Há livros que mal aparecem, tão cedo quanto caem nas mãos do leitor, merecem reedição. Não por esgotarem, ficando indisponíveis, mas por a sua concretização física ser manifestamente torpe, assim colidindo com o vigor das obras que nos é dado ler em tão detestáveis condições, num "fibroso molho de glândulas, tão frio e pouco desejável como o corpo de uma vítima de algum tipo de elefantíase ou degenerescência gordurosa" (H.D.).
A princípio é difícil ultrapassar o fraco objecto editorial: dois livros que se ligam num S, a contracapa de um servindo de capa ao outro, com duas lombadas desencontradas, o que produz tensão sobre o miolo de cada um num desses disparates formais que só podem resultar de uma idealização espúria; corpos que exprimem apenas um defeito, uma espécie de prepotência de quem consegue vir para a edição propor apêndices alheios, passando ao lado da distraída perfeição que o livro corporiza, e como contém em si um largo regime sucessório, depois de sucessivas pesquisas e ensaios, acabando por se tornar definitivamente rectangulares, e por dispensar certas ousadias que, se à primeira vista desafiam esse regime, logo perante ele se humilham. Isto é por demais evidente neste livro que são dois, como gémeos siameses a pedir que seja descosida a armação que coloca estes dois livros numa proximidade que, se se pretende cúmplice, acaba por gerar limitações e algum transtorno.
Duas gémeas gemas literárias que mereciam melhor sorte no aspecto como os reflexos que trocam e se espelham do lado físico. Tem havido, de resto, uma certa tendência entre nós para exigir deste objecto que faça cenas, se comporte de forma teatral, seja pelo gigantismo seja por formas mais ou menos dissimuladas de histeria, embirração, como se o problema que afecta hoje a edição fosse sobretudo formal e não de audácia expressiva no que toca a essa liberdade praticamente irrestrita posta ao nosso dispor por esta imagem de um infinito contido, de um objecto de extrema ductilidade, resistente, um prodígio de discrição, traficando os seus mistérios.
E talvez essa ânsia seja indicativa sobretudo de uma crise de ansiedade, de uma forma de menoridade dos editores que são, muitas vezes, os primeiros a desconfiar dos méritos desta tradição vastíssima e que, contra todos esses prognósticos ameaçadores, irá perseverar, precisamente por estar livre dessa aura de novidade tecnológica, dessa instabilidade que gera por si mesma um regime de obsolescência que fere quase tudo o que a nossa civilização tem produzido nas últimas décadas.
É em honra a esse "quinhão eterno", a das vozes como sangue de um organismo consumidor de épocas que o livro deve ser encarado como mais do que um suporte, uma espécie de disciplina, uma razão poderosa, lembrando ao homem que tudo quer extravasar o seu elemento, o seu invólucro mortal, transcender as suas circunstâncias com aquilo que em si canta ao que há de durável, a esses outros elementos que não se deixam extinguir.
É Colette Peignot quem nos fala de um sentido que se impõe como “contrapeso da morte, lacrado pela morte”. Num texto com o sugestivo título “O Sagrado”, sob o qual seriam coligidos postumamente os seus poemas, textos e fragmentos confiados a Georges Bataille e Michel Leiris, diz-nos: “Essa permanência da ameaça da morte é o inebriante absoluto que se apodera da vida, que a eleva acima de si mesma, que projecta para fora as minhas profundezas, como a erupção de um vulcão, a queda de um meteoro.”
Este é um livro pelo qual se dá a vida, nessa resolução que é em si mesma um combate a tudo, pelo desafio de uma urgência íntima que entende o próprio sentido das coisas como esse golpe em que um movimento universal se cumpre. Assim, o sagrado vence uma inanição que conta com esse registo em que somos seres desaparecidos em nós mesmos, lado a lado, fiando o vazio, e é atingido no contacto com uma ideia de infinito, e por meio de uma “fé que nos faz sentir prontos para morrer”. Este é um texto admirável, “uma meditação viva” que tem aquela condição de um jogo em que se força o balanço decisivo de quem somos, do que nos importa, e isto é alcançado por essa furtiva eloquência de encadeadas revelações que Colette aproxima da privacidade intensíssima que experimentamos enquanto crianças, afundados num território e numa digressão na qual não quereríamos ser surpreendidos “por nada deste mundo”. Nos momentos de mais febril graça, o mundo ou é um espaço liso de recreio ou torna-se um empecilho.
