Tomás Halík. Uma teologia que fala a este tempo

Tomás Halík. Uma teologia que fala a este tempo


Um espaço público cultivado, impregnado das mais densas buscas, procuraria não desconhecer o pensamento teológico (do seu tempo) e, não por acaso, em algumas das sociedades mais desenvolvidas, a uma dada formação técnica acresce, em muitos (cidadãos), a curiosidade teológica que se procura e se aprofunda. Ademais, em tais latitudes, nas livrarias não se encontra,…


1. Tomás Halík é, provavelmente, o intelectual católico mais prestigiado da República Checa (um país com níveis record de ateísmo declarado em inquéritos). Académico, ensina Sociologia e Filosofia da Religião na Universidade de Charles, no seu país, mas lecciona também, como professor convidado, em Universidades como Harvard, Cambridge ou Oxford. Filósofo, sociólogo, antigo psicoterapeuta, teólogo, sacerdote (ordenado clandestinamente, durante o regime comunista em Praga), foi Secretário-geral da Conferência Episcopal checa, conselheiro do Presidente Václav Havel e consultor do Conselho Pontifício para o Diálogo com os Não-Crentes. É membro da Academia Europeia da Ciência e da Arte e Presidente da Academia Cristã da República Checa. Os seus livros estão traduzidos em numerosas línguas e têm sido amplamente premiados (Melhor Livro Europeu de Teologia do Ano, em 2009-10, com “Paciência com Deus” ou Melhor livro do ano, na categoria “Filosofia”, para a "Forewords Magazine", com o livro “Quero que tu sejas!”, em 2017; foi, ainda, galardoado com o Prémio Templeton, em 2014, distinguindo-o como uma personalidade de grande relevância na afirmação do valor espiritual da vida humana, para além de ter sido vencedor dos Prémios Cardeal Konig, em 2003, e Romano Guardini, em 2010, em que o seu contributo para o diálogo intercultural e inter-religioso foi destacado).

2. Halík está publicado em Portugal apenas desde 2014. No entanto, desde então o autor tem sido bastante prolixo (e cada novo livro esperado, ansiosamente, por uma imensa minoria – como um bálsamo). Seleccionar apenas um dos seus títulos torna-se, pois, tarefa árdua. Avesso a imagens banais de Deus, ajudando-nos a problematizar definições fáceis (Dele), tributário de um conjunto de grandes teólogos/filósofos que faz questão de distinguir – de Karl Rahner a Jean-Luc Marion -, elabora uma síntese que toca muitos dos nossos contemporâneos. Se, desde "Paciência com Deus" (Paulinas, 2013), o autor se mostra contrário a apressadas separações/delimitações "crentes"/"não crentes" (em Deus) – não é que os ateus não tenham razão; não têm é paciência (para escutar a Realidade da realidade), escreve; ademais, a cada ateísmo sempre corresponderá um determinado “teísmo”, pelo que, em não poucas ocasiões, o que é rejeitado, afinal, quando tal negação ocorre, é uma certa concepção, uma dada imagem ou definição de Deus, não Ele mesmo (e, aliás, o teólogo cristão poderá agradecer, inclusive, ao céptico, a superação de imagens humanas ingénuas ou perversas de Deus), e depois de afirmar a necessidade (para o re-conhecermos) de um Deus ferido (“O meu Deus é um Deus ferido”, Paulinas, 2015) na irrecusável hospitalidade cristã para as feridas do mundo (uma mística de olhos abertos), prossegue o incrustar-se numa zona de fronteira no magnífico "Quero que tu sejas!" (Paulinas, 2016), onde, sempre recusando abrigos confortáveis, principia por afirmar a existência, na mesma pessoa (na mesma “alma”), de um “crente” e de um “não crente”, um convívio que se conclui, em definitivo, no que a uma aposta “crente” diz respeito – é dessa forma que deve interpretar-se, aos olhos do teólogo, independentemente das subjectivas formulações com que seja recoberto -, pelo sim confiado e grato à vida, modo