Por alturas do século II d. C., após quatrocentos anos em que moldou a nação chinesa, unificando dialectos e miscigenando grupos étnicos, a Dinastia Han entrou em decadência, que sucessivos desaires frente às invasões dos hunos da Mongólia e revoltas internas ajudavam a explicar. A prisão do Imperador levou a que o General Ts’ao Ts’ao, o mais prestigiado comandante chinês, tentasse salvar o que restava do Império. Assoberbado por múltiplas tarefas, Ts’ao Ts’ao descurou os abastecimentos ao exército e os atrasos provocaram a diminuição da ração alimentar, queixas e incitamentos à rebelião. Sabendo do mal-estar pelo seu serviço de informações, Ts’ao Ts’ao chamou o intendente-mor para muito delicadamente lhe pedir emprestado algo que não devia recusar: “Quero que me empreste a sua cabeça para a mostrar às tropas… é a única forma de evitar um motim… eu cuidarei da sua família e é o melhor para ela… se houver tumulto, você não será poupado, e não haverá ninguém que a proteja…
A exibição da cabeça do “culpado” tranquilizou as tropas, confortadas com a justiça do general.
Também por cá me parece que o primeiro-ministro vai pedindo emprestadas as cabeças dos seus oficiais, de forma a salvar a sua.
Pedido recente foi ao comandante da operação TAP, um dos seus mais indomáveis coroneis, aquele que até fazia tremer as pernas dos banqueiros alemães. O decorrer da campanha mostrava as fragilidades da expedição, ao ponto de o comandante pedir o conforto da câmara dos senadores para a estratégia definida. A negação do amparo pelo primeiro-ministro foi a boa ocasião para exibir a cabeça do coronel como a do único responsável de eventuais inêxitos, afastando assim os estilhaços que fatalmente sacrificariam a sua, culpado pela renacionalização da TAP e pela oferta ao accionista de referância da prenda de uma vida, um bónus de saída e dispensa do ónus da reestruturação.
Também a campanha do Novo Banco corria mal ao primeiro-ministro, marcada, primeiro, pelo vício original da sua anuência a um contrato que implicitamente convidava o comprador a desatender zelo e diligência na gestão, garantido que estava do ressarcimento dos prejuízos pelo Estado vendedor e, depois, pela proibição da entrega de mais fundos que compensassem essas perdas enquanto procedimentos adicionais não demonstrassem a sua justeza. Mas, porventura ocupado com cortes, retenções e transferências orçamentais, o major-general chefe do Tesouro esqueceu a palavra do primeiro-ministro e, cumprindo a letra do contrato, entregou ao Banco os grossos cabedais nele estipulados. Ocasião de ouro para o primeiro-ministro alijar as suas próprias responsabilidades, convocando, numa noite quente de Maio, o major-general para cerimónia solene de empréstimo da cabeça no pelourinho da residência oficial, empréstimo simbólico, mas condenação pública bem real.
Também, na sequência dos incêndios de 2017, a então oficial chefe da Administração Interna teve que emprestar a cabeça, tornada responsável pelo desaparecimento do Estado durante horas no interior do país. E a cabeça também teve que emprestar o oficial supervisor das Forças Armadas, no caso do desvio das armas de Tancos.
Descendo na hierarquia, coube à capitão do SEF e, agora mesmo, ao da Justiça, emprestar a cabeça para salvar as dos coroneis seus comandantes, um assolado pelo clamor público de prática de tortura até à morte em estabelecimento que tutelava e outra por justificação falsa como suporte de nomeação internacional.
Ts’ao Ts’ao reconheceu responsabilidade própria ao pedir de empréstimo a cabeça do intendente, em vez de pura e simplesmente a fazer rolar.
Por cá, será certamente generosidade extrema pensar que se trata de empréstimo e não apenas de um rolar de cabeças para deixar bem inocentada a do chefe. É que, sobretudo em tempos de decadência, é a cabeça dos outros que dá serventia ao resgate de culpas próprias.
Economista e Gestor
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
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