A novidade de Jesus Cristo, segundo Freitas do Amaral

A novidade de Jesus Cristo, segundo Freitas do Amaral


O político falecido em 2019 via na pregação de Cristo o fundamento da doutrina dos Direitos Humanos e atribuía-lhe, também, a ideia da separação entre o poder temporal e o poder espiritual.


Se, no último tomo das suas memórias políticas, Diogo Freitas do Amaral apresentara um rigoroso exame do seu percurso à luz das linhas mestras da Doutrina Social da Igreja (com que quis confrontar-se), o último livro que viria a escrever é um opúsculo intitulado As Ideias Políticas e Sociais de Jesus Cristo, publicado pela Bertrand já após a sua morte a 3 de outubro de 2019.

Para Freitas do Amaral, a afirmação de Jesus de Nazaré acerca do Juízo Final no Evangelho Segundo S. Mateus antecipa a expressão de S. Paulo, segundo a qual todo o poder vem de Deus, posição que significaria que os governantes seriam tributários daquele mesmo poder e que faria, pois, sentido obedecer-lhes – dada a fonte de que emanava o poder e porque toda a comunidade humana carece de cidadãos que exerçam o múnus dirigente; todo o poder vem de Deus, sim, mas “através do povo” acrescentaria Tomás de Aquino no século XIII. Três corolários resultarão daqui: a) a aceitação da distinção entre governantes e governados, com rejeição do anarquismo; b) a obediência às leis e decisões legítimas dos governantes (“a César o que é de César”); c) em especial, a condenação da fuga aos impostos.

Do princípio “A Deus o que é de Deus, e a César o que é de César”, estabelecia-se a regra da separação entre poder temporal e espiritual, entre a Igreja e o Estado. Se foram precisos séculos para a sua concretização, ela, efetivamente, é um património que remonta há 2000 anos e a Jesus de Nazaré, notava o político falecido em 2019: “Antes, ela nunca ocorrera a ninguém: os faraós egípcios, os reis da Pérsia e da Babilónia, bem como os primeiros imperadores romanos consideravam-se deuses, eles próprios; os gregos incluíam a religião entre as funções do Estado e na lista dos deveres do cidadão; e os hebreus consideravam-se o ‘povo eleito’, protegido e criado por Jahvé, de quem os reis eram meros delegados e executores. Só com Jesus Cristo foi proclamada a ideia de separação […] hoje consolidada nas democracias ocidentais”.

Finalmente, a noção de que a autoridade deve ser um serviço, e um serviço a todos os homens (em Marcos: “Quem de vós quiser ser grande, deve tornar-se o vosso servidor; e quem de vós quiser ser o primeiro, deverá tornar-se o servo de todos”. A S. Lucas devemos a regra geral da promoção de negociações diplomáticas antes de se abrirem hostilidades – uma perspetiva inédita, então, em termos históricos, segundo Freitas do Amaral. E, a concluir, uma nota sobre os direitos individuais, ou direitos, liberdades e garantias, ou direitos políticos, ou direitos do Homem, a que hoje chamamos Direitos Humanos. “Sabe-se que a proclamação expressa destes – com outras designações e nas suas diversas formulações – foi vários séculos posterior à pregação de Jesus Cristo. Mas esta sempre constituiu, como constitui ainda, o grande fundamento filosófico e teológico da doutrina dos Direitos Humanos. Porque a noção da dignidade essencial de cada ser humano, anterior e superior ao Estado, provém do ensinamento cristão de que todos os homens são filhos de Deus, e que este a todos, sem exceção, devota um amor infinito”.

Sobre o que há de novidade em Jesus Cristo, Diogo Freitas do Amaral cita a questão da nova prioridade aos pobres: “A atitude dos ricos e de alguns grupos intermédios perante os pobres era de menosprezo, indiferença ou mesmo prepotência, com base num complexo de superioridade (‘nós somos os melhores’) e também por medo, o temor de uma espécie de ‘revolta dos escravos’. Até ali, ninguém tinha mostrado – nos antigos impérios orientais, na Grécia ou em Roma – qualquer traço de apreço ou compaixão para com os pobres; nunca ninguém tinha lamentado a sua difícil condição; nunca ninguém prometera ao pobres um futuro melhor […]. Jesus Cristo fê-lo; foi o primeiro a fazê-lo”. Nesse contexto, e fazendo a ponte com o nosso tempo, Freitas do Amaral é claro: “é, pois, inteiramente compreensível – face aos Evangelhos – que o Estado tribute mais fortemente os ricos, e redistribua esse dinheiro pelos mais pobres, nomeadamente sob a forma de prestações de solidariedade social”.

