Ultimamente, parece ter-se começado a levantar algum clamor relativamente às responsabilidades de certo jornalismo atual na afirmação de uma cultura populista, que tudo invade e domina, destruindo as bases necessariamente reflexivas da democracia.
Esse tipo de jornalismo tanto pode encontrar-se na redação de notícias que assumem a aparência dos factos como realidades comprovadas, como no estilo mistificador de certas entrevistas que, no mínimo, parecem sempre querer impor o sentido das respostas aos entrevistados.
Exemplo disso foram algumas das notícias que, na semana passada, foram publicitadas sobre a importância de uma exposição pouco rigorosa do Estado português e que se destinava, em suma, a informar o conselho europeu da sua preferência relativamente ao magistrado que deveria ocupar o lugar que cabe ao nosso país na procuradoria europeia.
Esse documento inquestionavelmente existe e, na verdade, contém imprecisões incompreensíveis e algo surpreendentes.
Porém, como uma boa indagação jornalística teria comprovado, nunca poderia ter sido com base nele que as instâncias europeias elegeram o nome do nosso representante na procuradoria europeia.
Com efeito, tal decisão só poderá ter tido em consideração o relatório das provas prestadas pelos candidatos selecionados e – não menos importante – os currículos profissionais por eles elaborados e constantes dos seus processos individuais.
Esses, sim, retratam as suas carreiras, as específicas aptidões e intervenções profissionais de cada um, pelo que a veracidade dos dados neles inscritos não foi posta em causa por ninguém.
Curiosamente, porém – agora que se questiona aquela exposição -, ninguém pediu que tais elementos fossem divulgados e sujeitos a escrutínio público, para que se possa ajuizar, em substância, da bondade da proposta portuguesa e da correlativa decisão europeia.
Deste modo, a ênfase plasmada na inexatidão daquela missiva – sem que, em simultâneo, se procedesse à averiguação e divulgação da metodologia e dos fundamentos que, de facto, conduziram à escolha dos decisores europeus – parece apenas querer inculcar no público a ideia de que aqueles deliberaram baseados, exclusivamente, no conteúdo da dita exposição.
Contudo, do que se pôde ver na TV, tal documento parece não passar, afinal, de uma missiva protocolar que mais não visava do que apresentar a pretensão do Estado português quanto à escolha do procurador nacional.
Não, não se tratava, por conseguinte, de um currículo e, muito menos, de um currículo falso.
O verdadeiro currículo, aquele que serviu de base à sua seleção, estava no dossiê do candidato.
Tal exposição tem, é certo, incorreções incompreensíveis, e essa falta de rigor pode até ser criticada no exato plano do que estas representam de pouca atenção prestada pelos serviços do Ministério da Justiça aos verdadeiros dados curriculares do candidato proposto.
Se, porém, os decisores europeus tivessem, de facto, feito a sua opção com base em tal missiva – o que as notícias não se preocuparam em indagar se ocorreu ou não – estaríamos, realmente, perante uma enorme irresponsabilidade da sua parte.
Isso só podia significar que não tinham examinado rigorosamente os dados dos documentos contidos nos dossiês dos candidatos selecionados, que são os únicos cujo exame pode, legitimamente, permitir uma decisão final conforme os interesses do Estado português e da União Europeia.
Isso, sim, seria uma importante notícia, tanto mais que é a esse órgão colegial europeu que compete, em exclusivo, escolher um nome entre os três aprovados e escalonados previamente pelo parecer não vinculativo do júri de peritos europeu.
Ora, é sabido que, no que se refere à escolha dos candidatos de outros países, o cuidadoso processo de decisão europeia foi rigorosíssimo na análise dos dossiês individuais respetivos, o que levou, inclusive, à rejeição de uns quantos e à necessidade da indicação de novos nomes por parte desses países.
Não se compreenderia, assim, que, tendo o Estado português indicado a preferência por um candidato que o júri europeu não colocou em primeiro lugar, o conselho europeu não tivesse ele próprio tido o cuidado de analisar exaustivamente os processos documentais dos diferentes nomes selecionados.
Tudo aponta, portanto, para que a inexatidão da missiva de apresentação da preferência portuguesa tenha sido, afinal, absolutamente irrelevante na decisão europeia.
E esta significativa diferença quanto ao teor das possíveis notícias sobre o assunto é absolutamente pertinente para se saber se se está perante uma informação fidedigna sobre o fundo da questão ou, apenas, perante um facto político instrumental e instrumentalizável.
Acontece que tal facto político não é, por definição, inócuo, nem no panorama político nacional atual, nem no panorama institucional europeu.
Além disso, e já num outro plano, apoucando injusta e levianamente a posição pessoal e institucional do prestigiado magistrado nacional escolhido pelo conselho europeu, alimenta a descrença nas instituições portuguesas e europeias de justiça e aviva a raiva populista contra elas.
O gosto pela intriga palaciana e escandalosa parece, porém, continuar a sobrepor-se ao gosto pela indagação e procura rigorosas da verdade.