Laure é como se assina esta mulher que morrerá aos 35 anos, em novembro de 1938, no fosso entre guerras, tendo perdido o pai e os tios na Primeira, ficando à mercê de um cura que se serve dela sexualmente nesse escuro que tanto mais nos torce, isto do outro lado das virtudes tão insistentemente exibidas e que configuram a farsa degradante da vida em público desse género de homens.
A morte seria encarada não só como limite mas como uma espécie de destituição de si, e a poeta vê muito cedo essa forma de se ser desfeito, em que os amigos, aqueles que se apossam da memória, “não querendo perder um naco tão belo/ disputavam a carcaça”.
Este livro cose-se, como aquele que lhe dá as costas, como meio de instituir um exterior que irmana alguns numa luta, a qual lança desde logo aos cães certas identificações de género, insidiosos limites que sugerem como, de um dos lados da questão, toda a exposição equivale a um questionável despudor. “Embarcada para a morte”, esta é uma escrita da refutação dessas noções que embalam ou cerceiam o feminino. Nem para um lado nem para o outro se desenha esta “vitória alada”.
Continuamos a ouvir coisas muito boas das mulheres, da sua escrita, dos episódios de uma libertação. Não falta quem veja sinais animadores. Essa é a condição de um dano profundo, essa forma de despossessão da intimidade de alguém, atirada para uma condição mais genérica, para efeitos de representação. Como se a mulher não pudesse simplesmente ser um susto.
“Experimentei todas as contradições inerentes à minha natureza ao viver ‘para ser verdadeira’ – tudo aquilo que carregamos connosco ‘até ao fim’.” Nunca ninguém nos cuspiu em cima, e, enquanto homens, essas hábeis presunções são sempre tão bondosas. Não faltam hoje os que exercem esse papel de acolhimento, exaltando certos equilíbrios, como se fosse disso que se tratasse. De uma paridade na escrita, nas artes, nesse “8 infernal”.
A isso, estes escritos cuja profanidade nos devolve a um rigor hierático mais firme, poderão dizer algo como: “salto para fora de um círculo/ e volto a cair no outro/ fico como que estrangulada no meio”. E depois, uma notícia rasgada dos jornais: “Prisioneiro escapa-se ao saltar o muro no local onde deveria ser executado.”
Laure só com este se identificará, este esquivo criminoso, preso, não se sabe acusado do quê, nem interessa, se “arcanjo ou puta”. Pois o que mais fundo nos toca nestes escritos é “a vida nunca reconhecida”. Não venham cá com obras beneméritas, lembranças nem balanços justiceiros, a menos que seja para tornar claro uma coisa: que quem escreve se serve e, igualmente, furta a todos os papéis, porque o fundo que em si mesmo se vê afasta o mundo, e obriga alguns a exercer sobre si próprios a maior violência para que não persistam essas tentações redentoras ou inclusivas: “Tanto pecado para matar/ toda a pureza”, escreve Laure.
“Há olhares como o fundo do mar”, e este é um livro de quem se impôs a favor e contra, nessa simultaneidade necessária – “não posso impedir-me de viver”. Colette conheceu a errância mais apaixonada, a entrega absoluta, as crises nervosas e o desespero, de Paris a Leningrado ou Moscovo, passando por Berlim, amante deste, musa daquele, resgatando-se uma e outra vez, para cair de novo em enlaces com personagens mais coloridos ou duvidosos, tomando parte em tudo, nos círculos literários, mas isto num tempo em que estes desciam realmente ao inferno e a miséria dos seres mais desprotegidos, até se ligar a Bataille, com quem viverá os últimos dois anos, e em casa de quem acabará por sucumbir após quatro dias de agonia.
“Era na floresta/ o silêncio e o segredo/ de uma estrela raiando múltipla (…)” Eis uma poesia que produz verdadeiro desconcerto. Uma descoberta que não se acaba. Que a cada página se acha relentada, esbaforida, num ânimo que não acata nenhuma lei, uma inspiração arrancada a ferros dos sonhos, da infância, vizinha da letalidade. Visões sem cerimónias, nessa “incapacidade de pactuar com esse arranjo de mundo – o ruído, o poder, a glória… –, para se resguardar da falsidade do literário”, como nos diz o tradutor, André Tavares Marçal, numa sucinta mas muito esclarecedora nota final. E a tradução tem essa justeza de algo que permanece intacto, irredento… “Este ser sem nome/ renegado/ ora pelo dia ora pela noite/ nada pode contra ti/ e não se parece contigo/ acredita em mim”.
