Invasão “orquestrada” por Trump culmina em derrota em toda a linha

Invasão “orquestrada” por Trump culmina em derrota em toda a linha


Após o cerco, o Congresso voltou ao trabalho para formalizar a vitória de Joe Biden, enquanto os republicanos perdiam a maioria no Senado.


O abismo político que separa uma metade dos Estados Unidos da outra tomou forma esta quarta-feira, quando apoiantes do Presidente Donald Trump tomaram de assalto o Capitólio, a meio da contagem de votos do colégio eleitoral, resultando em pelo menos quatro mortos e 14 agentes de segurança feridos, segundo as autoridades. Se os manifestantes esperavam algum triunfo, uma espécie de golpe de Estado improvisado, acabaram derrotados em toda a linha. Durante a noite foi formalizada a vitória de Joe Biden e vários lealistas de Trump desistiram das suas alegações de fraude eleitoral não fundamentadas face à violência, enquanto a Geórgia elegia dois senadores democratas, tirando o controlo do Senado aos republicanos.

As consequências para Donald Trump podem ir muito para lá da mera perda de influência política. O próprio William Barr, procurador-geral dos EUA até há umas semanas atrás, acusou o Presidente de “orquestrar” a invasão – que obrigou senadores, congressistas e funcionários aterrorizados a refugiarem-se numa base militar – “para pressionar o Congresso”, declarou à Associated Press.

Para já, enquanto Presidente, Trump tem imunidade face à justiça, mas isso não durará muito tempo. No melhor dos casos, dura até 20 de janeiro, quando Biden toma posse, mas fala-se em retirar Trump do cargo, recorrendo à 25.a emenda, que permite afastar um Presidente errático ou incapacitado.

“O que se passou ontem no Capitólio foi uma insurreição contra os Estados Unidos, incitada pelo Presidente”, declarou esta quinta-feira o líder dos democratas no Senado, Chuck Schumer. “Este Presidente não deveria manter o seu cargo nem mais um dia”, prometeu, Schumer comanda agora uma maioria, mas não deverá ter tempo para a usar num julgamento de impeachment a Trump.

Ao lado de Schumer, a exigir o uso da 25.a emenda estão até senadores e congressistas republicados, que durante tanto tempo apoiaram Trump, salvando-o do impeachment no final de 2019. “Temos um Presidente que parece desligado da realidade”, admitiu o congressista republicano Adam Kinzinger, em declarações à CNN, apelando também ao uso da 25.a emenda. “É a coisa certa a fazer pela nossa democracia”.

O uso da 25.a emenda requeria o apoio do gabinete de Trump, bem como a assinatura do seu vice-presidente, Mike Pence, que ficaria brevemente a cargo do Executivo. Há uns dias, seria impensável que Pence tivesse outra resposta que não um rotundo não, receoso de perder o apoio dos fiéis de Trump e minando uma eventual corrida à Casa Branca em 2024.

Contudo, desde quarta-feira que o vice-presidente é persona non grata para Trump, quando ficou claro que não perturbaria a contagem dos votos. Mal o Presidente derrotado tweetou que Pence “não teve a coragem de fazer o que deveria ter sido feito”, em plena invasão do Capitólio começaram a surgir apelos online aos seus apoiantes dentro do edifício para que caçassem o vice-presidente, avançou o New York Times.

Trump não contribuiu para alterar a noção de que, de alguma forma, o ataque ao Capitólio teria a sua aprovação. Só condenou o sucedido mais de hora e meia após o começo da invasão, depois de arranjar tempo para criticar Pence, apelando aos seus apoiantes que se “mantivessem pacíficos”. Enquanto isso, estes agrediam agentes, roubavam ou quebravam o que encontravam nas paredes, arrombavam portas, vasculhavam escritórios e deixavam para trás dois artefactos explosivos caseiros, que foram encontrados e detonados de forma segura pelas autoridades, segundo a CNN.

O Presidente não resistiu a reiterar as suas alegações de fraude, referindo-se à turba como “pessoas muito especiais”, num vídeo divulgado nas redes sociais. “Voltem para casa. Nós adoramos-vos”, garantiu Trump. Desde então viu as suas contas de Twitter e Snapchat temporariamente bloqueadas, por incentivo à violência, enquanto o Facebook optou por suspendê-lo indefinidamente, pelo menos até ao final da transição presidencial.

 

História perante os nossos olhos

Enquanto a democracia estava sob ataque na capital, do outro lado do país, no sul, também se fazia história. Foi eleito o primeiro senador negro da Geórgia, Raphael Warnock, pastor da Igreja Baptista de Ebenezer, antiga paróquia de Martin Luther King Jr.

Numa Geórgia em profunda transformação demográfica e social, parte do chamado “novo sul”, Warnock foi também o primeiro senador democrata eleito na Geórgia este século, seguido, umas horas depois, pelo antigo jornalista Jon Ossof. A sua eleição selou o controlo democrata do Senado, dando a Biden a maioria de que precisa para aprovar a sua agenda legislativa.

Mais de 50 anos após o assassinato de King, parte das discussões que marcaram a sua vida tiveram um papel nos incidentes de quarta-feira. Perante a facilidade com que apoiantes de Trump – alguns erguendo a bandeira da Confederação – romperam barreiras policiais rumo ao Capitólio, muitos não deixaram de notar o reduzido aparato das autoridades e a sua relativa contenção quando comparada com o que se viu contra manifestações pacíficas do Black Lives Matter, no verão. Aí houve uso indiscriminado de gás lacrimogéneo, balas de borracha e cargas policiais, apanhando até jornalistas em direto.

“É sempre interessante ver como manifestantes brancos podem encontrar tão pouca resistência ao invadir o Capitólio com o vice-presidente lá, enquanto manifestantes negros estariam mortos à frente do edifício neste momento”, notou a escritora Roxane Gay, citada pelo Guardian. “O privilégio branco está exposto como nunca”, concordou o académico e autor Ibram X Kendi.