1. Quando sopesamos modalidades possíveis de relação da Ética face à Ciência, impõe-se-nos, fundamentalmente, três horizontes de possibilidades, a que correspondem graus de desejabilidade de concretização, daquele liame, bem diversos: a) uma função de imposição de limites – função repressiva (pouco recomendável); b) uma função de fixação normativa – se acompanhada de consenso ético prévio, possivelmente uma função positiva; se assim não for, a ética permanece em zona autoritária; c) formação de consciências – de cidadãos e cientistas (uma função desejável).
2. O cientista, como escreve a Catedrática de Ética, especialista em Ética Aplicada e durante mais de uma década, já no presente século, membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Maria do Céu Patrão Neves, em “O admirável horizonte da bioética”, não pode ser ingénuo, depois de Nagasaki e Hiroshima: está obrigado a prever as consequências/implicações do que está/vai fazer/construir/colocar à disposição ("tornou-se evidente que a ciência não constitui um valor em si mesma, um valor absoluto, o que justificaria os meios implementados para a obtenção do conhecimento, mas deve antes manter-se como um instrumento de realização das finalidades humanas. Tornou-se evidente que todo o conhecimento tem uma aplicação prática, tendo-se esvaziado a ideia de um conhecimento teórico puro, pelo que o cientista deve assumir a responsabilidade de prever as consequências possíveis do saber que constrói e de prevenir as suas utilizações nefastas", p.18). A ciência não é amoral (e quando o é, como referia João Lobo Antunes, torna-se imoral). Mas, por outro lado, o terreno da ética não é o da tentação do poder (com uma pretensa função de fiscal); bem mais, aquela proporciona quadros de formação de uma consciência que o cientista, despido da arrogância do cientismo, convoca como parceiro de indiscutível valia e complementaridade.
3. Se quisermos construir uma espécie de árvore genealógica da bioética, encontraremos dois documentos primordiais, a saber: i) Código de Nuremberga, de 1947; ii) Comissão hospitalar, de 1962, criada pelo Dr. Belding Scribner, da Washington University, em Seattle, composta por membros da sociedade civil, para avaliar quem seriam as pessoas a quem as escassas vagas da hemodiálise seriam acometidas (a chamada "God's Committee", pois a comissão como que exercia o “papel de Deus”: decidia quem vivia e quem morria). Como se percebe por este segundo caso, a bioética surge, também, em função dos avanços biotecnológicos – antes da hemodiálise aquele dilema ético, acima assinalado, não se colocava.
4. Em 1900, surgira, já, um documento legal, de um ministro do governo da Prússia, para regular a experimentação humana; do mesmo modo, em 1931, o governo alemão alertava para a necessidade de experimentação humana para o desenvolvimento da ciência e o florescimento humano, mas com as devidas precauções éticas. Estas, por sua vez, foram completamente tolhidas não apenas pelos médicos ao serviço do nazismo, como por membros do exército japonês na invasão à China, no decurso da II Guerra Mundial. "Hoje, como ontem, a experimentação humana é reconhecida como indispensável para o progresso das ciências biomédicas" (p.35), assinala, com efeito, Maria do Céu Patrão Neves. De aí que obrigatória se tornasse a elaboração de normas para acautelar aqueles que participariam em tais experimentos e identificação de populações especialmente vulneráveis. Normas apertadas a Ocidente, refira-se, levaram a deslocalização de experimentação para outras paragens. Mas na década de 90 do séc.XX, a situação alterou-se: o homem branco de 30 anos, retirava conclusões – das experiências em que participara – que não eram extensíveis para mulheres, crianças ou pessoas de outras etnias. Estas, vão, pois, reclamar ser incluídas em futuros experimentos médicos.
5. Fundamental, neste contexto, vem a ser a questão do consentimento informado por parte de quem é sujeito de experimentação. Duas perguntas afiguram-se como imprescindíveis esclarecer em cada circunstância experimental: a) que informação foi transmitida ao participante? b) que processo esteve na base do seu consentimento?
Entre as questões éticas que se colocam aos participantes em processos de experimentação médica contam-se, ademais, a pressão que exercem os próprios escolhidos, quando há excesso de candidatos – este, um dado quase sempre silenciado quando casos mediáticos irrompem neste domínio; a responsabilidade de se ser voluntário, mesmo sem compensação; a compensação, quando a esta há lugar, atribuída aos recrutados…
6. Ainda hoje, por outro prisma, se discute quer a quantidade, quer a qualidade de informação a passar (a um doente) para aceitação, por parte deste, de qualquer procedimento invasivo, nomeadamente, por exemplo, a questão do exacerbar de riscos residuais na economia de dados a transmitir, no caldeamento, ainda, dos benefícios a retirar para o próprio. Assim, "simultaneamente, a exigência de consentimento informado conduziu também à comunicação abrupta de informações por vezes muito graves acerca da situação clínica do doente, num acto de violência psicológica que se repete quotidianamente. Importa investir em técnicas de comunicação para, sem nunca mentir, saber ir transmitindo as notícias devidas à medida da capacidade de assimilação da pessoa em causa. A inexistência da prática de confirmação da correcta compreensão da informação prestada ameaça também a qualidade do consentimento informado, pelo que deve ser adequadamente exercida" (p.39).