Os textos reunidos por Leiris e Bataille formam uma súmula daquilo que sobreviveu entre os manuscritos e notas de Laure, que terá submetido a obra a uma purga pelo fogo, sem ter depois tempo de criar ela mesma uma ordem, um fio. E, tendo cotejado as edições posteriores, Tavares Marçal não abandona as pequenas alterações pontuais feitas por Bataille, sobretudo, reconhecendo um cuidado que salvou uma obra que era conhecida de alguns dos amigos de Laure mas que não lhes foi confiada. Na nota da edição original, os organizadores exaltam “aquela que foi uma das existências mais veementes e atravessadas por conflitos que tiveram lugar”, uma personalidade “ávida de ternura e ávida de desastre, oscilando entre a audácia extrema e a mais horrível angústia, tão inconcebível à escala humana como um ser mítico, ela dilacerava-se no silvado em que se enleava até não ser mais do que uma ferida que não se deixa fechar por nada nem ninguém”.
Aquela edição surgiria alguns meses depois da morte de Colette, e destaca o mal que a perseguiu desde a infância, a insurreição contra o ambiente católico e burguês, a temporada passada na Rússia numa “entrega total ao comunismo de oposição”. “Perdida em si mesma, dizia-se ‘no fundo dos mundos’, e a expressão ‘tourada florida’ foi a que empregou para designar a sua agonia.”
Este é um livro que não merece dividir o seu corpo com nenhum outro e, contudo, não podemos deixar de reconhecer que a ousadia desta edição compartilhada de dois mundos invulgaríssimos não é um acto inconsciente, pelo contrário, está carregado de premeditação, e consegue mostrar-se ferino e pregnante, forçando o leitor a sentir o tremor de intuições e olhares que se cruzam, sombras que se adiantam. Uma espécie de lamento partilhado entre “sombras carnais”. E se isto é já por si um feito, acresce o facto de se tratarem de edições inesperadas, de achados fulgurantes que caracterizam o próprio espírito e vigor da edição independente, essa que, de algum modo, não apenas não se abate, mas tem-se renovado, com flechas que nos atingem desde ângulos que julgaríamos mortos, e estes “risos vingativos e salutares”, se não se identificam com o carácter da edição portuguesa, conferem-lhe esse apelo algo esquizofrénico, uma vida insuspeitada e que parece não poder ser impedida. “Aquilo que reconforta e alivia e cura é o amparo e a profunda esperança que nasce desse contacto”…
Assim, mesmo se a edição é bastante tosca, se se comporta nas mãos do leitor como uma obra desfeita ou informe, o conteúdo faz as reparações, lança o jogo, põe frases fortes em lábios amargos, traz a este tempo uma razão capaz de unir as suas incoerências, livrar-nos da maldição destas “mãos eternamente vazias” com o seu peso pluma, a estúpida capa dura de uns diários encontrados num mesmo ritmo sacudido, dotados de uma sabedoria pertinente: “fogo celeste/ pedaços de terra/ lava ardente/ gemas preciosas/ hão-de se cravar no vosso coração/ num caos sonoro, absurdo e brilhante”.
O que há em Laure de pulsante determinação, às vezes lasciva e até obscena, e mesmo no que há de malogrado nestes textos tão irregulares, em Hilda Doolittle, no livro com que aqui comparece – “Notas Sobre o Pensamento e a Visão”, a inquietação assume uma feição mais regular. Se a escrita da primeira se aproxima daquela forma de contemplação que abre margem à “decisão do crime”, se está ameaçada de paragem súbita a todo o momento, mesmo pela iminência do “parto do monstro”, o ensaio da segunda quase pode ler-se como um comentário ao encontro necessário, a essas relações que são essenciais ao desenvolvimento de certos talentos. “Rejeitar, negar e depreciar estas experiências é enterrar o talento cuidadosamente num guardanapo.”
H.D. elabora sobre um estado “além-mente” e que obriga a uma “passagem da consciência normal para a consciência anómala”, e assegura que “não existe um grande período artístico sem grandes amantes”. Talvez isso comece por explicar a afasia que caracteriza esta época, a qual se vê capturada na esterilidade mortificante do império do individualismo.
“Devemos estar ‘apaixonados’ antes de podermos entender os mistérios da visão.”
Retirem-se consequências de uma afirmação como esta, veja-se como entre esses “sonhadores vazios da língua com guizos”, nos nossos dias a poesia amorosa é apenas uma forma de reverência a modos antigos, como a própria expressão dos sentimentos não alcança essa perigosidade encantada, e como mesmo os poemas dedicados a um ele, a uma ela, partilham sobretudo uma afectividade que nada pode contra a desolação.