maior de assentimento a Deus ("se existe um fundamento primordial de uma atitude religiosa frente à vida, não são as noções acerca de Deus ou dos deuses, mas uma consciência profundamente experimentada de que a vida é um dom (…) Não basta reconhecer teoricamente que a vida é um dom, há que experimentá-lo profundamente. Como é óbvio, essa «experiência profunda» não precisa de tomar a forma de um encontro místico excepcional; é mais uma questão de «misticismo quotidiano»: com cada ato e experiência da própria vida descobrimos essa realidade e sentimo-nos gratos por ela. Se alguém tem essa experiência e sente relutância em conversar acerca de Deus em relação a ela – preferindo falar acerca da gratidão para com a própria vida ou para com a natureza -, de um modo geral isso significa, pura e simplesmente, que o seu conceito pessoal de Deus é demasiado estrito para abranger essa experiência, e essa pessoa está a utilizar conceitos, tais como a vida e a natureza, como «pseudónimos de Deus». Contudo, porque havemos de deixar a vida e a natureza de forma mitológica, quando há uma palavra que caracteriza, precisamente, aquilo que inclui a natureza e a vida, mas que também as transcende de modo infinito? Porque havemos de deificar algo que não é Deus? Porque havemos de apresentar o condicional como incondicional? Porque havemos de absolutizar os fenómenos da vida quando temos uma palavra que indica o próprio Absoluto, o Absoluto que permite que tudo o que não é absoluto seja prática e realisticamente relativizado? Costumo usar pouco a palavra «Deus»; com ela refiro-me apenas a esse mistério supremo, ao Desconhecido que brilha através da vida tal como nós a conhecemos" (“Quero que tu sejas!”, pp.253-254) Nesta obra pode, aliás, já antever-se o conjunto de propostas que deixaria em escritos ainda mais recentes.
3. Em Novembro de 2019, num texto traduzido pela revista "Brotéria", "Europa Ocidental e Europa de Leste: a experiência da dualidade europeia" (pp.520-549), escrevia o teólogo checo: "se por acaso visitarem uma série de paróquias universitárias na República Checa, irão encontrar grandes igrejas cheias de gente nova naquele que é considerado o país mais ateu da Europa, se não do mundo. Todos os anos, são batizados no país muitos jovens, que constituem um ‘viveiro’ de vocações sacerdotais e monacais. Acontece, porém, que estes convertidos têm dificuldade em se identificar com o modelo predominante das igrejas locais. Contudo, posso testemunhar que é possível uma Cristandade vital numa sociedade altamente secularizada. É possível quando consideramos a evangelização não como indoutrinação, mas como inculturção. É possível quando não travamos uma guerra cultural com o mundo exterior, mas tentamos compreender a cultura do nosso tempo e as interrogações das pessoas que nos rodeiam. É possível quando não nos arvoramos em detentores da verdade, mas reconhecemos sinceramente que não possuímos o monopólio das respostas certas. É possível quando apresentamos a fé como um caminho de busca e não como uma ideologia. É possível quando estamos dispostos a acompanhar as pessoas, em particular os jovens, nos seus caminhos e procurar com os que procuram e questionar com os que questionam. (…) Creio que, no atual momento da história e da cultura europeia, a missão dos cristãos não passa por oferecer certezas, mas por ensinar a coragem de penetrar na nuvem do mistério e viver com as questões e os paradoxos da vida. O principal serviço que a igreja pode atualmente oferecer às pessoas consiste em desenvolver a arte do discernimento espiritual na vida pessoal e na vida da sociedade, bem como na hermenêutica teológica da cultura contemporânea ou em termos tradicionais: ler os sinais dos tempos."
