Que futuro resta à Coreia do Norte?

Que futuro resta à Coreia do Norte?


O mundo olha para Pyongyang, à espera de pistas do rumo de Kim. Alguns procuram indícios de abertura para negociar o programa nuclear, outros da transição para uma economia de mercado.


Ouvem-se ventos de mudança na misteriosa Coreia do Norte, onde o brutal regime dos Kim, relíquia da Guerra Fria, tenta sobreviver à sua lenta decadência. Sob o auspício do Supremo Líder, Kim Jong-Un, 4750 delegados, boa parte do aparelho do Partido dos Trabalhadores da Coreia, reuniram-se num raro Congresso, esta terça-feira, para definir o futuro do país nos próximos cinco anos. O encontro, que se desenrolará ao longo dos próximos dias, tornou-se ainda mais extraordinário com uma admissão de falhanço económico do todo-poderoso Kim, reconhecendo que “quase todos os setores ficaram longe dos seus objetivos”, no seu discurso de abertura, segundo a agência oficial, a KCNA.

Com a China – até há uns anos, o último grande parceiro comercial de Pyongyang – a alinhar com as sanções internacionais, face a uma crise económica agravada pela pandemia, logo após colheitas e infraestruturas serem devastadas por cheias maciças e tufões, a Coreia do Norte não tem muito para onde se virar. O Supremo Líder falou em “lições dolorosas”, prometeu “expandir vitórias e sucessos conseguidos à custa de sangue e suor”. O mundo observa-o ansiosamente, tentando perceber exatamente o que isso significa, se há abertura para negociar o programa nuclear norte-coreano ou reformas económicas no horizonte – talvez algo semelhante ao visto na China de Deng Xiaoping, nos anos 80, com a transição para uma economia de mercado dominada pelo autoritário Partido Comunista da China.

Entre os observadores fascinados com a intriga em Pyongyang, colados ao ecrã à procura do mais ínfimo detalhe sobre o congresso, está Paul French, autor do livro Coreia Do Norte – Estado De Paranoia (Desassossego, 2019). A partir da sua casa de campo nos arredores de Londres, o autor britânico, que viajou pela Coreia do Norte durante anos, desdobra-se em chamadas com amigos e colegas de universidades chinesas. “Talvez eles consigam obter um pouco mais de informação, mas também não obtêm muita, porque a fronteira está basicamente selada de momento”, explica ao i.

“A primeira grande notícia sobre o congresso é ter sequer acontecido”, refere French, lembrando que o primeiro congresso de Kim Jong-Un, em 2016, ocorreu 36 anos após o anterior, realizado nos tempos do seu avô, Kim Il-sung, um antigo guerrilheiro coroado pelo próprio Estaline. Supostamente, haveria um congresso de cinco em cinco anos, mas o pai do atual líder, Kim Jong-il, criado à sombra de Kim Il-Sung, tímido, obcecado com cinema, luxo, mulheres e bebida, “nunca se sentiu seguro, sobretudo em relação ao exército, por isso simplesmente não fazia congressos”, explica.

Desta vez, o congresso até ocorreu mais cedo que o esperado, saltando as alturas típicas de maio e setembro – os meses do Dia do Trabalhador e da Revolução de Outubro. “Creio que pretendem, de forma calculista, enviar uma mensagem antes da transição de poder na América, da saída de Trump e a tomada de posse de Biden”, considera French.

Debaixo de camadas crípticas de propaganda, a mensagem poderá ser de disposição para negociar – muitos veem o programa nuclear norte-coreano sobretudo como moeda de troca para o fim das sanções e embargos – ou até de uma certa viragem para uma economia de mercado. “A China mostrou que isso se consegue fazer”, lembra French. “Que se consegue melhorar a vida de todos, deixar as pessoas viajar, permitir a entrada de investimento estrangeiro, enquanto o partido mantém poder absoluto”.

 

Fome e miséria

Apesar da retórica do regime norte-coreano, baseada numa mistura muito particular do marxismo-leninismo de Estaline e o confucionismo, a economia do país, na prática, alicerça-se cada vez mais numa lógica de mercado. Desde 1999, quando o rescaldo do colapso da União Soviética – e do fim da sua venda de gás natural barato ao regime – causou uma fome brutal, têm surgido centenas de jangmadangs por toda a Coreia do Norte, uma espécie de pequenos mercados negros, onde a população vende e compra produtos à margem do Estado. Trata-se de uma prática ilegal, a que as autoridades vão fechando os olhos, sobretudo desde que Kim Jong-Un chegou ao poder – estima-se que o norte-coreano médio retire mais de dois terços do seu rendimento deste género de mercados paralelos, segundo o Economist.