As almas estão de tal modo desgastadas, que se tornam sovinas, e não chegam propriamente a exprimir esse além que se abre para os amorosos. “As minhas pedras de toque não são as tuas, mas se eu desbravar o meu próprio caminho, isso poderá ajudar a dar-te confiança e encorajar-te para que saias do mundo velho, tenebroso, morto, mil vezes explorado, o mundo morto de ideias e emoções esgotadas”, escreve H.D., dirigindo-se ao leitor.
Para esta poeta não há propriamente como franquear esses mundos que os grandes artistas criam e que, por mais que a sua fama ganhe vida própria e se popularize, para a maioria não passa de um conjunto de indicações solenes para territórios que dificilmente penetrarão. Para isso, para se aceder a esse outro mundo, é preciso pelo menos “um breve rasgo de inteligência além-mente”.
A proposta de H.D. é claramente elitista e, por isso, cairá mal aos deste tempo, aqueles para quem um dos valores fundamentais da arte é essa forma de democratismo insípido que permite forjar comunidades que vão ao rubro pela partilha desse patetismo das emoções que nada exigem de nós. A própria ideia de progressismo degenerou nessa moda do pronto-a-vestir das almas, essas formas de sintonia e sincronização dos estados interiores de números crescentes de pessoas que gostam de se deixar condicionar e aderem ao “comunismo dos afectos” ou “às comunidades práticas de pregar com pregos as partes mais vulneráveis da matéria”.
“Diz-se que da Vinci enlouquecia se visse o rosto de um rapaz em Florença, ou um pássaro engaiolado, ou uma criança de cabelo ruço, o qual caísse ou se erguesse em espirais como as que tinha conhecido no ofício de ourives, aprendido com Verrochio. Da Vinci enlouquecia porque aquelas linhas no dorso do pássaro, o ombro do rapaz, ou o cabelo da criança actuavam directamente sobre ele como as linhas de uma estátua, trabalhadas como as do auriga, actuariam em nós se tivéssemos o tipo certo de cérebro receptor.”
A tese de H.D. diz também ela respeito a uma ideia de sagrado, e afasta-se de forma igualmente decidida da sensibilidade puritana que, nos nossos dias, está novamente em campo e a ganhar terreno, proibindo ou condenando isto e aquilo em nome dessas tão tristes formas de “andar por entre Deus ausente”. H.D. diz-nos que “a primeira etapa dos mistérios de Elêusis tinha que ver com sexo”, e logo atira esta ao leitor: “Se não te puderes entreter e ser instruído por Bocaccio, Rabelais, Montaigne, Sterne, Middleton, de Gourmont e de Régnier, há qualquer coisa de fisicamente errado contigo.
Se não consegues apreciar estes autores, não estás pronto para a primeira etapa da iniciação.”
Hoje, este grau de exigência seria tomado como um insulto pelos praticantes da religião do corpo, esses que têm o ginásio como templo, e que provavelmente ouvem até tambores nos momentos de intimidade, e praticam o acto sexual como quem marcha, e, ainda que separados, estão consumidos por uma espécie de histeria colectiva, trazem a competição para o quarto, são encenados, têm os seus estímulos agrilhoados a cenas de uma pornografia pobríssima.
Entre nós, quem já havia traçado esta ligação da cultura como um espectro mais vasto de olhares que se cruzam espelhando um tremendo vigor estético foi Herberto Helder, que identificava esta capacidade de um intelecto receptor sentir-se tomado de um gozo erótico com o ser versado no “ministério lírico”: “o ministério lírico, o mais grave e equívoco, o dom, não o tenho,/ espreito-o, leitor,/ por cima do ombro de outros,/ rítmico, manuscrito,/ porque sofro do erro,/ porque me não equilibro nas linhas,/ palavras sim insubstituíveis mas/ tão pouco sustentáveis,/ sei contudo de alguns dançando à beira do abismo,/ que tusa surreal/ ou fodem murcho? (…)”
Estas noções hierárquicas causam um certo terror num tempo que promove a todo o custo as equivalências, o nivelamento, a ideia de que, ao seu modo, pelo simples facto de termos nascido, há em nós algo que se afirma como uma identidade, uma existência e o seu gozo pleno. Em teoria, talvez. Mas, na prática, torna-se claro como a cultura que faz com que certos temperamentos dialoguem ao longo das eras, esse ministério lírico ou a poesia, sejam cada vez mais uma língua morta. Temos dificuldade em saber até a que sabe, ao que soa o idioma dos poemas, quando qualquer lixo sentimental tem pretensões a vingar no registo mais daninho nesses territórios desatendidos.