E, mais próximo de nós no tempo, reflectindo, em ebook, em momento pandémico, sobre as catedrais desertificadas na demanda de travar o contágio pelo coronavírus e todo o sofrimento por aquele causado, "O sinal das Igrejas vazias", assinalava o mesmo autor: "estou convencido de que as nossas comunidades cristãs – paróquias, congregações, movimentos eclesiais e comunidades monásticas – deveriam procurar aproximar-se do ideal que deu origem às universidades europeias: uma comunidade de alunos e professores, uma escola de sabedoria na qual a verdade é procurada através da discussão livre e, também, da profunda contemplação. Estas ilhas de espiritualidade e diálogo poderiam ser a fonte de uma força capaz de curar um mundo doente. (…) A pesquisa sociológica mostra que o número daqueles a quem chamo «residentes» (dwellers), ou seja, aqueles que se identificam profundamente com a forma tradicional de religião, e também aqueles que declaram um ateísmo dogmático, está em diminuição, enquanto aumenta o número dos que estão «à procura» (seekers). Além disso, está obviamente em aumento também o número dos «apáticos», os indiferentes, pessoas a quem não interessam, em absoluto, as questões religiosas ou a resposta tradicional. A principal linha de separação já não é entre os que se consideram crentes e os que se consideram não-crentes. Há quem esteja «à procura», sendo crente (aqueles para quem a fé não é uma «bagagem hereditária», mas um «caminho»), e há quem seja não-crente, que rejeita os conceitos religiosos que lhe são propostos pelos que o rodeiam, mas, ao mesmo tempo, sente o desejo de algo que satisfaça a sua sede de significado. Estou convencido de que a «Galileia de hoje», onde devemos procurar Deus que sobreviveu à morte, é este grupo dos «à procura»."
Num tempo de fundamentalismos e de instrumentalização da religião para fins que contrariam qualquer ideia de religação e serviço ao próximo, ou exacerbamentos emocionais que pretendem agarrar-se a fantasias e demasiadas seguranças, o caminho de um fé pensada e partilhada com quem se atreve a uma busca, o itinerário proposto por Halík é, de facto, uma preciosidade.

4.Halík sistematiza e detalha, ainda, o ponto de vista vindo de ilustrar, no ensaio “A pandemia como experiência ecuménica”, inserto em “Demolição e Reconstrução” (um volume organizado por Walter Kasper e George Augustin, acabado de publicar pela Paulinas, e que se oferece como problematização teológica do tempo presente, observado como especialmente desafiante na perplexidade que a pandemia a todos suscitou, e que conta com 5 breves ensaios de cinco teólogos de reconhecido mérito, a nível internacional). Em uma ousada e audaz proposta (e recordando que “nos momentos dramáticos [como o que vivemos], quando um desenvolvimento histórico ultrapassa um certo limiar, muitas vezes a fé de muitos crentes é sacudida; muitas vezes, porém, também muitos «não-crentes» começam a interrogar-se sobre questões fundamentais. Foi o que exprimiu o poeta cego Vladimir Holan, no verso que diz: «aquilo que não vacila não tem solidez”, p.84), Halík apoia-se na imagem convocada pelo cardeal Bergoglio na véspera da sua eleição como Pontífice: Cristo está à porta e bate; hoje, porém, Jesus bate à porta da Igreja a partir de dentro porque quer sair – e nós devemos segui-lo. “Interpreto esta imagem como uma exortação corajosa a ultrapassar os limites institucionais e mentais que caracterizavam o Cristianismo no passado, tornando a fé cristã um verdadeiro fermento do mundo, uma força vital espiritual de globalização, uma oferta universal e uma visão que seja fonte de inspiração” (p.73). 
Se, em uma palavra, quiséssemos concretizar, de imediato, esta leitura, diríamos que Halík sugere (à Igreja) a par “do cuidado pastoral dos crentes que frequentam as suas comunidades paroquiais e eclesiais” e, bem assim, da “missão clássica orientada para conquistar novos membros da Igreja”, a emergência de um “terceiro ministério: o do acompanhamento espiritual das pessoas que andam à procura. Em certo sentido, o modelo desta vocação é o ministério dos assistentes espirituais, em particular nos hospitais e nas prisões. Com efeito, trata-se de um ministério que se dirige a todos os necessitados, não só aos «crentes», e que não tem por objectivo a «conversão» no sentido eclesial e religioso tradicional” (p.80). E, no entanto, com este ministério espera-se, ainda, uma “metanoia”, a conversão de uma vida superficial numa vida em profundidade, a passagem de uma vida conformista a uma outra autêntica, a escuta do apelo da consciência (p.80). 