À margem deste pequeno comércio de subsistência, começa a desenhar-se acumulação de capital ao mais alto nível, algo comparado a conglomerados de empresas familiares, ou chaebol, em coreano. São dirigidos pelos donju, poderosos homens de negócios, leais ao regime, ligados em particular ao exército, a única entidade que possui uma frota significativa de camiões, indispensável para mover produtos pelo país. Estes grupos, que estacionam os seus ganhos no estrangeiro ou comprando imobiliário em Pyongyang, já controlam boa parte do comércio com a China. Poderiam ser a base de uma transformação da economia norte-coreana para uma lógica de mercado, com continuação do do poder da dinastia. E talvez sejam os únicos com a capacidade de o fazer. 

“O mercado é uma coisa super difícil de compreender, se cresceste fora desse ambiente”, assegura Paul French. “É em parte por isso que o sul da China se safou muito melhor que o norte. Porque o sul, através das suas relações com Hong Kong e com chineses no estrangeiro, tinha um entendimento muito melhor do capitalismo, comércio, dinheiro”, exemplifica. “Quando conheces norte-coreanos que fugiram para a Coreia do Sul, esse é o maior problema que enfrentam. Deixa-os completamente estarrecidos conseguir um contrato de serviços telefónicos, ser-lhes oferecidos tantos tarifários. ‘Se pagares isto recebes aquilo, se pagares aquilo recebes isto’. Não conseguem lidar com isso”, explica o autor britânico. “Nem nós conseguimos lidar bem com isso!”.

Mudar pode ser a única hipótese que sobra ao regime. Um dos poucos sucessos de que se pode gabar é o aumento da sofisticação do seu programa nuclear – analistas estimam que já tenham mísseis balísticos móveis capazes de atingir os EUA, ogivas nucleares miniaturizadas para colocar nesses mísseis, quase tudo produção norte-coreana. Fora isso, o país está num caco, 80% do comércio com a China secou, segundo a Korea International Trade Association, enquanto a magra economia da Coreia do Norte contraiu uns 8,5% o ano passado, segundo a Fitch Solutions.

A ajuda humanitária, que durante anos sustentou os norte-coreanos, praticamente desapareceu, mesmo após o tufão que devastou o país. A quebra é tanto devido à falta de interesse internacional – "a Coreia do Norte nunca será uma causa apelativa. Nunca verá o Bob Geldof ou o Bono a dar um concerto pela Coreia do Norte", refere French – como pela recusa do regime, imerso na sua doutrina de autosuficiência. Cá fora, vão chegando relatos de aumento dos preços de bens básicos e escassez, até nos mercados de Pyongyang, onde vão as compras as elites do partido, segundo a NK News. Mas o verdadeiro drama vive-se na província.

“Em qualquer país, quando há escassez é pior para uns do que para outros. As pessoas em Pyongyang, com ligações ao Governo, não passam pelas mesmas dificuldades que se vivem no campo ou em cidades mais pequenas”, salienta French. “Isto causa divisões numa sociedade, claro. Nós sabemos que o povo norte-coreano consegue sobreviver e aceitar tempos difíceis. Eles aceitaram muito pouca comida, nenhum dinheiro ou liberdade. Mas isso torna-se difícil de manter quando surge a ideia: ‘Não estamos todos a sofrer juntos’. Se sentirem que a liderança política, as pessoas de Pyongyang, estão ok, além da escassez de eletricidade, torna-se uma situação semelhante ao que se viu antes dos protestos em Tiananmen. Como antes de qualquer revolução ou mudança de regime”.

“A Coreia do Norte sempre conseguiu evitar isso, sempre conseguiram defender a ideia de que estavam juntos nas dificuldades. Mesmo não sendo verdade, sempre conseguiram convencer as pessoas disso”, considera French. Kim Jong-Un, ao admitir o falhanço económico perante o Congresso, “provavelmente está a usar uma estratégia muito inteligente. Porque altera a ideia de que ele é o rei, rodeado pela sua corte, sentado a comer o que quer, gastar o que lhe apetece enquanto os outros passam fome”. Isto enquanto prepara o terreno para o que poderá mudar no seu reino. 

Contudo, se as mudanças da Coreia do Norte passassem por algo semelhante ao que se viu na China nos anos 80, não veríamos uma fatia de leão do crescimento a ir parar às mãos dos poderosos homens que já dominam o país? Acelerando precisamente rumo ao descontentamento que levou aos protestos de Tiananmen, uns anos depois, em 1989?

“Seria a mesma aposta que a China fez. A promessa de que alguns vão ficar ricos primeiro, alguns vão ficar ricos rápido, mas todos terão uma vida melhor daqui a dez anos”, explica French. “Se conseguires unir tudo com um nacionalismo muito forte, que há na Coreia do Norte como havia na China, desde que se injete aspiração na sociedade, pode acontecer”. Mas só o tempo dirá o que o futuro reserva ao pequeno e isolado reino dos Kim.