“Nenhum vento e o mar estirado como o pergaminho morto, rasgado pelos signos diabólicos – a escritura hebraica que ele morreria para esquecer – a língua, que ele morreria para esquecer – mas que, ao morrer, olvidaria essas outras – douradas – douradas de luz – palavras, poderosas, cada uma um feitiço conduzindo a um mundo de flores geladas.” Hilda retoma o ar cada vez mais fino dos mitos, fala-nos dos “deuses, igualmente mortos, de Gregos e Hebreus”. Fala-nos de um porco no degrau da porta: “Ele ignora a escritura, a não ser para virar com o focinho.”
Este ensaio chega a ser cruel nos nossos dias. Ao mesmo tempo que lança o vasto enredo das suas disposições, balança entre um certo simplismo truculento e belas imagens, acabando por defender uma ideia que não tem muito de original, mas que se esforça por pôr ordem, sistematizar um conjunto de noções mais ou menos vagas: a ideia de que “o mundo além-consciente é o mundo dos sonhos acordados, e o mundo em que entram os grandes amantes, amantes espirituais, mas apenas os melhores”.
H.D. está a pôr ordem nas suas próprias impressões e vinca: “Sei que isto já foi dito antes, mas falo por mim, da minha experiência pessoal.” Este é um testemunho estranho, escrito em 1919, num momento em que a poeta atravessava “um severo colapso psíquico”, segundo a nota introdutória de Albert Gelpi. Ela foi amada por Ezra Pound e esperou mais dele do que o ciclo de poemas que lhe dedicou, acabando por ser preterida. Também William Carlos Williams a viu a ser puxada por uma tempestade de contornos indecidíveis, abalada por êxtases, e se a sua vulnerabilidade a deixava à mercê de colapsos periódicos, Gelpi diz-nos que essa “susceptibilidade invulgar também tornava possível uma descoberta da consciência elevada”.
Em grande medida, este “caderno enigmático” surge, segundo Gelpi, da “necessidade de reconciliar a experiência agonizada de contradições”, e, tendo-se consultado com Freud sobre os seus sonhos, há aqui a tentação de seguir a sua análise de modo a montar um esquema minimamente sustentado do ponto de vista científico, mas H.D. não conseguia, ao mesmo tempo, impedir-se de derivar entre “explicações ocultistas em mitos, espiritualismo e cultos herméticos”.
Este ensaio é um incitante desastre que ocorre pela pressão excessiva das correntes, exercendo ao mesmo tempo fascínio e um poder desagregador sobre o intelecto. O que nele pretende construir uma teoria minimamente firme diz-nos mais sobre um desamparo de uma mente lúcida sacudida pela loucura de uma série de eventos que comporiam um melodrama se não fossem os factos de uma pesada biografia, como nos diz Gelpi. Este caderno é um plano de sobrevivência, a razão de que se serve o amante para não se desfazer entre o tumulto dos seus dias. E o mais notável, como é referido, é que, “em momentos como este, ela podia ser grega ou egípcia, pagã e galileia, o útero e a cabeça, o cardo e a serpente”.
E, voltando aos versos de Laure, aquilo a que esta invulgar edição nos expõe é a essa experiência limite desses que acabam arrastados para a fossa com os cumes, o seu idealismo, “os grandes sentimentos/ as paixões penosas”. E como a inteligência não facilita, antes precipita as coisas. Como os discursos estão errados, e como é suja a história que se conta às mulheres, pelo terror inigualável que persiste até aos nossos dias que, por fim, venha delas esse grito irreparável de libertinagem: “Senhoras e Senhores – caros amigos, vou desmascarar a virtude, o mérito, a decência, a cautela, o charme, a franqueza. A Franqueza – (ela mostra o cu).”
Eis, então, o grande interdito. Aquilo que ainda hoje não se pode escrever. A razão porque se dá palco a uns e umas, contando que não se oiça nada para além “da compunção dos fracos”, que ninguém dê importância quando “uma cadela cercada uiva à lua”, ficando claro como esse uivo é um desabar da realidade: “A granja toda degradada/ as suas vigas calcinadas/ as paredes remendadas/ desabam lentamente/ e desmoronam-se…/ Sob os olhos pasmados/ dos passantes/ aí se tocava/ a menina/ no feno”.