Uma «Igreja em saída», um «hospital de campanha» – duas das mais conhecidas metáforas/propostas, sobre a Igreja e sua missão, da autoria do Papa Francisco -, teriam como corolário, pois, neste contexto, uma Igreja decidida, com redobrada intensidade se possível, a contribuir para o sanar do mundo (não se cerraria em uma autorreferencialidade, mas veria neste sanar a sua missão precípua); nessa demanda, contaria com os múltiplos e diversos co-inquilinos, assentes em mundividências não assimiláveis entre si (“no campo das «concepções do mundo» permanecerão sem dúvida legítimas e compreensíveis diferenças: entre as Igrejas cristãs, entre as religiões mundiais e entre as religiões e as filosofias laicas (…) O lugar do encontro, porém, pode ser uma profunda experiência espiritual – a experiência da metanoia, de uma transformação, da passagem de uma vida a nível superficial para uma vida a nível profundo”, p.75), de uma morada que se pretende (transformada em) casa comum; nesse espaço de oferta, inclusão, abertura a Igreja não seria prosélita e triunfalista, mas também recusaria uma amálgama indiferenciada em que não se distinguisse o seu específico/próprio (“os cristãos da nossa época devem encontrar um caminho intermédio entre dois extremos perigosos: o imperialismo espiritual, o proselitismo e o triunfalismo, por um lado, e a perda de identidade, a dispersão do sal da fé num humanismo abstracto e vago, que abarca tudo. A questão é como poderá a «catolicidade» ligar-se ao Cristianismo sem o reduzir a um «catolicismo» (ou seja, a qualquer outro «-ismo» ideológico), e sem que o Cristianismo seja privado do seu carácter de «religião da encarnação» – sem que o seu aspecto perca os traços peculiares do rosto de Jesus de Nazaré”, p.74); na tradução de uma proposta, de um visão, de uma prática de vida, inspirar-se-ia no Tomás de Aquino de Summa contra gentiles (obra na qual, o maior filósofo e teólogo da Idade Média segundo A.C.Grayling, procurou fundar o pensamento religioso na «razão natural», tornando-o muitíssimo acessível inclusive àqueles que não partilhavam a fé cristã na revelação em Cristo), ou seja, seria capaz de se fazer entender pela universalidade daqueles com quem estabelecerá colóquio e proximidade bastantes (ainda que a base dessa conversação passe, em nossos dias, de acordo com Halík, pela fenomenologia ou a hermenêutica e não a onto-teologia como ao tempo de Tomás de Aquino). A teologia mística, ao conseguir “reflectir o carácter paradoxal da realidade, pode ser fonte de inspiração para o diálogo entre a ciência e a teologia” (em tempo, de uma banda, de uma religiosidade muito emocional, sendo de colocar de sobreaviso uma devoção irracional; por outra banda, vivendo nós em época de «pluralidade de racionalidades». Neste domínio, aliás, a proposta do Professor João Manuel Duque, prestigiado teólogo português, em “Dizer Deus na pós-modernidade” (Alcalá, 2003), mais do que uma dialética fé-razão, é a do forjar de uma transversal “razão crente” a iluminar, e a ser concretizada, no específico de cada “racionalidade”: “frente à tão apregoada eliminação da forte razão universal, a favor, quando muito, de débeis razões contextuais, a revisão da revisão obriga-nos a defender a permanência de uma razão unificadora, como referência comum a todas as possíveis racionalidades – caso contrário, as racionalidades parciais ou contextuais acabariam por se absolutizar a si mesmas. Contudo, essa razão unificadora teria que assumir a sua realização concreta em racionalidades parciais, sem que nenhuma dessas se afirme dominadora das outras. Trata-se daquilo a que se poderia chamar uma razão transversal ou, ainda melhor, multidimensional, superadora, portanto, da moderna razão monolítica e unidimensional. Assim entendida, uma legítima crítica da razão absoluta e unidimensional, como a que foi elaborada pela pós-modernidade, não implica manter ou reacender a dicotomia entre a razão e o «outro» da razão, na sua mútua concorrência. As dimensões da realidade humana são, antes, distintas dimensões da própria racionalidade. Assim também a dimensão crente, ligada à dimensão religiosa. Porque não falar de uma razão crente ou da racionalidade própria da fé ou da religião, em vez de uma fé ou de uma religião por distinção – ou mesmo por oposição – à razão?”, pp.124-125).
