Crash. De volta ao sangue, sexo e máquinas de Cronenberg

Crash. De volta ao sangue, sexo e máquinas de Cronenberg


O controverso filme em que David Cronenberg levou ao cinema uma das mais polémicas mas essenciais obras de J. G. Ballard regressa às salas nacionais numa nova cópia digital restaurada em 4k.


Um acidente automóvel como forma de libertação da pulsão sexual, não como um acontecimento destrutivo. O fetiche da máquina, da pele rasgada pelo metal, do sangue ou do sémen no cenário catastrófico de um acidente. Para esse universo levou o cinema David Cronenberg quando, em 1996, chegou a Cannes com a sua versão do provocador romance homónimo de J. G. Ballard de 1973. Distinguido, contra a vontade de Francis Ford Coppola, presidente do júri nesse ano, pela sua “originalidade, atrevimento e audácia”, Crash firmar-se-ia como título incontornável do cinema do final do séc. xx, e incontornável também na filmografia do cineasta canadiano que encontrou na paisagem viária de Toronto a tradução perfeita para aquela Londres que em Ballard sempre se desenhou mais como produto de uma sociedade americana do que europeia. Uma Londres de betão e de autoestradas.

Conhecida é a obsessão de David Cronenberg pelas questões tecnológicas, pela “redefinição do corpo humano pela tecnologia moderna” que se propôs pensar em Crash, como a paixão pelo automóvel-máquina, ele que em 1997, numa entrevista a propósito deste filme que a distribuidora Films4You traz de novo às salas numa nova versão restaurada em 4k, falava sobre a sua coleção de carros antigos de corrida – que mantinha para correr, não pelo prazer de colecionar. “Se disser que estou a fazer um filme sobre alta tecnologia, a maioria das pessoas vai pensar em computadores, internet, algo assim. Se dissermos que estamos a usar um automóvel como representação, ficarão algo surpreendidas, porque não pensam em automóveis como alta tecnologia. Mas são, incrivelmente”, defendia, para explicar: “Pela forma como [esse desenvolvimento tecnológico] alterou por completo a existência humana e a perceção do poder que temos ou não temos, como comprimiu o espaço e o tempo e ainda por, especialmente na América mas acho que em qualquer país, representar uma certa extensão da liberdade sexual e do poder”. Falava ainda no seu Ferrari, num paralelo com o seu cinema: “Enquanto cineasta, penso em mim mais como um Ferrari do que como um Ford”.

E Crash? Teria havido realizador mais certo do que Cronenberg para transpor para o grande ecrã esse universo de uma obra literária que Zadie Smith descreveu no Guardian como “um livro existencialista sobre como toda a gente usa tudo”, “sobre como tudo usa toda a gente”, de um autor em cuja obra “a distopia e a utopia convergem”, mas que à época da primeira edição a crítica descreveu com horror? No New York Times, por exemplo, por um crítico que se referia a ele como “o livro mais repugnante” que já lhe havia ido parar às mãos: “Talvez J. G. Ballard tenha sofrido um trauma num cinema drive-in”.

Escrevia Ballard no capítulo inicial de Crash: “Na sua visão de um acidente automóvel com a atriz, o Vaughan era obcecado por uma série de ferimentos e impactos — com o cromado amolgado e os corta-fogos destruídos dos dois carros embatendo de frente em complexas colisões repetidas infinitamente em câmara lenta; com os ferimentos idênticos infligidos nos corpos de ambos, com a imagem do para-brisas estilhaçado emoldurando o rosto da atriz depois de esta ter irrompido através da superfície sombreada, qual Afrodite nada-morta; com as fraturas expostas das coxas de ambos, esmagadas contra as estruturas dos travões de mão; e, acima de tudo, com os ferimentos nos genitais, o útero dela perfurado pela ponta aguçada do símbolo heráldico do fabricante, o sémen dele espalhando-se sobre os mostradores luminosos que registavam, para todo o sempre, a última temperatura e os níveis de combustível no depósito”.

Àquela pergunta respondiam os críticos do IndieWire num artigo retrospetivo da filmografia de Cronenberg, publicado em 2015, que seria difícil “imaginar-se mais alguém” que, além de se aproximar da “história demente de fetichismo com acidentes automóveis e da adoração assustadora de celebridades”, a levasse na verdade mais longe, “transformando-a num retrato arrepiante da angústia pré-millennial manifestada numa tecnofilia erotizada”. É que, lê-se ainda no mesmo texto, “o instinto de Cronenberg por este tipo de material é inato, e ele faz deste tipo de história ‘apenas de Ballard’ um filme inconfundivelmente de Cronenberg”.

De Crash, Cronenberg fez não só um dos mais controversos e mais relevantes títulos da sua obra como o fez também seu. “Uma macabra visão sobre a combinação entre erotismo e mutilação, autodestruição calculada e desejo sexual, morte violenta e acidentes rodoviários”, para a qual Cronenberg chamou James Spader, Holly Hunter, Elias Koteas, Deborah Kara Unger e Rosanna Arquette. A partir de um acidente entre James (James Spader) e Helen (Holly Hunter) abre-se o portal para um “submundo pervertido e obcecado pela morte de acidentes de carro fetichistas e sadomasoquistas” onde “metal retorcido e cicatrizes são o que de mais excitante pode haver”, como é descrito na nova edição em DVD e Bluray da Criterion Collection a partir da cópia restaurada em 4k, que pode ser agora revisitada nas salas de cinema nacionais, cinco anos depois de a Elsinore ter feito renascer a obra que o inspirou, com tradução de Marta Mendonça.

Um “tratado perturbadoramente sedutor sobre as relações entre humanidade e tecnologia, sexo e violência”, como descreve ainda a Criterion, também pretexto para regressar ao seu primeiro criador, J. G. Ballard.