estamos a aprender muito com isto e acho que, quando voltarmos às visitas presenciais, estaremos mais maduros”, afirmou, adiantando que o Palhaços na Linha funciona durante os períodos da manhã e da tarde, nos mesmos dias e horários.
Questionado sobre as diferenças existentes entre a interação presencial e a virtual, Escrich disse que, na semana passada, a equipa realizou uma reflexão sobre o trabalho que tem vindo a concretizar e chegou à conclusão de que “o ecrã possibilita que o encontro seja mágico porque os Doutores Palhaços podem voar, ficar em câmara lenta, fazer uma panóplia de peripécias que não são possíveis fisicamente”.
Aquilo que mais encanta o diretor artístico é “a preparação que os artistas fazem em casa, pois têm uma mesa com objetos e instrumentos musicais para as performances e conseguem ter o protagonismo”, mas optam por oferecê-lo às crianças. “Isso é extremamente importante porque percebem que têm o poder de conduzir os dois palhaços por onde quiserem, o que é muito saudável porque têm a perceção de que realmente controlam as suas vontades”, o que prova que “o palhaço está ali para redignificar aquele espaço, o hospital”.
“Temos alegria na nossa missão, e vivenciá-la partilhando-a com os pais e os profissionais de saúde que cuidam destas crianças muda completamente a comunicação, que fica muito mais positiva e à qual os meninos reagem muito melhor”, contou, não deixando de expor que também a comunicação interna da equipa melhorou substancialmente. “O palhaço tem de dedicar dois dias ao hospital e às quartas está em treino”, focando-se em áreas como a música ou o trabalho corporal, como fazia outrora. “Por isto mesmo fomos capazes de agir com celeridade, porque já estávamos a plantar uma semente de coerência, tendo o discurso alinhado e estando sempre em busca da excelência”, concluiu.
Como, por meio da avaliação da audiência dos vídeos do YouTube, a ONV percebeu que não atendia somente as crianças hospitalizadas, mas sim todas aquelas que descobriam o seu canal, atualmente, “os artistas estão apaixonados por aquilo que descobrem e comentam que não existe um limite para a sua atuação”. Deste modo, um dos objetivos definidos, a longo prazo, é o de manter a atividade presencial a par com a do universo digital. “São várias as possibilidades novas que se abrem com o conhecimento de tecnologias” por parte dos Doutores Palhaços, que almejam chegar, a título de exemplo, “a zonas do interior do país”. Até porque “para o palhaço nada é impossível desde que haja o encontro entre o olhar dele e o de uma criança”.