Tomás Halík pretende fazer public theology e teologia ecuménica: “a teologia é public pelo facto de se interessar pelo «espaço público», mas também pelo facto de ser compreensível para quem não faz parte do espaço público do nosso «jogo linguístico» eclesial; além disso, a teologia é ecuménica, quer porque nasce da colaboração de teólogos que ultrapassam as fronteiras entre as Igrejas e as religiões, mas também porque é uma «teologia da ecúmena», ou seja, sobre a configuração que deve ter o mundo comum” (p.69). 
A pandemia é indissociável da globalização e, porventura, não é já possível sair desta; há, associado a ambas, um sentimento de angústia, medo e pânico: é necessário passarmos da paranoia a uma “pronoia”, sabedoria e clarividência, sendo que a ligação em rede ainda não transformou a nossa morada comum numa “casa comum”. Ora, “se o Cristianismo quiser contribuir para uma terapia do mundo, ele próprio deverá submeter-se a uma terapia, a uma reforma – e estes dois processos também não podem ser divididos entre si” (p.70). O Concílio Vaticano II (1962-1965) “colocou a Igreja perante o exigente dever de uma tripla abertura: deve ser aberta ao diálogo com as outras Igrejas cristãs, com as outras religiões e com os «não crentes», ou seja, com o humanismo secular e com o ateísmo (…) Se o cristianismo católico quiser ser verdadeiramente católico [universal], deve fazer a passagem do diálogo para uma ecúmena mais profunda (…) O Cristianismo deve considerar e acolher a maior parte da Humanidade que, embora não pertencendo formalmente à Igreja católica, não é apenas uma interlocutora, mas também a coinquilina da morada comum, da qual deve nascer uma casa comum. O Concílio tentou fazer sair a Igreja católica do «catolicismo» – do beco sem saída de uma contracultura que se definia como negação do mundo circunstante, em primeiro lugar do protestantismo, e, depois, da cultura secular moderna – para conduzi-la à «catolicidade» do Cristianismo; isso significa conduzir a Igreja católica a um cristianismo entendido como oferta universal, orientado para uma compreensão da Igreja que não se assemelha a uma fortaleza cercada de inimigos, mas que vê a Igreja como «sacramento» (ou seja, como símbolo e sinal eficaz) da unidade a que é chamada a Humanidade. (…) Esta compreensão da vocação da Igreja no processo de integração da Humanidade requer uma corajosa abertura aos outros, mas também uma «paciência escatológica», respeito e acolhimento cordial: se nós não respeitarmos a diversidade dos outros e quisermos «transformar a alteridade na singularidade», de forma precipitada, cederemos completamente à tentação do proselitismo, do triunfalismo e do totalitarismo” (p.71).