Na summa deste breve ensaio, Freitas do Amaral deixa um repto a crentes e não crentes. Começa pelos primeiros, face aos quais, e de modo profético, adverte como um escândalo que não levem suficientemente a sério a Doutrina Social da Igreja, como se esta não passasse de bela poesia, simbólica, mas não imperativa. Aos não cristãos, que se interroguem como ao filho do carpinteiro foi possível erguer uma civilização – de onde lhe veio essa autoridade? “Para os cristãos do nosso tempo, é reconfortante verificar como são modernas e actuais as palavras de Jesus Cristo sobre a liberdade religiosa, o amor, a justiça social, etc. Ditas por qualquer outra pessoa, há dois mil anos, ainda hoje seriam com certeza entendidas, louvadas e postas em prática por muitos homens de boa vontade. Para quem acredita que elas são a ‘palavra de Deus’, isso dá-lhes uma força, um ânimo, uma vontade de cumprir, que assume uma natureza imperativa de nível supra-positivo. Ao mesmo tempo, para muitos não cristãos ou não crentes, Jesus Cristo continua a ser visto apenas como um homem, mas recolhe uma admiração enorme como profeta, como visionário, ou como fundador de uma civilização recheada de valores permanentes – apesar dos muitos erros cometidos em seu nome, ao longo dos séculos. Para esses que tanto o admiram, maior deve ser ainda o espanto pela figura humana de Jesus Cristo: como foi possível ao filho de um carpinteiro, que nasceu pobre e não fez estudos superiores, sem profissão e sem biblioteca (como notou Fernando Pessoa), numa região pouco desenvolvida, imaginar o que imaginou, falar como falou, impressionar como impressionou, e abrir um tão grande rasto de luz e de esperança, motivando tantos milhões de seguidores, ao longo de vinte séculos, enraizados nos quatro cantos do mundo?”, questionava.

“Que outro homem – filósofo, escritor ou político – deixou uma tal herança universal? Tantos milhares de belas igrejas, tantas pinturas e esculturas deslumbrantes, tantas músicas que nos transportam para o alto? Tantos milhões de actos anónimos de boa vontade, de caridade, de amor ao próximo? Tantas escolas, hospitais, misericórdias, creches, asilos, sopas dos pobres (e hoje, IPSS), geridos ou mantidos em funcionamento por cristãos e, mais recentemente, por não crentes? E tantos missionários espalhados por terras inóspitas, levados pela ideia da propagação da fé, mas cedo conscientes da necessidade de também realizarem tarefas humanas básicas e de lutarem pelos direitos dos indígenas, como fez o Padre António Vieira no Brasil? Para os não crentes fica a pergunta: como foi possível tudo isto sem uma fonte de inspiração sobrenatural? E como se explica que, passados dois mil anos, a mesma doutrina se tenha rejuvenescido, tornando-se fonte de modernidade? Para os crentes, fica o desafio: se Jesus Cristo era verdadeiramente filho de Deus, e nos deixou preceitos em nome do Pai, porque não nos orgulhamos mais da nossa doutrina, porque não a cumprimos integralmente, porque não damos as mãos para, com todos os nossos irmãos – crentes ou não crentes – construirmos um mundo melhor? Fazemos bem em deixar aos não crentes o monopólio da generosidade social que foi, primeiro que tudo, ensinada aos crentes por Jesus Cristo?

Para regressar ao catolicismo social apregoado por Leão XIII há mais de 120 anos, e enriquecido por vários Papas que lhe sucederam, só é preciso querer.”

“Nunca tinha havido um discurso tão forte” Diogo Freitas do Amaral nunca traduz “pobre em espírito” por humildes, por aqueles que não se bastam a si mesmos, como não autossuficientes; traduz, apenas, a expressão como significando “pobres”. Curiosidade: explica o Professor de Direito que até meados do século XX, os Evangelhos traduzidos para a língua portuguesa falavam em “pobres de espírito”. Mas como tal expressão, no nosso idioma, se prestava a leituras/traduções como “pouco inteligentes”, adotou-se a fórmula “pobres em espírito”.

E, quando ocupado com a parábola de um rei que resolveu acertar contas com os seus empregados e perdoou a dívida de um, após aceitar as suas explicações, mas vendo este, de seguida, fazer o inverso com um dos seus pequenos devedores (pedindo prisão por dívidas para aquele), o autor regista: “Daqui provém o trecho do Pai Nosso: ‘Perdoai-nos as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores’”.

Finalmente, e sobre o Sermão da Montanha, proferido no Lago de Tiberíades: “Temos de reconhecer – independentemente das opiniões filosóficas, metafísicas ou políticas de cada um – que nunca tinha havido até então, nem parece que tenha voltado a haver até hoje, um discurso tão forte sobre estes temas [paz, justiça, pobreza, mansidão], vindo de um pregador que não tinha, nem queria fundar, um movimento político ou social”.