Tomás Halík não esquece o percurso já transcorrido no pós-Vaticano II: a «primeira ecúmena», no Conselho Pontifício para o diálogo com os não-crentes (e diga-se que “também entre a fé e o cepticismo, pode dar-se uma preciosa «permuta de dons». Uma fé que é mais do que uma ideologia religiosa, uma fé que deriva da «confiança ontológica original» na sensatez do mundo e da vida, pode oferecer uma força terapêutica que vem da esperança. O cepticismo, por sua vez, pode purificar a fé da ingenuidade e das ilusões, das projecções dos nossos desejos e das nossas ansiedades, e, portanto, reforçar a sua vitalidade. O ateísmo crítico (ao contrário do ateísmo dogmático) pode funcionar como «ancila Theologiae» [servo da teologia], desmascarando as formas de religião patológicas ou infantis. Pode desempenhar uma importante função iconoclasta e ajudar a fé a desempenhar o seu primeiro dever, que lhe vem do primeiro mandamento do Decálogo: abater os ídolos, as concepções «demasiado humanas» de Deus. Uma fé madura, purificada de tais projecções, pode ajudar os hesitantes a pôr em dúvida as suas próprias dúvidas, a não cair no cinismo e num amargo cepticismo”, p.85); já com Bento XVI, a «segunda ecúmena», com a criação do «Átrio dos Gentios», fórum cujos encontros e diálogos interessantes, um pouco por todo o mundo, o autor não deixa de sublinhar – e, com efeito, como inesquecível foi a edição portuguesa, nas cidades de Guimarães e Braga, na Arquidiocese de Braga, a 16 e 17 de Novembro de 2012, da sessão inaugural com o diálogo entre Gianfranco Ravasi e João Lobo Antunes, passando pelas presenças de personalidades, em charlas vibrantes, como Vasco Graça Moura ou Ana Luísa Amaral, a revisitação dramática de Job por Fabrice Hadjadj ou a energia comovente da Orquestra Geração -, sendo, neste instante, hora de um salto outro na aproximação e caminho comuns com os co-inquilinos de morada comum: “dêmos os passos necessários para transformar a Igreja de uma instituição burocrática, que controla a medida da conformidade dos seus membros, numa comunidade caracterizada pelo apoio recíproco e pela inspiração; esforcemo-nos por «deslocar a tónica da ortodoxia para a ortopráxis», de passar do legalismo para a autenticidade, do triunfalismo para a kenosis, para o dom de si mesmo. Libertemos a sociedade pluralista do «Money-teísmo», que substituiu o monoteísmo pelo culto do bem-estar material – façamo-lo com um estilo de vida exemplar, que respeite os outros (e também os «diferentes»), tornemo-nos a voz dos que não têm voz – da natureza e das próximas gerações. Desenvolvamos uma ecúmena cujo objectivo seja considerar a Humanidade uma família (filhos de um mesmo Pai) e o Mundo uma casa comum” (p.88). 
E, não obstante, pergunta-se, radicalmente, o teólogo católico: “estará o Cristianismo actual disposto a dar esse passo? Porventura terá coragem e vitalidade suficiente para isso?” (p.73)

5.Em “A noite do confessor” (Paulinas, 2014), Halík registara já: há uma forma de religião que está a chegar ao fim: a que procura provas na ciência para aquilo em que acredita; a que se compraz em eventos multitudinários, repletos de foguetório e coreografia; a que só se conforma com milagres e espectacularidade; a que só se encontra em grupos fechados, furtando-se ao mistério e à incerteza; a que tem uma visão idolátrica da Escritura, procurando nela divisar o regulamento detalhado de toda a acção, a resposta absoluta a qualquer dúvida. 
Em uma viagem fascinante ao templo semi-vazio dos nossos dias pré-pandémicos, Halík, alcançando dosear a profundidade e o rigor filosóficos com a necessária acessibilidade a um público vasto, assinala que o conceito de Deus alcançou uma profunda mudança, na Europa, com o advento do Iluminismo: desde o século XVIII, as pessoas começaram a usar, pela primeira vez, o conceito de Deus – a quem a aplicação de uma rigorosa distinção assenta em categorias de “objectivo” e “subjectivo” O deixaria sem abrigo: “um deus que é «meramente objectivo» ou «meramente subjectivo», um deus que é apenas exterior ou interior em relação ao mundo e às pessoas, não merece ser amado nem que se creia nele [Quero que tu sejas, Paulinas, 2016] (…) “Quando Deus se funde com o nosso eu, de modo a trocarmos Deus pelo nosso eu, perdemos a nossa alma. Ao separarmo-lo estritamente de nós próprios e começarmos a ver Deus como algo completamente exterior e separado da nossa alma, perdemos o Deus vivo, substituindo-o por um fetiche, puro objecto, uma «coisa entre as coisas». É tarefa constante da teologia mostrar esta inoculação dinâmica da imanência e da transcendência. Talvez possamos dizer sobre a fusão do nosso eu com Deus aquilo que disse o Concílio de Calcedónia sobre a relação da humanidade e divindade em Cristo: são inseparáveis e, mesmo assim, não estão misturadas” (“Diante de Ti. Os meus caminhos”, in “O abandono de Deus”, Paulinas, 2018, pp.19-23) – para explicar as causas do universo físico. Uma perspectiva demasiado estreita e limitada face ao conceito de causalidade até aí ensinado nas faculdades de teologia: “com o conceito de Deus, fazia-se muito mais do que simplesmente denotar uma causa física; esse conceito também abarcava sentido e finalidade – ou seja, por que razão um objecto específico estava aqui. Nos séculos XVII e XVIII, os pensadores sentiam necessidade de encontrar e nomear um princípio específico, a partir do qual pudessem deduzir a origem e a actuação da máquina do mundo – e o conceito religioso de «Deus» ajustava-se bastante bem ao seu objectivo. Mais tarde, a ciência entrou numa fase em que descobriu que já não precisava de um simples princípio explanatório último, porque nada desse tipo era suficiente para explicar a complexa realidade do mundo – por isso, naturalmente, esse conceito foi rejeitado. Contudo, essa questão metodológica relacionada com o mundo da Física deu origem à errada dedução, filosófica e teológica, de que «Deus não existe». No entanto, o Deus de que fala a fé cristã não pertence de modo algum ao mundo da Física. Deus não é uma «causa física do mundo», mas o mistério do seu significado”.
Se esta é uma explicação não despicienda para algum do abandono das catedrais, outra tentativa de o perceber passa por um exame crítico da ideia de um Deus como um ser sobrenatural, como os anjos, os espíritos, os deuses, ideia muito presente mesmo no mundo cristão. Assim, note-se, originalmente, a palavra «deus» não indicava qualquer «ser sobrenatural» especial, mas tinha um estatuto semelhante ao da palavra tesouro; no seu uso original, a palavra «deus» ou «deuses» não indicava seres, coisas ou objectos, mas uma relação. Recorrendo a Tomás de Aquino e a alguns dos seus mais proeminentes estudiosos contemporâneos, Halík adverte que devemos ter em conta que o espírito não é um espectro, «um fenómeno sobrenatural» ou uma «ideia», mas, sim, actividade, assemelhando-se mais a um acontecimento do que a uma entidade (“para Tomás de Aquino, Deus não era um «objecto», mas actus purus, puro comportamento ou actividade! Um dos mais distintos especialistas britânicos na obra de São Tomás de Aquino, o sacerdote dominicano Fergus Kerr, acrescenta: «De qualquer modo, o Deus de Tomás assemelha-se mais a um acontecimento do que a uma entidade»”, pp.180-186).
Por vezes, o humano confronta-se com a escuridão e custa-lhe sorver o que percepciona como silêncio de Deus. Em “Diante de Ti, os meus Caminhos”, in “O abandono de Deus” (Paulinas, 2018, escrito em co-autoria com Anselm Grun), Halík vê nesta a ocasião mais propícia e fecunda para um salto de fé, sem necessidade de remorsos moralizantes: “é extremamente importante saber que tais momentos em que tudo na vida espiritual de uma pessoa é abalado, como se Deus tivesse morrido, a sua fé tivesse escurecido e a pessoa realmente tivesse batido no fundo, são valiosos e importantes. Este momento deve ser recebido como uma experiência religiosa fundamental. É algures aqui onde termina a posse das «ideias religiosas» e a verdadeira fé pode começar. Sim, há pessoas que no momento do silêncio de Deus se afastam da fé porque chegam à conclusão de que Deus «não existe». Seria mais honesto afirmar que a sua actual noção de Deus «não funciona». Sim, um Deus que «funciona» de acordo com a ideia do homem, na verdade não existe ou, pelo menos, não é Deus, é um ídolo, e é melhor libertar-se dele. Essas pessoas têm a sua parte de verdade, mas ficam a meio caminho. O objectivo de superar os ídolos é libertar espaço para um encontro com um Deus vivo. É esse o momento do «eclipse» que no caminho espiritual se pode tornar um encontro decisivo com um Deus vivo. Muitas vezes, só à distância podemos ver que foi o próprio Deus, e não qualquer obstáculo interior ou exterior, que «bloqueou» o nosso caminho espiritual interior. Escondeu-se no silêncio e na escuridão, reduzido a nada, mas é lá onde é preciso encontrarmo-nos com Ele. (…) João da Cruz fala para as pessoas cujo «Deus morreu», cuja fé escureceu, que caminham na noite. Como um terapeuta espiritual experiente, ele reinterpreta essa situação. Não se aterrorizem com remorsos moralizantes! Deus não vos pune com esta escuridão pelos vossos pecados. Isto não significa que tenham negligenciado a fé. E isso de modo algum significa que o vosso caminho anterior tenha sido inútil. Neste momento sombrio, o toque do abandono de nosso Senhor na cruz é o momento de transformação e purificação, da tua morte e ressurreição.
No início, o mundo ficou em silêncio quando tu, apaixonado, voaste para o encontro amoroso com Deus, livre, como se corre com amor no coração pela noite de verão. O mundo, os sentidos, as coisas, tudo dormia, sem te incomodar e sem te distrair, tudo estava coberto pela escuridão. Mas agora é Deus que está em silêncio, a escuridão alcançou o santuário do teu espírito. Mas não tenhas medo, aguenta-te neste caminho escuro. Não será que esta escuridão possa ser um encadeamento causado pelo excesso da luz? Será que esse momento «sombrio» significa que estás a enfrentar o sol? (…) [João da Cruz] tenta mostrar-lhe que esta crise é uma oportunidade e uma visitação. Não moraliza nem oferece soluções baratas. Devemos aceitar essa situação porque é uma das formas através da qual Deus comunica com o homem. É até uma das maneiras mais profundas de contacto com o coração do homem. Chega às pessoas feridas e áridas. A quebra da devoção actual é, por sua vez, uma oportunidade para deixar morrer a forma infantil e ingénua da fé e experimentar a queda dos ídolos. Temos uma tendência constante para idealizar Deus através de conceitos e imagens. É apenas no momento da queda, do questionamento e do silêncio de todas essas imagens que podemos perceber que Deus está muito longe, por trás e acima disso, sendo maior que tudo o que possamos imaginar sobre Ele” (pp.265-268).

6.Se a Igreja Católica insistiu, durante muito tempo, na autoridade e na doutrina, algo que, evidentemente, se mantém, tais elementos, no entender do Sociólogo e Filósofo da Religião, tenderão a perder força no futuro próximo: “a Igreja responderá melhor às necessidades espirituais diferenciadas das futuras gerações se conceber o Cristianismo como um estilo de vida cuja dimensão profunda seria a espiritualidade, e a sua outra característica saliente seria a solidariedade, sobretudo a solidariedade para com aqueles que são tratados injustamente na sua sociedade particular”, diz.
“Muitos cristãos estão preocupados pelo facto de o Cristianismo estar a perder os claros contornos que teve em épocas anteriores, e se esteja a tornar mais pluralista. Mas talvez esse enfraquecimento do sistema signifique, na realidade, que a fé se está a tornar mais próxima da vida, e que a variedade não disfarçada de formas significa uma maior amplitude, que lhes permitirá abordar um espectro mais largo de pessoas no futuro”.

7.Creio que o Papa Francisco tem procurado, precisamente, seguir este caminho de evangelização pelo estilo de vida e pela solidariedade com os mais frágeis. Todavia, não se entenda, de modo errado: quando dizem a Halík que são necessários santos e não teólogos, o sacerdote vê nisso uma forma de simplismo, senão, mesmo, uma certa demagogia. Aliás, o extremamente actual, fresco, sistematizado pensamento de Halík é um exercício de reflexão de que, também nós, nunca estamos dispensados.